A publicação, viral, tem origem num texto publicado no blogue “Réveillez-vous”, no dia 17 de fevereiro. O autor garante que “em caso de um tumulto ou de uma insurreição popular, os estados europeus estão autorizados a matar, sem a obrigação de qualquer tipo de processo judicial”, teoria que é fundamentada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, particularmente, no artigo segundo.
Assim que chegou ao Facebook, o alerta explodiu em número de partilhas, sobretudo em grupos associados aos coletes amarelos, um movimento que, há meses, semana após semana, sai à rua em França e é protagonista de ações de desordem e tumultos que, quase sempre, têm de ser travados pela polícia.
De acordo com o site “Fact Check Eu”, um projeto europeu de verificação de notícias, a alegação sobre a permissividade da lei europeia, acerca da autorização para matar, foi partilhada mais de 50 vezes em grupos da rede social de Mark Zuckerberg. Algumas destas páginas, em apenas um mês, publicaram o post várias vezes.
Marie-Laure Basilien-Gainche, professora de direito público na universidade Jean-Moulin, em Lyon, citada pelo “Fact Check Eu”, afirma que a convenção diz precisamente o contrário: “O artigo segundo reconhece o direito à vida, que é um direito fundamental.
Mas afinal de contas, o que diz o artigo segundo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem? O número 1 começa por referir “O direito à vida deve ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, à exceção da execução de uma sentença capital de um tribunal, no caso do crime ser punido com esta pena pela lei”; já o número 2 ressalva que “Não existe violação deste artigo (o segundo), caso a morte resulte do recurso à força, quando este se torna absolutamente necessário, ou para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal, ou para efetuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente, ou ainda para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição”.
No entanto, nem tudo é como realmente parece. Neste caso, a leitura do documento legal não deve ser feita a preto e branco. De acordo com Marie-Laure Basilien-Gainche, professora de direito público na universidade Jean-Moulin, em Lyon, citada pelo “Fact Check Eu”, a convenção diz precisamente o contrário: “O artigo segundo reconhece o direito à vida, que é um direito fundamental. É o primeiro direito a ter de ser respeitado, tanto por cidadãos individuais, como pelos estados”. A especialista deixa claro que a convenção não dá permissão às autoridades para matar, antes pelo contrário, é “um conjunto de regras, de maneira a prevenir que os estados utilizem métodos arbitrários para disparar”.
Além disso, no protocolo número 13, assinado em Vilnius, na Lituânia, em 2002, o Conselho da Europa, que gere a convenção, aboliu a pena de morte nos estados europeus. Florence Chaltiel-Terral, professora de direito na universidade de Grenoble, em França, garante, portanto, que “em nenhum lado está escrito que o Estado pode matar manifestantes”.
Qualquer cidadão português pode recorrer a este tribunal, em Estrasburgo, sempre que houver a convicção de que, a nível nacional, os direitos fundamentais não estão a ser respeitados.
Por seu lado, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos foi adoptada em 1950 e posta em prática em 1953, pelo que deve ser olhada através de uma perspetiva histórica. O documento surgiu no período Pós-segunda Guerra Mundial, altura em que depois dos atropelos aos direitos humanos durante o conflito na Europa, surgiu uma preocupação em encorajar os estados a proteger os direitos fundamentais.
A Convenção Europeia do Direitos do Homem foi criada pelo Conselho da Europa, a instituição europeia mais antiga em funcionamento, que surgiu precisamente para defender os direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade politico-social. Tem 47 estados-membros, entre eles França, Bélgica ou Noruega, mas também a Turquia e a Rússia. Portugal aderiu em 1976, já depois do 25 de Abril.
De salientar que foi a partir desta convenção que se criou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de modo a garantir o controlo sobre o respeito efetivo pelos direitos humanos. Qualquer cidadão português pode recorrer a este tribunal, em Estrasburgo, sempre que houver a convicção de que, a nível nacional, os direitos fundamentais não estão a ser respeitados.
É, assim, fácil perceber que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos não dá qualquer licença para matar, pelo contrário, garante o direito à vida.