O primeiro jornal português
de Fact-Checking

Lei europeia permite que Estado mate manifestantes em caso de tumulto?

União Europeia
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
O artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos garante que, em caso de insurreição, as autoridades podem usar a força e violar o direito à vida, sem qualquer consequência. O alerta é feito num texto que se tem tornado viral, sobretudo entre grupos de Facebook próximos dos coletes amarelos franceses, protagonistas de confrontos consecutivos na rua, nos últimos meses. Será que quem se manifesta, também em Portugal, deve temer pela vida ou é, esta, uma leitura a preto e branco de um documento adotado, por cá, há mais de 40 anos?

A publicação, viral, tem origem num texto publicado no blogue “Réveillez-vous”, no dia 17 de fevereiro. O autor garante que “em caso de um tumulto ou de uma insurreição popular, os estados europeus estão autorizados a matar, sem a obrigação de qualquer tipo de processo judicial”, teoria que é fundamentada na Convenção Europeia dos Direitos Humanos, particularmente, no artigo segundo.

Assim que chegou ao Facebook, o alerta explodiu em número de partilhas, sobretudo em grupos associados aos coletes amarelos, um movimento que, há meses, semana após semana, sai à rua em França e é protagonista de ações de desordem e tumultos que, quase sempre, têm de ser travados pela polícia.

manifestação

De acordo com o site “Fact Check Eu”, um projeto europeu de verificação de notícias, a alegação sobre a permissividade da lei europeia, acerca da autorização para matar, foi partilhada mais de 50 vezes em grupos da rede social de Mark Zuckerberg. Algumas destas páginas, em apenas um mês, publicaram o post várias vezes.

 Marie-Laure Basilien-Gainche, professora de direito público na universidade Jean-Moulin, em Lyon, citada pelo “Fact Check Eu”, afirma que a convenção diz precisamente o contrário: “O artigo segundo reconhece o direito à vida, que é um direito fundamental.

Mas afinal de contas, o que diz o artigo segundo da Convenção Europeia dos Direitos do Homem? O número 1 começa por referir “O direito à vida deve ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, à exceção da execução de uma sentença capital de um tribunal, no caso do crime ser punido com esta pena pela lei”; já o número 2 ressalva que “Não existe violação deste artigo (o segundo), caso a morte resulte do recurso à força, quando este se torna absolutamente necessário, ou para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal, ou para efetuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente, ou ainda para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição”.

manifestação

No entanto, nem tudo é como realmente parece. Neste caso, a leitura do documento legal não deve ser feita a preto e branco. De acordo com Marie-Laure Basilien-Gainche, professora de direito público na universidade Jean-Moulin, em Lyon, citada pelo “Fact Check Eu”, a convenção diz precisamente o contrário: “O artigo segundo reconhece o direito à vida, que é um direito fundamental. É o primeiro direito a ter de ser respeitado, tanto por cidadãos individuais, como pelos estados”. A especialista deixa claro que a convenção não dá permissão às autoridades para matar, antes pelo contrário, é “um conjunto de regras, de maneira a prevenir que os estados utilizem métodos arbitrários para disparar”.

Além disso, no protocolo número 13, assinado em Vilnius, na Lituânia, em 2002, o Conselho da Europa, que gere a convenção, aboliu a pena de morte nos estados europeus. Florence Chaltiel-Terral, professora de direito na universidade de Grenoble, em França, garante, portanto, que “em nenhum lado está escrito que o Estado pode matar manifestantes”.

Qualquer cidadão português pode recorrer a este tribunal, em Estrasburgo, sempre que houver a convicção de que, a nível nacional, os direitos fundamentais não estão a ser respeitados.

Por seu lado, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos foi adoptada em 1950 e posta em prática em 1953, pelo que deve ser olhada através de uma perspetiva histórica. O documento surgiu no período Pós-segunda Guerra Mundial, altura em que depois dos atropelos aos direitos humanos durante o conflito na Europa, surgiu uma preocupação em encorajar os estados a proteger os direitos fundamentais.

manifestação

A Convenção Europeia do Direitos do Homem foi criada pelo Conselho da Europa, a instituição europeia mais antiga em funcionamento, que surgiu precisamente para defender os direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade politico-social. Tem 47 estados-membros, entre eles França, Bélgica ou Noruega, mas também a Turquia e a Rússia. Portugal aderiu em 1976, já depois do 25 de Abril.

De salientar que foi a partir desta convenção que se criou o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de modo a garantir o controlo sobre o respeito efetivo pelos direitos humanos. Qualquer cidadão português pode recorrer a este tribunal, em Estrasburgo, sempre que houver a convicção de que, a nível nacional, os direitos fundamentais não estão a ser respeitados.

É, assim, fácil perceber que a Convenção Europeia dos Direitos Humanos não dá qualquer licença para matar, pelo contrário, garante o direito à vida.

Partilhe este artigo
Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn

Relacionados

Com o objetivo de dar aos mais novos as ferramentas necessárias para desmontar a desinformação que prolifera nas redes sociais que mais consomem, o Polígrafo realizou uma palestra sobre o que é "o fact-checking" e deu a conhecer o trabalho de um "fact-checker". A ação para combater a desinformação pretendia empoderar estes alunos de 9.º ano para questionarem os conteúdos que consomem "online". ...
Após as eleições, o líder do Chega tem insistido todos os dias na exigência de um acordo de Governo com o PSD. O mesmo partido que - segundo disse Ventura antes das eleições - não propõe nada para combater a corrupção, é uma "espécie de prostituta política", nunca baixou o IRC, está repleto de "aldrabões" e "burlões" e "parece a ressurreição daqueles que já morreram". Ventura também disse que Montenegro é um "copião" e "não está bem para liderar a direita". Recuando mais no tempo, prometeu até que o Chega "não fará parte de nenhum Governo que não promova a prisão perpétua". ...

Fact checks mais recentes