O primeiro jornal português
de Fact-Checking

Governo ignorou em 2019 os avisos que antecipavam uma tragédia social em Odemira?

Política
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
Em vigor desde outubro de 2019, uma Resolução do Executivo de António Costa determinou a instalação de "alojamentos temporários a localizar na área do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM), destinados a acolher trabalhadores agrícolas temporários". Quase dois anos depois, o drama em curso dos imigrantes de Odemira expôs de forma clara o fracasso das intenções enunciadas no despacho governamental. Poderá o Governo alegar que ninguém o preveniu para a possibilidade de uma tragédia social em Odemira?

Se recuarmos até 2019, à Resolução do Conselho de Ministros (RCM) n.º 179/2019, aprovada pelo primeiro-ministro António Costa e em vigor desde 25 de outubro desse ano, verificamos que esta determina que os “alojamentos temporários a localizar na área do Aproveitamento Hidroagrícola do Mira (AHM), destinados a acolher trabalhadores agrícolas temporários”, são equiparados a “estruturas complementares à atividade agrícola, pelo período de 10 anos não prorrogável”.

Por representar, na região do Alentejo, um grande potencial de crescimento e o principal setor de atividade económica, essencialmente nos municípios que abrangem a área de construção do AHM, Odemira e Aljezur, a atividade agrícola “tem atraído para a região uma quantidade crescente de trabalhadores, o que implica o reforço de infraestruturas e serviços públicos, tal como de equipamentos sociais”.

É nesse sentido que, fundamenta-se na RCM, “as necessidades de instalação destes trabalhadores, não podendo ser, a curto e médio prazo, totalmente colmatadas pela oferta de habitações existentes na região, conduziram à colocação de cerca de 270 alojamentos precários nas explorações agrícolas situadas dentro do AHM”.

Entre os objetivos das instalações está incluída a criação de “condições dignas de habitabilidade aos trabalhadores agrícolas”, de “alternativas de alojamento de trabalhadores agrícolas face à escassez do mesmo nos perímetros urbanos/aglomerados rurais no Município de Odemira”, o reforço de “boas práticas laborais relativamente às empresas agrícolas existentes no Perímetro de Rega do Mira” e ainda a criação de “soluções de alojamento devidamente integradas na paisagem“.

O facto é que, cerca de um ano e meio depois, o drama em curso dos imigrantes de Odemira expôs de forma clara o fracasso das intenções enunciadas no despacho governamental. Mas será que António Costa pode dizer que ninguém o preveniu para a forte possibilidade de eclosão de um desastre social decorrente daquela decisão do Conselho de Ministros?

A resposta é não.

A cara mais visível da oposição à medida foi a de Helena Roseta que, num artigo de opinião no jornal “Público” (edição de 7 de novembro de 2019), sublinhou desde logo que “meter 16 pessoas em quatro quartos, mesmo com pátios pelo meio, viola o mínimo de privacidade individual que a Constituição e a lei impõem que seja assegurado a todos, nacionais e estrangeiros”. Mais, que as intenções do Governo se traduziriam numa legalização, durante 10 anos, da “instalação de contentores (…) para alojar em condições precárias 400 trabalhadores migrantes, longe das aldeias, com deficiente abastecimento de água e sem direito a espaço público“.

O artigo da ex-deputada e autora da Lei de Bases da Habitação terminava assim: “Resta-me apelar ao ministro Pedro Nuno Santos e à sua equipa para que esta Resolução seja imediatamente revista, colocando no seu centro o direito à habitação e ao habitat das centenas de migrantes que demandam trabalho agrícola em Portugal. Não podemos colocar pessoas a monte em contentores durante 10 anos“.

O Bloco de Esquerda publicou uma série de conteúdos nas redes sociais visando desconstruir mitos relacionados com os imigrantes em Portugal: "destroem o nosso país"; "vivem à nossa custa"; "vai tudo para o bolso deles, não descontam nada"; "Portugal não precisa de imigrantes para nada". O Polígrafo verifica os factos.

Também Alberto Matos, dirigente da Solidariedade Imigrante, alertou no mesmo jornal (edição de 3 de novembro de 2019) para o facto de o despacho em causa ser “um convite ao abuso das horas extraordinárias e à proliferação das máfias que vivem do tráfico de seres humanos“. E sentenciou: “Prometem o céu mas vão espalhar o inferno”.

Apesar dos sucessivos alertas e avisos feitos ao Governo, o projecto avançou e os imigrantes foram instalados. Pelo caminho, o empreendimento foi mesmo apresentado como um caso de sucesso na integração de imigrantes. Veja-se, por exemplo, o caso da secretária de Estado para a Integração e as Migrações, Cláudia Pereira, que em entrevista à Agência Lusa, em março de 2020, apontou para Odemira como um “concelho-piloto” no que respeita à “integração de migrantes”, pelas “boas práticas” implementadas no território. E acrescentou: “Serão poucos os sítios na Europa onde, em 10 anos, a população estrangeira triplicou e em que o município em conjunto com as empresas e entidades, como o Alto Comissariado para as Migrações, conseguiram manter a paz e a harmonia social“.

________________________________________

Avaliação do Polígrafo:

Partilhe este artigo
Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn

Relacionados

Com o objetivo de dar aos mais novos as ferramentas necessárias para desmontar a desinformação que prolifera nas redes sociais que mais consomem, o Polígrafo realizou uma palestra sobre o que é "o fact-checking" e deu a conhecer o trabalho de um "fact-checker". A ação para combater a desinformação pretendia empoderar estes alunos de 9.º ano para questionarem os conteúdos que consomem "online". ...
Após as eleições, o líder do Chega tem insistido todos os dias na exigência de um acordo de Governo com o PSD. O mesmo partido que - segundo disse Ventura antes das eleições - não propõe nada para combater a corrupção, é uma "espécie de prostituta política", nunca baixou o IRC, está repleto de "aldrabões" e "burlões" e "parece a ressurreição daqueles que já morreram". Ventura também disse que Montenegro é um "copião" e "não está bem para liderar a direita". Recuando mais no tempo, prometeu até que o Chega "não fará parte de nenhum Governo que não promova a prisão perpétua". ...

Fact checks mais recentes