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Existe relação entre área ardida na Serra da Estrela e zonas de prospeção de lítio, acusa-se nas redes sociais

Sociedade
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
Em múltiplas publicações nas redes sociais, ao longo das últimas semanas, garante-se que sim. Como prova exibem-se mapas em que as cores (dos incêndios e dos interesses em torno do lítio) parecem sobrepor-se quase exatamente. Confirma-se? Mera coincidência? Relação de causa-efeito? O Polígrafo questionou um especialista sobre esta matéria.

“Este é o mapa publicado no ‘Diário da República’ das zonas ou áreas de interesse na prospeção e pesquisa de lítio no território nacional. Alguém consegue relacionar isto com os incêndios que estão a ocorrer na Serra da Estrela? Coincidência?” Assim se sugere num post de 16 de agosto no Facebook, apenas um exemplo entre muitas outras publicações que apontam no mesmo sentido: a suposta relação entre a área ardida na Serra da Estrela e as zonas abrangidas pelo Programa de Pesquisa e Prospeção de Lítio.

Os números são impressivos: a área ardida no Parque da Serra da Estrela já ultrapassou os 24 mil hectares em apenas sete dias e o fogo, que parecia ter sido finalmente dominado esta quarta-feira, 17 de agosto, voltou a lavrar ontem, 19 de agosto, na região de Gouveia.

“Começou na União de freguesias de Melo e Nabais e está a evoluir pela encosta acima e já está na freguesia de São Paio e dentro da freguesia de Gouveia cidade, e em direção ao Curral do Negro, onde está o nosso parque de campismo e uma área de excelência de Gouveia”, informou Jorge Ferreira, vice-presidente da Câmara Municipal de Gouveia.

Não há muitos meses, em fevereiro deste ano, a Avaliação Ambiental Estratégica (AAE), promovida pela Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), sujeitou a análise oito áreas com potencial de existência de lítio, tendo concluído que apenas em seis delas havia “condições para avançar“.

“Nos seis locais viáveis, é proposta uma redução de área inicial para metade” e, nos 60 dias após o anúncio, seria possível “avançar o procedimento concursal para atribuição de direitos de prospeção e de pesquisa de lítio“, informou em comunicado o Ministério do Ambiente. Nessa altura ficaram de fora do objeto do concurso as áreas de “Arga” e “Segura”, uma vez que as “restrições ambientais inibem a prospeção e consequente exploração”.

Questionado pelo Polígrafo, Miguel Macias Sequeira, investigador em matérias de Energia e Clima na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade NOVA de Lisboa (FCT-NOVA), começa por descartar a veracidade da hipótese avançada nas redes sociais. Desde logo porque “não existe, até ao momento, qualquer evidência de relação comprovada entre a área ardida em Portugal em 2022 e as áreas abrangidas pelo Programa de Pesquisa e Prospeção do Lítio ou pelos pedidos de prospeção e pesquisa de outros minerais”.

“De facto, tanto a área ardida (93 mil hectares) como a área proposta para prospeção e pesquisa são muito extensas (150 mil hectares apenas no programa do lítio), tendendo ambas a concentrar-se no Norte e Centro do país e em zonas montanhosas de florestas e matos”, nota Sequeira, o que pode naturalmente levar a que, em algumas zonas, “estas áreas se sobreponham e, em muitas outras, não se sobreponham“.

Assim sendo, “na ausência de qualquer prova que relacione a ignição de um incêndio florestal com o interesse de exploração mineira, o mais provável é tratar-se de uma coincidência“, afirma o investigador, lembrando que “a investigação das causas dos incêndios e das estratégias de combate cabe às autoridades competentes, sendo cedo para tirar conclusões precipitadas e sem evidências“.

Para mais, Macias Sequeira sublinha que os incêndios rurais “são um fenómeno recorrente em Portugal, que acarreta graves prejuízos sociais, ambientais e económicos” e que as suas principais causas incluem “o clima do país, cada vez mais agravado pelas alterações climáticas, a prevalência de florestas de monocultura baseadas em espécies altamente inflamáveis (com destaque para o eucalipto) e a gestão deficitáriadesordenamento das áreas florestais e matos”.

mapa

De acordo com os dados disponibilizados pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “a maioria dos incêndios rurais deste ano ocorreram em povoamentos florestais (51%) e em matos (39%)”. Mas, além disso, foi o mapa das ocorrências de incêndios rurais em Portugal (que vemos acima), divulgado pela mesma entidade, que levou muitas pessoas a acreditar na coincidência, já que, tal como explica Sequeira, “quase um quarto do território de Portugal Continental está abrangido por dezenas de pedidos de direitos de prospeção, pesquisa e exploração de minérios (como se vê na figura abaixo).

minério

Recordando que apenas seis das oito áreas inicialmente postas em causa estão neste momento incluídas no Programa de Pesquisa e Prospeção do Lítio, e “olhando em particular para o caso do recente incêndio da Serra da Estrela, verifica-se que a maior parte da área ardida se encontra no Parque Natural onde não é permitida a exploração mineira“.

“Apenas uma pequena parte da área ardida se encontra em sobreposição com áreas incluídas no programa de prospeção e pesquisa de lítio, que ainda aguarda o lançamento do concurso, não havendo qualquer razão plausível para avançar neste momento com uma possível ligação causa-efeito entre estes dois factos”, sustenta o investigador.

Sequeira aponta ainda, em declarações ao Polígrafo, para o Decreto-Lei n.º 55/2007 que protege estas situações estabelecendo a proibição, pelo prazo de 10 anos, de várias ações e de alterações no uso do solo em terrenos com povoamentos florestais percorridos por incêndios. Há apenas um senão: “Esta proibição pode ser levantada por despacho desde que se comprove que a origem do incêndio se fica a dever a causas a que os interessados são alheios. Assim, após o incêndio, aguarda-se que a investigação pelas entidades competentes apure os factos das causas da ignição e das abordagens de combate”.

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Avaliação do Polígrafo:

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