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É verdade que o sorteio do Processo Marquês pode ter sido manipulado?

Sociedade
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
O juiz Carlos Alexandre, em entrevista à RTP, transmitida no dia 17 de Outubro, manifestou dúvidas quanto à aleatoriedade do sorteio que delegou a fase de instrução do processo "Operação Marquês".

O juiz Carlos Alexandre, em entrevista à RTP, transmitida no dia 17 de Outubro, manifestou dúvidas quanto à aleatoriedade do sorteio que delegou a fase de instrução do processo “Operação Marquês” ao juiz Ivo Rosa. O sorteio em causa foi realizado no dia 28 Setembro, através do sistema informático Citius, que selecionou uma de duas hipóteses: Rosa em detrimento de Alexandre, os dois juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC).

De acordo com o juiz preterido, “há uma aleatoriedade que pode ser maior ou menor consoante o número de processos de diferença que exista entre mais do que um juiz“. Questionado pelo jornalista sobre se a distribuição de processos consecutivos a um dos juízes pode condicionar a aleatoriedade do sistema, Alexandre respondeu que “sim, pode alterar-se significativamente”. E acrescentou: “As probabilidades podem inverter-se”.

De facto, em Julho, Rosa tinha mais cinco processos em mãos do que Alexandre. Entre os dias 20 de Agosto e 5 de Setembro, porém, foram distribuídos três processos consecutivos a Alexandre (na entrevista, o juiz também sublinhou que apenas um desses processos foi distribuído “de forma normal”). Por outro lado, no dia 10 de setembro, Rosa declarou-se incompetente relativamente a um dos seus processos. Em suma, no dia do sorteio, Rosa tinha mais um processo no total do que Alexandre.

As declarações de Alexandre têm duas vertentes que importa conferir:

  • O grau de aleatoriedade do sorteio
  • A sua possibilidade de manipulação

Começando pela aleatoriedade, trata-se de uma questão de probabilidade, isto é, saber se Rosa e Alexandre tinham exatamente a mesma probabilidade (50/50) de serem escolhidos naquele sorteio. O Polígrafo cruzou a opinião de vários agentes da justiça que conhecem o sistema informático Citius e concluiu que o sorteio não é totalmente aleatório, mas condicionado por determinados critérios, a saber: o número de processos que cada juiz tem no momento, o tipo de processo que está a ser entregue e a respectiva fase de desenvolvimento.

De facto, em Julho, Rosa tinha mais cinco processos em mãos do que Alexandre. Entre os dias 20 de Agosto e 5 de Setembro, porém, foram distribuídos três processos consecutivos a Alexandre

Ou seja, os juízes não têm a mesma probabilidade (50/50) de serem escolhidos em sorteio, dependendo dos referidos critérios. O sistema de distribuição dos processos baseia-se num algoritmo que define a probabilidade de cada escolha mediante esses critérios. Quanto mais processos tiver um juiz na data do sorteio, menor será a probabilidade de ser selecionado. O tipo de processo e a fase de desenvolvimento também influenciam o algoritmo na definição da probabilidade.

O peso dos critérios é definido pelos juízes que compõem o tribunal, neste caso o TCIC. Daí que Alexandre fale com conhecimento de causa. A aleatoriedade do sorteio varia mediante o número de processos que cada juiz tem em mãos, tal como Alexandre declarou. Este sistema visa impedir que se formem grandes desequilíbrios na repartição dos processos, algo que poderia (ou não) acontecer se os sorteios fossem totalmente aleatórios. Os sorteios condicionados asseguram um nível mínimo de equilíbrio.

Quanto à possibilidade de manipulação do sorteio, não é possível conferir através dos dados disponíveis. Alexandre lançou suspeitas em torno dos três processos consecutivos que lhe foram atribuídos pouco tempo antes do sorteio, dizendo que apenas um deles terá sido distribuído “de forma normal”. Através dessa alteração no número de processos que cada juiz tinha em mãos, “as probabilidades podem inverter-se” no âmbito do sorteio, de facto. A manipulação é possível, em teoria, mas na prática implica a existência de interveniente(s) com essa intenção.

Tudo mudará com Ivo Rosa?

O resultado do sorteio agradou à defesa de José Sócrates, o principal suspeito da “Operação Marquês”, que tem colocado em causa a imparcialidade (e pedido o afastamento) de Alexandre. “Finalmente neste processo há um juiz legal e não um juiz escolhido pelo Ministério Público”, afirmou João Araújo, um dos advogados de Sócrates, após o sorteio. Em contraste com Alexandre, o juiz Ivo Rosa costuma ser mais exigente com as acusações do Ministério Público (isto é, menos propenso a levar arguidos a julgamento, autorizar escutas ou passar mandados de busca).

Quanto à possibilidade de manipulação do sorteio, não é possível conferir através dos dados disponíveis. Alexandre lançou suspeitas em torno dos três processos consecutivos que lhe foram atribuídos pouco tempo antes do sorteio, dizendo que apenas um deles terá sido distribuído “de forma normal”

Alexandre foi o juiz da fase de investigação da “Operação Marquês”, seguindo-se agora Rosa com a fase de instrução. As declarações de Alexandre sobre o sorteio levaram o Conselho Superior de Magistratura (CSM) a determinar a abertura de um inquérito, “para cabal esclarecimento de todas as questões suscitadas pela entrevista em causa que sejam susceptíveis de relevar no âmbito das competências” do CSM. Por seu lado, a Associação Sindical dos Juízes Portugueses também reagiu à entrevista de Alexandre, considerando que “a distribuição informática dos processos não pode ser manipulada“, mas que “se alguém afirma o contrário é necessário perceber porquê e se há alguma razão para questionar a aleatoriedade da distribuição”.

Por tudo isto, dizer que o sorteio é aleatório e que foi manipulado é…

 

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