Há quatro meses, durante a audição do ministro do Ambiente e da Ação Climática, Rita Matias alertava o presidente daquela Comissão Parlamentar, Tiago Brandão Rodrigues, deputado do PS, de que o seu partido iria fazer chegar aos serviços um "relatório do IPCC de 1989 que dizia que algumas nações poderiam estar submergidas nos anos 2000. Pasmem-se, chegamos a 2023 e nenhuma das nações foi submersa (sic). Este relatório foi feito pelos 195 membros, pelo órgão enaltecido pelo ministro. Às vezes as predições falham".

Na terceira e última parte daquela audição, Tiago Brandão Rodrigues avisou que o documento já tinha sido distribuído, mas fez questão de confrontar Rita Matias com a natureza do suposto "relatório": "Na dialética parlamentar não serve tudo. A senhora deputada disse que ia distribuir um relatório do IPCC, que era importante para entender um conjunto de questões sobre a posição do IPCC em relação às alterações climáticas, mas fez-nos distribuir uma notícia, sem fonte ou data, praticamente não se consegue ler. Não pode dizer que vai distribuir uma coisa e distribuir outra completamente diferente. Parecia que trazia um livro que era quase uma obra mundial e depois traz um livro do 'Tio Patinhas'. Só queria saber onde está o relatório do IPCC."

O relatório de 1989 não existe e Matias acabou por confirmá-lo já no fim da audição ao ministro do Ambiente: "A referência que eu fiz era à UNEP (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente). A notícia que divulguei tinha aquilo que referi, a questão de estar predito que algumas zonas estariam inundadas à data de hoje, que é uma questão que não existe."

"The Oshkosh Northwestern". É este o nome do jornal onde consta a peça partilhada por Rita Matias, na sua edição de 30 de junho de 1989. A notícia, distribuída pela Associated Press (AP) um dia antes, tem por base uma entrevista ao diretor da sede de Nova York do UNEP. O primeiro parágrafo dizia: "Alto funcionário ambiental da ONU diz que nações inteiras podem ser apagadas da face da Terra por causa do aumento do nível do mar se a tendência do aquecimento global não for revertida até ao ano 2000."

Este funcionário da ONU era Noel Brown, na altura diretor regional do UNEP, que, alerta-se, não era cientista. Embora reconhecidamente alarmistas, as declarações deste alto funcionário da ONU foram muitas vezes distorcidas, nomeadamente por Rita Matias, que sugeriu que a declaração de Brown significava que as nações estariam submersas no ano 2000. Na verdade, Brown empurrava a consequência para um futuro mais distante. Isto, "se a tendência do aquecimento global não for revertida até 2000." Os cenários nos artigos citados pela AP descreveram projeções que mencionavam inclusivamente o ano 2100.

Brown, o funcionário do UNEP, parece ter feito referência a declarações feitas em artigos preparados para esta conferência, como um relatório da EPA publicado em maio de 1990 e intitulado "Mudança do Clima e da Costa: Respostas Adaptativas e as suas Implicações Económicas, Ambientais e Institucionais". Este artigo incluía projeções futuras para inundações em países de baixa elevação. Apesar disso, nenhum destes artigos científicos assegurou que isso aconteceria até 2000.

Rita Matias até admitiu o erro, num "tweet" de julho deste ano: "Sobre o famoso Relatório do IPCC: esclareci oralmente que queria ter referido a distribuição de uma notícia sobre as conclusões da UNEP (e não o relatório). Até admiti que apesar do ambiente hostil na sala, o lapso na referência teria sido meu. Como não foi suficiente para o circo, fui convidada a esclarecer onde é que a notícia mencionava as conclusões que referi e assim o tentei fazer."

O tema foi mais ou menos esquecido até esta segunda-feira, quando Duarte Cordeiro, Rita Matias e Tiago Brandão Rodrigues voltaram a partilhar sala na audição ao ministro do Ambiente. A deputada do Chega quis entregar "em mão" ao ministro o relatório do IPCC que tinha mencionado na audição de julho (mesmo depois de admitir o lapso). "Vou começar por entregar-lhe o relatório do IPCC, aquele que eu referi na última audição, na notícia que então distribuí (...) Como referido, tem as tais previsões que falharam", esclareceu a deputada.

Tiago Brandão Rodrigues, que presidiu à mesa, contestou: "A senhora deputada disse que este relatório em concreto constava na notícia. Eu estou sobressaltado relativamente a isso porque, se se recorda, também participei nessa discussão e a notícia era de 1989. Nós sabemos que o primeiro relatório do IPCC é de 1990 e o segundo de 1992. Por isso não entendo como vem na tal notícia."

É verdade que Rita Matias, a quem foi dada oportunidade para esclarecer o engano temporal, preferiu não o fazer numa primeira fase. Ao invés disso, acusou Tiago Brandão Rodrigues de a "achincalhar" e de "bullying" parlamentar. No entanto, mais à frente na audição, Matias acabou por explicar o erro: "Em julho de 2023 (...) pedi a distribuição, mencionando um relatório, que, não o tendo comigo, na verdade o que fiz distribuir foi uma notícia. Fui alertada para isso, corrigi publicamente que distribuí uma notícia de 1989. Depois, disseram que não existia nenhum relatório que determinava que nações ficariam completamente submersas."

Já na segunda-feira, aquilo que a deputada garante ter dito é que "existe um relatório de 1990 e 1992" que comprova a sua teoria. Analisado o documento, que Matias partilhou nas redes sociais, esta interpretação é empolada. Não, o IPCC não garantiu nos seus dois primeiros estudos que várias nações ficariam submersas no virar do século (por volta do ano 2000).

Segundo o documento, a maioria dos estudos previa um aumento do nível do mar entre 10cm e 30cm nas seguintes quatro décadas (ou seja, até 2030). O IPCC indicava ainda uma taxa média de aumento médio global do nível do mar de cerca de 6 cm por década durante o século XXI, principalmente devido à expansão térmica dos oceanos e ao derretimento de algum gelo terrestre. O aumento previsto era de cerca de 20 cm no nível médio global do mar em 2030 e 65cm até o final do próximo século.

Na verdade, o único estudo do IPCC que coloca em causa a vida de certas nações data de agosto de 2021 e reflete sobre as consequências do aquecimento global e da subida do nível da água do mar durante este século: "O aquecimento global acima de 1,5ºC será 'catastrófico' para as nações insulares do Pacífico e pode levar à perda de países inteiros devido ao aumento do nível do mar dentro deste século", noticiou o "The Guardian" no mesmo mês. É impossível saber se este estudo falhou ou não, como garantiu a deputada Rita Matias: para isso, terá que aguardar até ao fim do século.

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