O primeiro jornal português
de Fact-Checking

Despejo de casas municipais de indivíduos que cometem crimes iria colidir com normas constitucionais?

Política
O que está em causa?
A denúncia partiu da deputada Isabel Moreira, do PS, através de uma publicação na rede social X. A medida que tem vindo a ser discutida na autarquia de Loures, no sentido de promover o despejo de habitações municipais de indivíduos que sejam condenados por crimes, seria muito provavelmente inconstitucional?
© Agência Lusa / Andre Kosters

Na sequência da morte de Odair Moniz, que perdeu a vida após ser baleado por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) no Bairro da Cova da Moura, Amadora, têm-se multiplicado as reações dos diferentes partidos com representação na Assembleia da República. 

No município de Loures, tal como foi noticiado na semana passada, o Chega propôs ao município, em plena reunião camarária na quarta-feira passada, que o regulamento de habitação fosse alterado de modo a indicar que deverá ser dada “imediata ordem de despejo” de casas municipais a todos os arrendatários que vejam “provada a participação e/ou incentivo” em ilícitos criminais. Uma recomendação que, entretanto, foi aprovada pelo PS e pelo PSD – e apenas com votos contra da CDU –, tendo como objetivo “dissuadir a prática de quaisquer tipo de ilícitos” por parte dos arrendatários.

Na sequência da discussão pública relacionada com o tema, o presidente da Câmara Municipal de Loures, Ricardo Leão (PS), veio esclarecer, na quinta-feira, que apenas defende o despejo de inquilinos de habitações municipais em “casos transitados em julgado”. Isto já depois de, na reunião camarária de quarta-feira, ter defendido o despejo “sem dó nem piedade” de inquilinos que tenham participado nos distúrbios recentes na Área Metropolitana de Lisboa.

Em causa está, no entanto, uma proposta que, na ótica da também socialista Isabel Moreira, “é inconstitucional”. Confirma-se essa alegação?

Ao Polígrafo, Marta Vicente, professora de Direito Constitucional da Universidade Católica Portuguesa (UCP), começou por explicar que uma medida dessa natureza “teria desde logo um problema de competência”. Isto é, “saber se o município de Loures tem competência, nos termos da Constituição, para fazer este tipo de restrição ou de condicionamento ao acesso a uma prestação social”.

Na sua perspetiva, isso não acontece. “Ou seja, o município, por iniciativa própria, não pode fazer um condicionamento ou uma restrição com este conteúdo. Desde logo, porque mesmo sendo uma prestação social gerida e, diria até, financiada pelo município, estão em causa direitos fundamentais, desde logo o direito a uma habitação condigna”, que no âmbito do Direito Constitucional é considerado um “direito derivado a prestações”, elaborou a especialista.

Mesmo que tal ordem de despejo, por parte do município, fosse apenas aplicada a “pessoas condenadas pela prática de crimes”, à semelhança do que defendeu recentemente o autarca de Loures, isso colocaria em causa os seus direitos fundamentais. “Portanto, nem sequer nesse caso seria, digamos assim, possível ou constitucional a autarquia tomar uma medida dessa natureza”, considerou a constitucionalista. 

Além disso, Marta Vicente elucidou que “este regulamento municipal, como todos os regulamentos administrativos, foi feito com base numa lei, a que chamamos de lei habilitante do regulamento administrativo”, que, mais concretamente, é “a lei que estabelece um regime para o arrendamento apoiado para habitação, que é no fundo aquilo que está aqui em causa” (Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro). 

E facto é que “esta lei também não prevê, nas suas várias normas, nem impedimentos, nem sanções no acesso a estas ditas rendas mais acessíveis relacionadas com a prática de crimes”, constatou ainda a docente da UCP. Assim, “também não prevê nenhuma abertura para que este tipo de sanções ou impedimentos pudessem vir a ser instituídos pelas autarquias”.

Caso uma medida desta natureza fosse prevista, nomeadamente, pelo Governo ou pela Assembleia da República, também nessa situação existiriam “vários obstáculos constitucionais”, relacionados com um problema de substância. “Há uma norma da Constituição, o Artigo 30.º, n.º 4, que diz que nenhuma pena tem como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos. E, neste caso, está em causa o acesso a um direito social, pelo que eu o incluo na dimensão dos direitos civis. Portanto, no fundo, estamos a associar uma pena à perda de um direito civil”, elaborou a docente.

Em causa “uma norma na Constituição que visa, no fundo, impedir a estigmatização de quem tenha sido condenado pela prática de crimes”. Pelo que, resumidamente, “estas condenações nunca podem conduzir automaticamente à perda de direitos desta natureza”. 

Apenas “se, eventualmente, o legislador, através de uma sanção acessória à condenação penal, o previsse, poderia haver alguma margem” para avançar como a medida analisada. “Mas isso não existe no regime atual, não existe uma sanção acessória de perda de direitos a prestações sociais”, notou a constitucionalista.

Além do mais, importa recordar que “muitas destas habitações com renda acessível são dirigidas a agregados familiares, não são dirigidas a uma pessoa em concreto, e, portanto, os membros do agregado familiar não podem ser prejudicados pelo facto de um dos seus elementos ter sido condenado”, concluiu a especialista.

André Batoca, advogado coordenador na Raposo Subtil e Associados, com especialização nas áreas do Direito Administrativo, partilha de uma visão semelhante. “Sobre a hipótese de haver uma alteração no regulamento municipal para, por exemplo, criar qualquer sanção para aquelas pessoas que cometeram atos de vandalismo, agora recentemente, claramente existiria aqui uma violação da Constituição”, considerou.

Isto porque “em regra, os regulamentos municipais não têm eficácia retroativa”. Ou seja, “a Câmara Municipal iria alterar o regulamento para sancionar factos anteriores à entrada em vigor deste regulamento e existiria aqui, portanto, uma violação objetiva do princípio da confiança que está associada ao princípio do Estado de Direito Democrático e da Constituição”.

Além disso, sobre a “hipótese” de a medida “ter apenas uma eficácia para o futuro”, André Batoca disse também entender que “o município está a enveredar por um caminho que vai para além das suas competências e, sim, pode estar ferido em inconstitucionalidade”.

Até porque “o município estaria a tentar ‘fazer entrar pela janela’ aquilo que não pode fazer ‘entrar pela porta’, que é aplicar uma sanção acessória perante o comportamento de alguém que tem uma habitação social, com base num regulamento em vigor, num contrato administrativo”, por causa de “factos que não têm qualquer relação com o contrato administrativo estabelecido entre a autarquia e o particular”.

Considerou, portanto, “que esse caminho, a ser seguido pela entidade administrativa, neste caso o município, seria claramente lesivo, ou pelo menos iria ferir a Constituição”. E acrescentou: “Até porque não podemos esquecer que o direito à habitação faz parte do leque dos direitos fundamentais. E o artigo 30.º da Constituição diz-nos que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de qualquer direitos civis, profissionais ou políticos.”

______________________________

Avaliação do Polígrafo:

Partilhe este artigo
Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn

Relacionados

Em destaque