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Constituição proíbe “endoutrinação sexual e homossexual” na infância e adolescência?

Sociedade
O que está em causa?
Em mensagem enviada ao Polígrafo, denuncia-se um comunicado que estará a circular no WhatsApp. Nele consta a defesa das ações da associação "Habeas Corpus" e a ideia de que "a lei" estará do lado desta organização porque, além de consagrar o livre desenvolvimento da personalidade, "proíbe a endoutrinação sexual e homossexual junto da infância e adolescência".
© Agência Lusa / Manuel Farinha

“Mensagem que circula no WhatsApp sobre a Habeas Corpus que tem vindo a realizar acções que ‘visam proteger as crianças e os jovens do movimento político LGBTQIA+‘”, denuncia ao Polígrafo um leitor, remetendo a referida mensagem.

No comunicado que está a circular nas redes – o Polígrafo identificou a mesma nota na conta de Telegram da associação -, assinado por Rui da Fonseca e Castro, indica-se que “a Habeas Corpus tem vindo a realizar ações que visam proteger as crianças e os jovens de influências perniciosas no desenvolvimento da sua personalidade” e que é, inclusive, “notória obsessão do movimento político LGBTQIA+ com as crianças e os jovens”.

No decorrer deste texto, há outra coisa que chama a atenção: “A Lei está do nosso lado, na medida em que o artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, ao consagrar como fundamental o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, proíbe a endoutrinação sexual e homossexual junto da infância e adolescência.”

Será verdade que a Lei “proíbe a endoutrinação sexual e homossexual”?

Não, não há nada na Constituição sobre uma “endoutrinação sexual e homossexual”. Existe, isso sim, a proibição de qualquer “doutrinação”, seja de que ordem for. Olhando para a Constituição da República Portuguesa, citada no comentário, precisamente no ponto e artigo mencionados, lê-se o seguinte: “A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.”

Ora, nada é aqui dito sobre uma qualquer “endoutrinação sexual” como dá a entender o comunicado, sendo essa consideração uma extrapolação do que é expresso na Constituição portuguesa. Mas, não ficando apenas pela análise do artigo mencionado pelo comunicado, verifica-se através da consulta da Constituição que o argumento carece de sentido.

A Constituição portuguesa consagra, no artigo 43.º as normas sobre a educação, “Liberdade de aprender e ensinar”, determinando que “é garantida a liberdade de aprender e ensinar“, que o “Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”.

Focando na educação, este artigo, no terceiro ponto, veicula ainda que o “ensino público não será confessional”. Tal está igualmente determinado na Lei da Liberdade Religiosa, que se baseia no princípio da laicidade do Estado e da não confessionalidade. Ou seja, o Estado ou os docentes não poderão sujeitar os estudantes a unidades curriculares de doutrinação ou de propaganda ideológica.

Já no artigo 73.º, sobre o “Direito à educação, cultura e ciência”, determina-se, no segundo ponto, que “o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação” de forma a que “contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida coletiva”.

Mais, o artigo 13.º visa o “princípio da igualdade” em que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”.

Não faz, por isso, sentido invocar a Lei alegando que é proibida uma “endoutrinação” e afunilando tal conceito para uma doutrina “sexual e homossexual”. Tal é uma extrapolação do que está inscrito na Constituição.

Além de tudo isto, tal como explica um artigo de Catarina Santos Botelho intitulado “O enquadramento jurídico-constitucional da educação cívica e política em Portugal” é importante distinguir entre “doutrinação (mera agenda ideológica) – proibida pelo n.º 2 do artigo 43.º da Constituição – de educação (aquisição de conhecimento)”.

A título de exemplo, no site da Direção-Geral da Educação explica-se que a educação sexual “em meio escolar tem caráter obrigatório e destina-se a todos os alunos que frequentam estabelecimentos de ensino básico e secundário da rede pública e os estabelecimentos da rede privada e cooperativa com contratos de associação, do território nacional”.

E no “Relatório Final do Grupo de Trabalho de Educação Sexual” destaca-se a importância de, “na prática escolar”, informar os alunos sobre a sexualidade depender de “quatro factores psicossexuais (que envolvem o desenvolvimento da personalidade e os comportamentos sexuais): a identidade sexual, a identidade de género, a orientação sexual e o comportamento sexual”

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, como aponta a docente de Direito Constitucional, “tem defendido que as autoridades nacionais não podem doutrinar as crianças, em desrespeito pelas convicções religiosas e filosóficas dos pais”, ainda assim, também não poderão ser privados de informação nem a proibição da doutrinação poderá visar a “aceitação da homofobia”.

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Avaliação do Polígrafo:

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