“A UE está a introduzir a pena de morte pela porta pequena”. Este é o início e também a mensagem principal de um texto que se que se tornou viral nas redes sociais de utilizadores da Croácia. Originariamente colocado no Telegram, foi depois amplamente partilhado no Facebook.
O texto, sem autoria atribuída, garante que foi incluída no Tratado de Lisboa (2007) uma declaração que, na prática, viabiliza a pena de morte em território europeu. Essa alteração seria proveniente do que fora estabelecido na Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), anulando, desse modo, a proibição do recurso à pena capital inscrita na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000).
Apesar da sequência cronológica dos documentos referidos (na sua primeira versão) tornar, desde logo, pouco crível o que é anunciado, vamos ver o que cada um deles diz sobre a pena de morte e de como foram relacionados pela narrativa que depois se disseminou pelas redes sociais.
A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no seu Título I (“Dignidade”), Artigo 2.º (“Direito à vida”), estipula:
- Todas as pessoas têm direito à vida.
- Ninguém pode ser condenado à pena de morte, nem executado.
Este documento é juridicamente vinculativo para os países da UE, conforme previsto no Tratado da União Europeia:
Artigo 6.o (ex-artigo 6.o TUE)
1.A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 7 de dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados.
De forma alguma o disposto na Carta pode alargar as competências da União, tal como definidas nos Tratados.
Os direitos, as liberdades e os princípios consagrados na Carta devem ser interpretados de acordo com as disposições gerais constantes do Título VII da Carta que regem a sua interpretação e aplicação e tendo na devida conta as anotações a que a Carta faz referência, que indicam as fontes dessas disposições.
Já a Convenção Europeia dos Direitos Humanos (adotada pelo Conselho da Europa), no seu Título I (“Direitos e Liberdades”) estipula:
Artigo 2°
Direito à vida
“1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencionalmente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.
2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado absolutamente necessário:
a) Para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal;
b) Para efectuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida legalmente;
c) Para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição.”
É a este ponto 2 – que consagra exceções à proibição da pena de morte – que a publicação verificada chama “determinação incluída no Tratado de Lisboa”. Apesar deste ponto ter feito parte logo da primeira redação (1950) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e do Tratado de Lisboa ter sido aprovado em dezembro de 2007 (com efeitos a partir de 2009), a publicação sugere que só recentemente foi vertido no Tratado, usando para tal a formulação “existe agora uma declaração sobre este artigo incluída no Tratado de Lisboa”.
Porém, a Convenção Europeia dos Direitos do Humanos teve o seu texto alterado, ao longo destes mais de 73 anos de vigência, modificações essas designadas “Protocolos”.
O ponto 2 foi justamente objeto de duas alterações.
Na primeira (Protocolo n.º 6, 1983), passou a limitar-se a pena de morte no ordenamento jurídico dos estados signatários da Convenção somente a “atos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra” e com comunicação obrigatória dessas disposições legais ao Secretário–geral do Conselho da Europa. Uma das publicações no Facebook que veicula a narrativa da introdução da pena de morte na UE apresenta um fac-símile dessa nova redação.
“ARTIGO 1°
Abolição da pena de morte
A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado.
ARTIGO 2°
Pena de morte em tempo de guerra
Um Estado pode prever na sua legislação a pena de morte para actos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra; tal pena não será aplicada senão nos casos previstos por esta legislação e de acordo com as suas disposições. Este Estado comunicará ao Secretário – Geral do Conselho da Europa as disposições correspondentes da legislação em causa.
ARTIGO 3°
Proibição de derrogações
Não é permitida qualquer derrogação às disposições do presente Protocolo com fundamento no artigo 15° da Convenção.”
Na segunda (Protocolo n.º 13, 2002, “Convenção para a Proteção dos Direitos do Humanos e das Liberdades Fundamentais, Relativo à Abolição da Pena de Morte em quaisquer circunstâncias”), foi revogada esta única e última exceção ao ponto 1, relativa aos tempos de guerra (que havia sido consagrada no Protocolo nº 6). Aliás, o fim incondicional da pena de morte nos países do Conselho da Europa ficou para sempre associado ao “Protocolo de Vilnius” (local onde foi lavrado o Protocolo n.º 13).
“ARTIGO 1°
Abolição da pena de morte
A pena de morte é abolida. Ninguém pode ser condenado a tal pena ou executado.
ARTIGO 2°
Proibição de derrogações
Não é permitida qualquer derrogação às disposições do presente Protocolo com fundamento no artigo 15° da Convenção.”
Ainda assim, e segundo a Amnistia Internacional, Grécia (2004) e Letónia (2012) aboliram a pena de morte para todos os crimes já depois da entrada em vigor deste protocolo (embora sem casos concretos de execução). Atualmente, a Bielorrússia é o único país da Europa onde se pode condenar à morte um réu.
Por fim, no Tratado de Lisboa (assim como no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia) não há qualquer referência à possibilidade da pena de morte ser reintroduzida nas legislações dos respetivos Estados-membros. Aliás, as instituições da UE vêm reafirmando o combate à sua utilização no mundo, como é visível no site do Parlamento Europeu: “O PE opõe-se fortemente à pena capital e faz esforços para que seja abolida mundialmente”; “Como parte de seu compromisso com a defesa dos direitos humanos, a União Europeia (UE) é o maior outorgante na luta contra a pena de morte em todo o mundo. Todos os países da UE aboliram a pena de morte em conformidade com a Convenção Europeia dos Direitos Humanos.”
É, portanto, falso que a União Europeia tenha introduzido no Tratado de Lisboa uma cláusula que permita aos seus Estados-membros aplicar a pena de morte, mesmo que em casos excecionais (guerra). O artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos apontado como a causa desta pretensa iniciativa foi revogado há já 22 anos.
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Este artigo foi desenvolvido pelo Polígrafo no âmbito do projeto “EUROPA”. O projeto foi cofinanciado pela União Europeia no âmbito do programa de subvenções do Parlamento Europeu no domínio da comunicação. O Parlamento Europeu não foi associado à sua preparação e não é de modo algum responsável pelos dados, informações ou pontos de vista expressos no contexto do projeto, nem está por eles vinculado, cabendo a responsabilidade dos mesmos, nos termos do direito aplicável, unicamente aos autores, às pessoas entrevistadas, aos editores ou aos difusores do programa. O Parlamento Europeu não pode, além disso, ser considerado responsável pelos prejuízos, diretos ou indiretos, que a realização do projeto possa causar.
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Avaliação do Polígrafo: