A cidade de Düsseldorf é aterrorizada, há vários meses, por um assassino de crianças e a polícia tenta, em vão, capturá-lo por diversos meios. No decurso dessas tentativas de captura, acaba por “incomodar” outros criminosos que se sentem prejudicados, já que as constantes rusgas policiais aos seus bares e estabelecimentos afastam os clientes. Desta forma, iniciam também eles uma caça ao homem.
Esta é a sinopse breve e sem spoilers do filme que Fritz Lang realizou em 1931, altura em que o cinema sonoro ainda dava os primeiros passos. Durante décadas, espectadores e críticos afirmaram que o realizador alemão tinha baseado o argumento na história real que, dois anos antes, tinha aterrorizado também a cidade de Düsseldorf. Entre fevereiro e novembro de 1929, Peter Kürten cometeu uma série de homicídios e ataques sexuais, ficando conhecido como “O Vampiro de Düsseldorf” ou “O Monstro de Düsseldorf”, pois tentava ocasionalmente beber o sangue das suas vítimas. Seria executado, por decapitação, em julho de 1931, com 48 anos.
Mas terá sido Peter Kürten a inspiração para o filme de Fritz Lang?
Não. Numa entrevista ao historiador de cinema Gero Gandert, em 1963, o cineasta alemão foi questionado sobre o tema do filme e se era verdade que o assassino (Hans Beckert) tinha sido criado a partir de exemplos contemporâneos, como Fritz Haarmann (conhecido como o “Talhante de Hanover”, matou pelo menos 24 jovens), Georg Karl Großman (terá matado 50 mulheres) ou Peter Kürten.
Na resposta, Fritz Lang explicou que era um “ávido leitor de jornais”, que lia imprensa de vários países e gostava, sobretudo, “de ler entre as linhas”. Depois acrescentou que já tinha estado interessado em milhares de temas durante a sua vida, mas um desses assuntos tinha conquistado relevância: “a humanidade”. E, neste caso em particular, para criar o personagem do assassino, o que o moveu “não foi tanto uma questão de inocência ou culpa, mas o que o leva a agir, o que faz o click“.
“Assim que acredito num tema [para um filme] fico obcecado e faço muita pesquisa. Gosto de saber o mais possível sobre cada coisa insignificante (nada é insignificante), até ao mais fino detalhe. E, como na época em que escolhi o tema para ‘M’ havia tantos assassinos em série na Alemanha – Haarmann, Großman, Kürten, Denke -, eu questionei-me sobre o que teria levado estas pessoas a agir daquela forma. Agora, exemplos contemporâneos, como os apelidou, não foram com certeza, nenhum era assassino de crianças“, esclareceu o realizador alemão.
Na altura, Fritz Lang e a mulher Thea von Harbou fizeram pesquisas exaustivas sobre crimes, tiveram inúmeras reuniões com a polícia germânica, puderam observar cenas de crimes, entrevistar criminosos na prisão, visitar instituições psiquiátricas e chegaram a viajar até Londres para conversar com detectives da Scotland Yard.
O objectivo de Fritz Lang com este filme era abordar novas temáticas na sua filmografia. O realizador precisava de novos desafios e decidiu fazer um filme mais profundo, acabando por se embrenhar numa história de contornos negros e claustrofóbicos.
Muitos viram neste filme o retrato de uma época – a decomposição da sociedade germânica na Alemanha pré-Hitler. A figura do monstro, quase patética, de aparência tão inofensiva e olhos esbugalhados, foi interpretada como símbolo do então ascendente nazismo – prenúncio das atrocidades que alguns anos mais tarde seriam cometidas nos campos de concentração. Para esta associação contribuiu o facto de o título original do filme, “Os Assassinos Estão Entre Nós” (“Morder Unter Uns”) ter sido modificado para “M” após a pressão que foi feita nesse sentido, pois temia-se que o título fosse considerado pelos nazis como uma alusão directa ao seu regime.
Hoje, no entanto, é difícil ver em “M” qualquer alusão política ou profética desse género, pois o tema forte deste filme é a crítica social. Aliás, o próprio realizador sempre elegeu como os seus filmes preferidos aqueles que abordavam esta temática, como “M” ou “Fury” (1936). Para Fritz Lang, a “crítica social” era uma crítica do mundo social nas suas leis e nas suas convenções, uma crítica a um sistema e à própria civilização.
A perseguição ou “caça ao homem” que é feita neste filme e, mais tarde, retomada em outros filmes do realizador, acaba por ter um efeito surpresa. Ou seja, partimos de um sentimento de compreensão pela dor dos familiares das vítimas para um sentimento de pena por aquele homem encolhido de olhos grandes. O assassino, quando perseguido, acaba por se tornar ele próprio uma vítima. Essa sensação começa com o assassino a olhar para o seu reflexo numa montra, olhando para si próprio, e termina na sequência final, durante o seu discurso. Nesse discurso, a personagem de Peter Lorre faz a sua confissão, mas é uma confissão que confunde o espectador, que inverte as regras do jogo porque o temível psicopata revela-se então como uma vítima, um doente mental com uma personalidade complexa. Assim, o que começava por ser um filme sobre um crime terrível, acaba também por ser um estudo sobre um assassino patológico e um olhar para dentro da sociedade e dos seus sistemas.
“M” é um marco na história do cinema, um dos primeiros filmes sonoros que soube usufruir dessa nova técnica de uma forma tão perfeita, que tirando os sons essenciais já referidos, é um filme, de resto, extremamente silencioso.
Na época do surgimento das palavras e da euforia do cinema sonoro, Fritz Lang soube conter-se e dar-nos o som mais forte – o silêncio. Ou, como diria João Bénard da Costa, antigo director da Cinemateca Portuguesa, na sua análise a este filme, “tudo reside num assobio e numa dança. Ou seja, no cinema”.
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Avaliação do Polígrafo: