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Cavaco Silva: “Não houve consenso com PS para a abertura da televisão à iniciativa privada”

Política
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
Cavaco Silva refere, no artigo que publicou esta semana no "Observador", que houve falta de “consenso” entre os seus governos e o PS relativamente à possibilidade de existência de canais privados de televisão. A alegação é falsa, uma vez que o Partido Socialista votou a favor da medida em 1990 e até apresentou, em 1986, uma iniciativa legislativa nesse sentido.

“Uma das reformas que gostaria de ter feito em consenso com o PS, e que foi uma das mais marcantes das minhas maiorias absolutas, foi a abertura da televisão à iniciativa privada e a liberalização da comunicação social.” A frase é de Cavaco Silva e é o início do ponto 4 do artigo de opinião que esta semana escreveu no “Observador”, um ponto dedicado às divergências entre os seus governos e o PS quanto à política relativa à comunicação social.

O antigo primeiro-ministro refere a falta de consenso com o PS em duas questões: abertura da televisão à iniciativa privada e a liberalização da comunicação social (privatização de alguns jornais). A verificação do Polígrafo centra-se na parte relativa à televisão, sendo que no que concerne à privatização dos jornais “A Capital”, “Diário Popular”, “Jornal de Notícias”, “O Comércio do Porto”, “Record” e “Diário de Notícias”, o PS discordava, de facto, do plano do Governo.

“Uma das reformas que gostaria de ter feito em consenso com o PS, e que foi uma das mais marcantes das minhas maiorias absolutas, foi a abertura da televisão à iniciativa privada e a liberalização da comunicação social.”

Mas será que o PS esteve contra a abertura da televisão à iniciativa privada?

O fim do monopólio estatal dos canais televisivos constava do programa do X Governo Constitucional (o primeiro liderado por Cavaco Silva, minoritário, que vigorou entre 1985 e 1987), embora estreitasse a atribuição para um setor concreto da sociedade: “É igualmente propósito do Governo, fazendo de resto jus à opinião pública já dominante e ao que se defendeu claramente em campanha eleitoral, atribuir a concessão da exploração total ou parcial de um canal de televisão à iniciativa privada, acautelando contudo a preservação de valores essenciais o que prevalentemente aponta para que o beneficiário da concessão venha a ser a Igreja Católica.”

Apesar deste propósito, foi da oposição a iniciativa legislativa para que a televisão pudesse também ter operadores privados. Em outubro de 1986, PS, PRD e CDS apresentaram na Assembleia da República Projetos de Lei (individualmente) nesse sentido.

O do PS – 274/IV/1. “Leis de base dos meios audiovisuais” – nas suas disposições gerais, logo no primeiro capítulo, consagra a possibilidade da atividade de televisão poder ser exercida quer por entidades privadas (recorrendo à via da concessão), quer por entidades públicas.

A proposta socialista foi viabilizada pelo PSD (através da abstenção), de forma a poder ser trabalhada conjuntamente com a do CDS, em sede de comissão parlamentar (a do PRD foi rejeitada, devido ao voto contra do PSD). A sua aprovação ocorreu a 31 de março de 1987, no plenário do Parlamento. No entanto, três dias depois, outra aprovação implicava mudanças profundas no país: a moção de censura ao Governo apresentada pelo PRD, o que levaria, no final desse mês de abril, o Presidente da República a dissolver a Assembleia da República.

Em julho, realizaram-se eleições legislativas e o PSD conquistou maioria absoluta. O programa do XI Governo Constitucional reiterou o objetivo de abrir à iniciativa privada a emissão televisiva, embora aligeirando o vínculo da atribuição à Igreja católica: “o Governo empenhar-se-á na rápida aprovação de uma lei de televisão, com a consequente abertura da actividade televisiva à iniciativa não estatal, objectivo hoje generalizadamente aceite (…) Nesta matéria deve ter-se presente o papel fundamental da Igreja Católica na Sociedade Portuguesa.”

“O Governo empenhar-se-á na rápida aprovação de uma lei de televisão, com a consequente abertura da actividade televisiva à iniciativa não estatal, objectivo hoje generalizadamente aceite (…) Nesta matéria deve ter-se presente o papel fundamental da Igreja Católica na Sociedade Portuguesa.”

Para que tal fosse possível, a Constituição teria de ser alterada, uma vez que no artigo 38.º (ponto 4) da sua então redação estipulava: “A televisão não pode ser objecto de propriedade privada.” PSD e PS chegaram a acordo e a segunda revisão da lei fundamental concretizou-se em julho de 1989, consagrando a abertura do sistema económico (no qual se incluía o sector da comunicação social) à iniciativa privada.

Revista a Constituição, poucos meses depois o PS criticou o Governo (e o PSD) pela alegada demora na execução da medida. A 28 de novembro de 1989, no Parlamento, a propósito do anúncio de que o seu partido iria entregar um Projeto de Lei (457/V/3) que permitiria o arranque da televisão privada em Portugal, o deputado socialista Arons de Carvalho afirmou: “A dependência da RTP perante os governos é tal, que só a existência de outros canais de televisão de propriedade privada poderá gerar o pluralismo e a liberdade deste meio de comunicação.”

“Foi o PS o primeiro partido a propor que houvesse televisão privada em Portugal, portanto só podemos estar satisfeitos com a aprovação desta lei (…) a televisão privada significa mais pluralismo e mais liberdade”.

Em fevereiro de 1990, o Governo apresentaria a sua Proposta de Lei (130/V/3) para uma nova lei da televisão. Em julho desse ano, o Parlamento acabaria por aprovar a nova lei (58/1990), designada “Regime de actividade de televisão” (com algumas alterações introduzidas relativamente ao texto do Executivo de Cavaco Silva) mas que, no essencial, permitia o arranque da televisão privada em Portugal.

O diploma mereceu os votos favoráveis do PSD, PS, PRD e Os Verdes. Nesse dia, Arons de Carvalho declarou à RTP: “Foi o PS o primeiro partido a propor que houvesse televisão privada em Portugal, portanto só podemos estar satisfeitos com a aprovação desta lei (…) a televisão privada significa mais pluralismo e mais liberdade”.

É, pois, falso que não tenha havido consenso entre os governos de Cavaco Silva e o PS relativamente à abertura da televisão à iniciativa privada.

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Avaliação do Polígrafo:

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