Em 2017, a DECO realizou um estudo no qual testou 20 produtos para hidratar os lábios, vendidos em supermercados, farmácias, perfumarias e lojas de produtos naturais. Esse mesmo estudo concluiu que 14 desses cosméticos apresentavam “substâncias potencialmente perigosas para a saúde“, sendo o Carmex uma marca que constava na “lista negra”.
Recentemente, publicações nas redes sociais, como é o caso do Tik Tok, trouxeram o tema, uma vez mais, a debate, havendo quem alegasse que o bálsamo labial Carmex poderia provocar o aparecimento de cancro.
Verdade ou mentira?
Marta Ferreira, farmacêutica pós-graduada em Cosmetologia Avançada, doutoranda em Ciências Farmacêuticas e, ainda, autora do “Livro da Pele” e do blogue “A Pele Que Habito”, afirmou, em declarações ao Polígrafo, que “a discussão da segurança em torno dos ingredientes contidos neste produto não é nova”. A farmacêutica diz que “os ingredientes são polémicos pelo facto de serem derivados do petróleo, algo que não é muito apelativo”. No entanto, garante, “isso não os torna menos seguros ou eficazes”.
De acordo com a autora do “Livro da Pele”, os óleos e ceras minerais “são usados há mais de 100 anos pela indústria cosmética e farmacêutica, e são muito diferentes do petróleo ou combustíveis fósseis, já que passam por um processo de purificação muito rigoroso, sujeito a um apertado controlo de qualidade”.
A explicação é confirmada por Pedro Meireles, oncologista do IPO Lisboa, que em declarações ao Geração V do Polígrafo indica que os óleos minerais derivam do petróleo bruto, num “processo de produção que começa com a destilação do petróleo bruto sob pressão atmosférica, seguida de uma destilação em alto vácuo”, resultando em “destilados e frações residuais, que são refinados em óleos minerais“. Estes óleos são compostos por “misturas complexas e variáveis de hidrocarbonetos, incluindo tipos aromáticos, com cadeias de carbono que contém 15 ou mais átomos e pontos de ebulição entre 300 e 600°C”.
No passado, as “técnicas primitivas de refinamento não conseguiam separar eficazmente o óleo mineral de compostos tóxicos, como os hidrocarbonetos aromáticos polinucleados”, mas atualmente, estes processos “foram padronizados para produzir óleos minerais altamente refinados, substancialmente livres de impurezas perigosas”, garante o oncologista.
Marta Ferreira explica também que “as substâncias que a DECO afirma ter encontrado nestes produtos não é surpreendente”. Segundo a especialista, tratam-se de “hidrocarbonetos dos óleos minerais MOAH (‘Mineral Oil Aromatic Hydrocarbons’) e MOSH (‘Mineral Oil Saturated Hydrocarbons’), que podem causar mutações em células e permanecem após a refinação dos óleos e ceras minerais”.
Esclarece, ainda, que a sua constituição tem por base pequenas quantidades destes compostos que “não podem ser eliminados, porém, nas quantidades em que se encontram, também não constituem um risco para a saúde humana, mesmo quando o produto pode ser ingerido, como é o caso de um batom”, como o Carmex. Este dado é igualmente confirmado por Pedro Meireiles que indica que “a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA), no seu último consenso em 2023, concluiu que a exposição dietética aos MOSH não levanta preocupações para a saúde”.
“Relativamente aos MOAH, derivado da sua estrutura altamente complexa, é necessário obter mais informação detalhada para concluir sobre eventuais riscos associados a danos no DNA, que possam potencialmente levar ao cancro. Contudo, a exposição aos MOAH teria de ser em quantidades que não são comparáveis à sua presença na composição de ceras ou batons”, explica o oncologista do IPO de Lisboa.
Detalha que “não foram observados efeitos adversos para doses diárias até 9g/m2 de superfície corporal, em 90 dias de exposição consecutiva, em testes laboratoriais em espécies animais” e que, a título de exemplo, sendo “a concentração estimada máxima destes componentes nos batons de 1-3%, isto corresponde a um máximo de 0.13g em cada bálsamo”.
Pedro Meireles adianta que “para atingir doses de 9g/m2 por dia, isso equivaleria a um mínimo de consumo de 110 batons por dia para uma mulher e 131 batons por dia para um homem”.
A DECO determinou, de facto, que existem substâncias neste produto que podem ser “potencialmente perigosas”, mas também salvaguardou que a legislação permite o uso de óleos minerais em cosméticos “se se puder provar que a substância a partir da qual foram produzidos não é carcinogénica”.
Questionada pelo Polígrafo, a associação garante que o estudo em questão não refere que o Carmex é “perigoso” ou “cancerígeno”. O que foi analisado em laboratório foi a quantidade e caracterização de hidrocarbonetos de óleos minerais presentes em batons. A mesma acrescentou ainda que o “produto foi avaliado à luz da recomendação da Cosmetic Europe (N° 14: MINERAL HYDRO CARBONS, 2014) disponível à data da publicação do estudo” e que, nessa altura, “não cumpria com essa recomendação” pelo que “seguindo o princípio da precaução, foi desaconselhado”.
Mas, “importa referir que esta informação e conclusões remontam a 2017”. A DECO afirma desconhecer “se o produto Carmex agora presente no mercado tem a mesma composição, pelo que não podem ser extrapoladas para a data de hoje”.
Voltando ao parecer de Marta Ferreira, no que diz respeito ao Carmex poder ser um fator potenciador de cancro, a doutoranda em Ciências Farmacêuticas responde que “não podemos fazer essa afirmação”. A verdade é que “todos os produtos cosméticos que estão no mercado devem dispor de uma avaliação de segurança, realizada por um avaliador com formação em toxicologia. Entre outros aspetos, nesta avaliação verificam-se se as quantidades de MOAH e MOSH ultrapassam os limites estabelecidos para os alimentos”, indica. Neste sentido, só os produtos que têm avaliação positiva é que podem estar disponíveis para os consumidores.
Não existe evidência científica robusta que confirme a correlação entre a presença destas substâncias e o aumento de casos de cancro em humanos. “Por vezes encontram-se vestígios destas substâncias em colheitas realizadas a determinados doentes com esta patologia”, contudo, “isso não indica que foram essas substâncias que estiveram na origem da doença”, sublinha. A especialista termina alegando que “o facto de encontrarmos determinadas substâncias em indivíduos doentes não nos diz se foram essas substâncias, entre tantas outras, a causar a doença”.
Já o oncologista do IPO Lisboa segue no mesmo sentido: “É necessário compreender a diferença nas definições de hazard (perigo), que é exatamente o que estamos a definir nos MOSH/MOAH – algo com potencial de ser prejudicial; e risk (risco) – probabilidade de um perigo causar dano. A presença destes produtos em cremes hidratantes para a pele, contudo, não é preocupante, porque a sua absorção é mínima.”
Conclui-se, por isso, que não existe fundamento para dizer que o batom Carmex provoca o aparecimento de cancro.
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Este artigo foi desenvolvido pelo Polígrafo no âmbito do projeto “Geração V – em nome da Verdade”, uma rede nacional de jovens fact-checkers. O projeto foi concretizado em parceria com a Fundação Porticus, que o financia. Os dados, informações ou pontos de vista expressos neste âmbito, são da responsabilidade dos autores, pessoas entrevistadas, editores e do próprio Polígrafo enquanto coordenador do projeto.
*Texto editado por Ema Gil Pires e Marta Ferreira.
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Avaliação do Polígrafo: