Apesar do susto inicial e da mistela verde no rosto e na roupa (foi mesmo obrigado a trocar de camisa), o ministro Duarte Cordeiro fez questão de prosseguir com a conferência, sublinhando pelo meio que "a intolerância nem faz as outras pessoas estar mais despertas para outros argumentos, nem serve para intimidar quem exerce funções públicas".

O ataque ocorreu no dia 26 de setembro, durante uma uma conferência sobre "energia verde" organizada pela CNN Portugal. Duas jovens ativistas contra as alterações climáticas irromperam no palco e arremessaram balões de tinta verde (que transportavam em caixas de ovos) contra o ministro do Ambiente e da Ação Climática que, posteriormente, decidiu não apresentar queixa.

No final, as ativistas foram identificadas por agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), mas não detidas.

Mas será que esses atos configuram um crime? Uma eventual investigação depende da apresentação de queixa pela vítima? E as duas jovens podem vir a ser condenadas a pena de prisão?

O Polígrafo falou com Paulo Saragoça da Matta e Pedro Barosa, dois advogados especializados em Direito Penal. Ambos concordam que se trata de um crime público que não carece de queixa.

Para começar, Saragoça da Matta explica que "aqueles atos violam dois tipos de bem jurídico". Por um lado, "viola um valor fundamental que é protegido que é a honra pessoal da pessoa concreta que é Duarte Cordeiro" e, por outro, "viola um bem jurídico que se chama a autonomia intencional do Estado". Estas duas vertentes diferem porque "a autonomia intencional do Estado não é um bem jurídico pessoal, é um bem jurídico do Estado".

O crime de injúria

"Na dinâmica pessoal, o crime que ali estaria a ser praticado é uma injúria porque o ato traduz-se num enxovalhamento da pessoa, do envergonhamento da pessoa, num ataque à sua dignidade pública pessoal", realça Saragoça da Matta.

Neste caso, falamos de "um crime particular que tem pena de prisão até três meses - ou agravada pode ir até quatro meses - e depende de queixa e acusação particular". Assim, "o Ministério Público só pode investigar se houver queixa e é o particular que acusa, o particular é que tem o papel principal", ressalva.

Relativamente a esta dimensão pessoal, Pedro Barosa não considera que possa ser tida em conta, pois o ministro estava no exercício de funções.

"Duarte Cordeiro estava a exercer as suas funções políticas num evento de carácter político e, aliás, precisamente por essa razão é que a manifestação ou protesto teve lugar nessas circunstâncias. Portanto, acho muito difícil considerar qualquer tipo de ilícito aqui praticado que não seja público, precisamente porque assume essa qualidade de ministro, de funcionário, e porque estava efetivamente nas vestes de ministro naquela ocasião", considera Barosa.

Crime de resistência e coação sobre funcionário

Retomando à esfera do crime público, em que os dois advogados estão de acordo, Saragoça da Matta indica que tais atos configuram crime de "resistência e coação sobre funcionário", disposto no Artigo 347.º do Código Penal.

"Aqui não se aplica a resistência, aplica-se a coação sobre funcionário. Funcionário é no sentido do Código Penal, ou seja, também são funcionários, para efeitos do Código Penal, aquelas pessoas que em virtude de um vínculo especial - que é um vínculo de carácter político - desempenham funções públicas ou políticas. Ora, quem empregar violência contra funcionário para se opor a que essa pessoa pratique um ato relativo ao exercício das funções, isto é um crime de coação sobre funcionário e que é punido com pena de prisão de um a cinco anos", sublinha.

Saragoça da Matta diz que "não tem de ser uma violência grave, nem tem de ter agressão física, basta que haja uma simples hostilidade que seja idónea a constranger a pessoa - neste caso o ministro - a concretizar a função que está a exercer naquele momento".

No mesmo sentido aponta Barosa, embora advertindo que o direito à manifestação é legítimo, desde que não sejam ultrapassados determinados limites. "O direito de protesto é legítimo e é natural e é compreensível e não tem nada de ilegal que os jovens queiram protestar sobre o clima. Por outro lado, não é menos verdade também que o direito à manifestação é um direito com consagração constitucional. Mas neste caso concreto, aquilo que me parece é que houve uma atuação que excedeu largamente os limites do direito à manifestação, na medida em que houve uma agressão", argumenta.

"Ao nível da qualificação dos tipos de crime, temos o crime de resistência e coação sobre funcionário. E entendo que assim deverá ser, na medida em que terá havido um emprego de violência ou ofensa à integridade física que se opôs a que o ministro pratique as suas funções", defende.

Crime de ofensa à integridade física qualificada

O advogado Pedro Barosa admite ainda a possibilidade de estar "apenas em causa o crime de ofensa à integridade física qualificada - previsto no Artigo 145.º do Código Penal, por definição do Artigo 143.º, punível com pena de prisão até quatro anos. Porque, no fundo, em sentido estrito houve uma ofensa ao corpo de outra pessoa que é considerado um funcionário, membro do Governo e, nessa medida, o crime que poderia ser simples, assume a qualidade de qualificado".

Outro crime que pode estar em causa, refere Barosa, é "o crime de perturbação de funcionamento de ordem constitucional, que é punível até dois anos de prisão, visto que o evento foi efetivamente interrompido, portanto terá havido uma perturbação".

Associação criminosa?

Em última instância, Saragoça da Matta perspetiva ainda um "eventual crime de associação criminosa que é mais difícil de ser verificável".

"Uma associação criminosa é um grupo de pessoas que se junta para desenvolver uma atividade que seja dirigida à prática de um ou vários crimes. Ora, a associação destas jovens obviamente que tem fins muito nobres - que é defender o planeta, promover a consciencialização social -, mas há uma coisa que sabemos: é que o modus operandi destes grupos passa por atirar tinta a obras de arte, tinta a políticos, insultar políticos, danificar património público", descreve.

"Apesar de não ser esta a finalidade do grupo, a lei penal diz 'finalidade ou atividade'. Ou seja, se a finalidade de um grupo é defender o ambiente, mas a atividade para atingir este fim é a prática de um ou mais crimes, aí temos a prática de associação criminosa", conclui.

MP precisa de queixa para investigar?

À exceção do crime de injúria do bem jurídico pessoal - mencionado por Saragoça da Matta - todos os crimes acima referidos são públicos, logo não dependem de queixa para que o Ministério Público (MP) inicie procedimento criminal.

"No limite, ainda que não seja apresentada queixa, pode o próprio MP - que, aliás, creio que já está a fazer - iniciar a sua investigação sem qualquer impulso por parte do ministro ou de outra pessoa", detalha Barosa.

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