“Triste de quem tenta ser alguém na vida atirando os homens uns contra os outros. Quando um homem se ajoelha na frente de Deus devia olhar para Deus com o mesmo amor com que Deus olha para nós, sem distinção de raça ou cor. Triste de quem se ajoelha só para ficar bem na fotografia, para enganar os outros e parecer um homem de bem aos olhos do povo”, escreveu Ricardo Quaresma, jogador de futebol, em mensagem publicada anteontem nas suas páginas oficiais de redes sociais.
“A seleção nacional de futebol é de todas as cores, pretos, brancos e até ciganos. Em todos bate no coração a vontade de dar a glória ao país e no momento de levantar os braços e celebrar um golo acredito que nenhum português celebre menos porque o jogador é preto, branco ou cigano. Eu sou cigano. Cigano como todos os outros ciganos e sou português como todos os outros portugueses e não sou nem mais nem menos por isso. Como homem, cigano e jogador de futebol já participei em várias campanhas de apelo contra o racismo, não porque parece bem mas porque acredito que somos todos iguais e todos merecemos na vida as mesmas oportunidades independentemente do berço em que nascemos”, defendeu Ricardo Quaresma.
E acusou: “O populismo racista do André Ventura apenas serve para virar homens contra homens em nome de uma ambição pelo poder que a história já provou ser um caminho de perdição para a humanidade. Olhos abertos amigos, o populismo diz sempre que é simples marcar golo mas na verdade marcar um golo exige muita tática e técnica. Olhos abertos amigos, o racismo apenas serve para criar guerras entre os homens em que apenas quem as provoca é que ganha algo com isso. Olhos abertos amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros… Isto se queremos chegar ao céu”.
Entretanto, Ricardo Quaresma lançou ontem uma nova publicação recordando que o antigo futebolista Artur Quaresma, num jogo entre as seleções de Portugal e Espanha, em 1938, “recusou fazer a saudação nazi“. Na mensagem que acompanha a publicação, Ricardo Quaresma sublinha que “ontem como hoje, a família Quaresma sempre soube estar do lado certo da História. E nunca se vergou nem teve medo de dizer não ao racismo“.
A publicação que Ricardo Quaresma destacou tem origem num blog e está a ser partilhada por milhares de pessoas nas redes sociais. A história em causa é verdadeira?
Sim. Há diversos registos similares – e fidedignos – desta história em artigos de jornais e livros, nomeadamente da autoria do jornalista Rui Miguel Tovar.
Contudo, Artur Quaresma não era tio-avô de Ricardo Quaresma. Desde há muitos anos que este equívoco tem sido amplamente difundido, inclusive em vários obituários de Artur Quaresma que faleceu em 2011. Na verdade, o tio-avô de Ricardo Quaresma era Alfredo Quaresma – outro antigo jogador do Clube de Futebol “Os Belenenses” e da seleção nacional – que faleceu em 2007.
Na sequência da publicação de uma primeira versão deste artigo (ontem à noite) fomos contactados por Pedro Miguel, bisneto de Artur Quaresma, o qual alertou para o facto de o seu bisavô não ter relação de parentesco com Ricardo Quaresma. Cerca de duas horas mais tarde, a publicação de Ricardo Quaresma também foi apagada nas redes sociais. E hoje surgiu uma nova publicação reconhecendo o erro, a partir da qual transcrevemos o seguinte excerto:
“Nós ciganos temos famílias grandes e o facto de existir na família um familiar, também ele jogador, na mesma altura do Artur Quaresma gerou a dúvida que ontem esclarecemos em família. Não é meu familiar mas é de certa forma meu irmão pela forma como tomou uma posição pública contra aquilo em que não acreditava e esteve do lado certo da história. Deve também ser um exemplo para todos os que preferem calar em vez de tomar uma posição pública contra aquilo em que não acreditam. Não é meu familiar mas é uma inspiração para mim e julgo que deve ser para todos nós.
O Artur da Silva Quaresma faleceu com 94 anos no Barreiro. Um homem de família que muito deu ao futebol e um exemplo de resistência. Diz o seu bisneto que o Artur Quaresma era um homem divertido, que mesmo nos maus momentos conseguia encontrar a alegria e a piada na vida. E que era um romântico sempre com um carinho bonito para que os que o rodeavam. O Artur Quaresma não é da minha família mas é irmão de todos nós”.
Recolocando o enfoque na história da saudação fascista, a título de exemplo mais recente, em artigo publicado no jornal “Diário de Notícias” (edição de 22 de setembro de 2019) sobre o percurso de vida dos irmãos Matateu e Vicente, duas antigas glórias do Clube de Futebol “Os Belenenses”, o jornalista Nuno Fernandes escreveu que “Artur Quaresma foi um dos três jogadores do Belenenses que num célebre jogo entre as seleções de Portugal e Espanha, em fevereiro de 1938, nas Salésias, numa partida combinada entre Salazar e Franco, teve a coragem de desafiar o regime. Numa altura em que era tocado o hino e jogadores e público se levantaram de braço estendido a fazer a saudação fascista, num estádio cheio de figuras ligadas ao regime e embaixadores da então Itália fascista e da Alemanha nazi, três jogadores, todos do Belenenses, recusaram-se a seguir o exemplo. Artur Quaresma manteve as mãos atrás das costas; Simões e Amaro fecharam o punho. O gesto saiu-lhes caro”.
Em entrevista ao jornal “Record” (edição de 20 de janeiro de 2004), o próprio Artur Quaresma lembrou o episódio da seguinte forma: “Fomos à PIDE e eles ficaram. Eu, deixando o braço em baixo, disse que me esquecera de o levantar. Não houve mais problemas porque o Belenenses moveu influências. Nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo. O Barreiro era foco de comunistas opositores ao regime e eu era amigo de muitos. Mas fiz aquilo sem premeditação, foi um ato natural“.
Artur Quaresma nasceu no Barreiro, distrito de Setúbal, em 1917. Começou por jogar futebol em clubes locais e destacou-se ainda jovem no Futebol Clube Barreirense, até se transferir para “Os Belenenses” em 1936. Daí a sua ligação ao Barreiro que “era foco de comunistas opositores ao regime”, entre os quais “muitos” amigos do jogador que se destacou também ao serviço da seleção nacional portuguesa – tal como Ricardo Quaresma, cerca de sete décadas mais tarde.
Como ilustração da censura e manipulação informativa que era imposta pelo regime do Estado Novo, importa salientar que logo após o jogo foi publicada na revista “Stadium” uma fotografia adulterada do momento da saudação, na qual os jogadores José Simões e Mariano Amaro apareciam com a mão direita estendida, em vez do punho fechado.
O contexto do jogo também é relevante: foi agendado mediante combinação entre os líderes ditatoriais de Portugal e Espanha, António de Oliveira Salazar e Francisco Franco respetivamente, enquanto se combatia a Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Na sequência da qual se estabeleceu o regime fascista de Franco em Espanha que vigorou praticamente até à morte do caudilho em 1975.
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Nota editorial: Este artigo começou por ser publicado na noite de 6 maio com a indicação de que Artur Quaresma era tio-avô de Ricardo Quaresma, algo que não corresponde à verdade. Fomos induzidos em erro por vários obituários de Artur Quaresma (pode conferir aqui e aqui, entre outros exemplos), além da própria publicação de Ricardo Quaresma que se referia à “família Quaresma” e partilhava um artigo que destacava no título que se tratava do seu tio-avô. Publicamos esta nova versão do artigo não apenas para sublinhar esse equívoco, pelo qual pedimos desculpa aos leitores, mas sobretudo para voltar a destacar a história (verdadeira) de Artur Quaresma que recusou fazer a saudação fascista no referido jogo disputado em 1938. Aproveitamos também para agradecer ao bisneto Pedro Miguel que nos alertou atempadamente para o erro.
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Avaliação do Polígrafo: