A hostilidade do ambiente era audível (gritos exigindo “respeito”) e visível (cartazes com a palavra de ordem “demissão” sob uma caricatura do rosto de António Costa com nariz de porco, lápis espetados nos olhos e lábios sobredimensionados (estereótipo racista, ao estilo das personagens de “Tintim no Congo”, álbum de banda desenhada de Hergé publicado em 1931, pré-descolonização do Império Belga e congéneres europeus). Mas o primeiro-ministro teve a coragem de enfrentar e até de dialogar com os manifestantes ao longo de um caminho a pé na direção de um restaurante, à margem das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, a 10 de junho, no Peso da Régua.
Durante esse percurso foi falando com alguns manifestantes, além dos jornalistas que o acompanhavam, e sucederam-se alguns momentos tensos de discussão e interrupções mútuas. “Com licença, posso agora eu [falar]? Respeito que agora é a minha vez de falar. O respeito tem de ser dos dois lados”, disse Costa a uma professora. Numa dessas situações, aliás, o primeiro-ministro considerou que os manifestantes estavam a ser “muito injustos” por “não reconhecerem o seguinte: os senhores estiveram muitos anos com a carreira congelada. Estão a protestar contra um Governo que pôs fim ao congelamento da carreira, que pela primeira vez estão com a carreira descongelada desde 2018, uma carreira que nunca teve tantos anos sucessivos de descongelamento e tem estado descongelada e com a garantia de que não volta a congelar”.
É verdade que a carreira dos professores “nunca teve tantos anos sucessivos de descongelamento”, como invocou Costa?
O Polígrafo já tinha verificado esta alegação em janeiro deste ano, quando foi proferida por outro Costa, o ministro da Educação. E apesar de já terem passado cerca de seis meses desde então, o facto é que continua a ser falsa – seja dita por António Costa ou por João Costa.
O atual sistema remuneratório dos educadores de infância e professores do Ensino Básico e Secundário assenta em dois diplomas estruturais, aprovados ainda pelo primeiro Governo de maior absoluta chefiado por Aníbal Cavaco Silva: o respetivo estatuto remuneratório (Decreto-Lei n.º 409/89) e o estatuto da carreira docente (Decreto-Lei n.º 139-A/90).
Assim, é a partir do ano letivo de 1990/91 (ou de 1 de janeiro de 1991, quando o critério a aplicar é o ano civil) que vigora a era atual, na qual podem ser distinguidos os períodos em que o tempo de serviço contou (vulgo, descongeladas) e aqueles em que foi contabilizado para a progressão na carreira (vulgo, congeladas).
Nestes cerca de 32 anos, qual foi então o maior período consecutivo em que o tempo de serviço dos professores esteve “descongelado”?
Durante toda a década de 1990 e primeira metade da seguinte, não houve qualquer suspensão da contagem temporal de trabalho dos docentes. São mais de 14 anos e seis Governos (dois de Cavaco Silva, dois de António Guterres, um de Durão Barroso e um de Pedro Santana Lopes) sem alterações, mesmo que temporárias, às regras aprovadas.
No Verão de 2005, para a redução do défice, a Assembleia da República (onde o PS detinha a maioria absoluta dos deputados) aprovou a lei que determinava “a não contagem do tempo de serviço para efeitos de progressão nas carreiras e o congelamento do montante de todos os suplementos remuneratórios de todos os funcionários, agentes e demais servidores do Estado até 31 de dezembro de 2006″, cuja entrada em vigor ocorreu a 30 de agosto.
O Governo liderado por José Sócrates prosseguiu o esforço para emagrecimento das despesas do Estado e o Parlamento, em consonância, renovou essa inibição de contagem do tempo de serviço por mais um ano.
Nos anos de 2008, 2009 e 2010, os dias de trabalho dos docentes não foram anulados para a progressão na carreira, constituindo três anos de alívio.
Mas no ano de 2011 – em plena crise de sobreendividamento e sob a ameaça da bancarrota, com o país a viver sob as várias versões do Programa de Estabilidade e Crescimento -, o segundo Governo de José Sócrates, através do Orçamento do Estado (OE) para 2011, voltou a congelar as carreiras.
E assim se mantiveram, sob o mesmo instrumento (Lei do OE), até 1 de janeiro de 2018, atravessando integralmente a legislatura do Executivo de Pedro Passos Coelho (em que três dos quatro anos foram sob o Programa de Assistência Económica e Financeira da troika) e o primeiro ano do Governo liderado por António Costa.
O segundo OE do Governo suportado ao nível parlamentar pela “geringonça” descongelaria, finalmente, a contagem do tempo. À data, os professores já levam cinco anos e seis meses com a carreira não congelada.
Deste modo, verifica-se que, atualmente, sob a vigência dos Governos de Costa, este é o segundo maior período em que os professores têm a sua carreira descongelada, mas ainda assim muito distante do período de 14 anos e quase oito meses, entre janeiro de 1991 e 29 de agosto de 2005.
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Avaliação do Polígrafo: