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Ana Catarina Mendes: “Na década de 1980 e 1990 conviveu-se como se nada fosse com o trabalho infantil”

Política
Este artigo tem mais de um ano
O que está em causa?
Ministra defendeu que foi pelas mãos do Governo socialista que foi eliminado o trabalho infantil em Portugal e que durante o período em que Cavaco Silva foi Primeiro-Ministro nada se fez para erradicar esse problema. A declaração foi proferida em reação ao lançamento do livro "O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar" do também ex-Presidente da República, mas terá Mendes razão?

“É bom lembrar como na década de 1980 e 1990 se conviveu como se nada fosse com o trabalho infantil – e está aqui o Artur Penedos para lembrar bem a guerra que fizemos no Parlamento como Governos socialistas – e hoje podemos dizer que erradicámos o trabalho infantil, que era um flagelo nessas gerações da arte de bem governar à direita”, acusou a Secretária Nacional do PS, Ana Catarina Mendes, no passado dia 15 de setembro.

A declaração foi feita durante a intervenção de Mendes numa iniciativa da Juventude Socialista, que decorreu no Porto, e seguia em resposta ao lançamento do livro “O Primeiro-Ministro e a Arte de Governar”, do antigo Presidente da República Aníbal Cavaco Silva.

Mas será que a Ministra Adjunta e dos Assuntos Parlamentares tem razão quando afirma que os Governos das décadas de 1980 e 1990 nada fizeram para erradicar o trabalho infantil?

A resposta é negativa. A legislação sobre trabalho infantil começou a dar os primeiros passos em 1981, quando, através do Decreto n.º 91/81, foi aprovada pelo Governo de Francisco Pinto Balsemão para ratificação a Convenção n.º 129 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), criada em Genebra em 1969.

A convenção visava a regulação e inspeção do trabalho no setor agrícola, encarregando o sistema de inspecção do trabalho na agricultura de “assegurar a aplicação das disposições legais relativas às condições de trabalho e à protecção dos trabalhadores no exercício da sua profissão, tais como as disposições respeitantes à duração do trabalho, aos salários, ao descanso semanal e às férias e feriados, à higiene e ao bem-estar, ao trabalho das mulheres, das crianças e dos adolescentes e a outras questões conexas”.

Cinco anos depois, em 1986, já durante o mandato de Cavaco Silva como Primeiro-Ministro (esteve neste cargo entre 1985 e 1995) foi criada a Lei de Bases do Sistema Educativo que definia que “o ensino básico é universal, obrigatório e gratuito e tem a duração de nove anos”. Ou seja, crianças até aos 15 anos de idade tinham a obrigatoriedade de cumprir a escolaridade básica.

Posteriormente, com a Lei 53/88 de 13 de maio, estabeleceu-se que o Governo estaria autorizado a “legislar sobre trabalho de menores e incentivos à frequência da escolaridade obrigatória”. Seguiu-se, no mesmo ano, o decreto-lei 286/88 que agravava as penas a aplicar pelo recurso ao trabalho de menores com idade inferior à determinada na lei para o acesso ao emprego.

No dia 21 de setembro de 1990, Portugal ratificou a Convenção sobre os Direitos das Crianças, promovida pela Assembleia Geral das Nações Unidas e a UNICEF, que refere o seguinte no seu artigo 32.º:

“1 – Os Estados Partes reconhecem à criança o direito de ser protegida contra a exploração económica ou a sujeição a trabalhos perigosos ou capazes de comprometer a sua educação, prejudicar a sua saúde ou o seu desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral ou social;

2 – Os Estados Partes tomam medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas para assegurar a aplicação deste artigo. Para esse efeito, e tendo em conta as disposições relevantes de outros instrumentos jurídicos internacionais, os Estados Partes devem, nomeadamente: a) Fixar uma idade mínima ou idades mínimas para a admissão a um emprego; b) Adoptar regulamentos próprios relativos à duração e às condições de trabalho; e c) Prever penas ou outras sanções adequadas para assegurar uma efectiva aplicação deste artigo.”

Percorrendo ainda a linha do tempo, na Lei n.º 42/91 de 27 de julho de 1991 fixa-se “a idade mínima de admissão ao trabalho em 15 anos, logo a partir da entrada em vigor do diploma, e em 16 anos, a partir de 1 de janeiro do ano seguinte àquele em que devam concluir a escolaridade obrigatória com a duração de nove anos os primeiros alunos a quem essa duração for aplicada”.

Em outubro do mesmo ano foi dado seguimento a esta lei ao estabelecer-se um novo regime para o trabalho de menores com o decreto-lei n.º 396/91 , que determina quais os requisitos para a admissibilidade de trabalho a menores de idade.

Ao Polígrafo, a advogada Rita Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, rejeita que não se tenha feito nada neste domínio durante o “período cavaquista”. “Se se está a dizer que não se fizeram diplomas legislativos na altura, passo a dizer logo que se fizeram. Se, por outro lado, se está a dizer que não houve ações de fiscalização, também não está correto. A então Inspeção-Geral do Trabalho (IGT), que agora é a ACT, desencadeou nessas duas décadas algumas ações inspetivas para verificar o trabalho infantil. Se foram suficientes, obviamente que não, mas foram feitas”, adianta.

“O trabalho infantil – que já não se chama assim desde 2003, chama-se trabalho de menores – erradica-se por duas vias: pela via legislativa, e nessa altura já existiam instrumentos legislativos que foram sendo criados à medida que os próprios órgãos internacionais também o determinaram; e pela via executiva, isto é, por ações de fiscalização”, esclarece Garcia Pereira.

Para a advogada, pode dizer-se “que o que foi feito foi insuficiente, mas que nada foi feito não“. Outra das formas de controlo do trabalho de menores, por via indireta, foi a Lei de Bases do Sistema Educativo. “Sempre que se toca na escolaridade obrigatória, toca-se no trabalho de menores”, frisa a especialista.

Foram dados passos para a erradicação do trabalho de menores. Se se conseguiu em absoluta, não, mas também não se conseguiu aos dias de hoje porque o sistema falha sempre no mesmo, que é o trabalho não declarado. Nós fomos avançando na regulamentação do trabalho infantil mas faltava nessa altura, como falta agora, fiscalização para o trabalho infantil que se faz às margens da lei”, acrescenta Garcia Pereira.

“É um fenómeno que diminuiu muitíssimo, mas, principalmente, em meios mais rurais e em atividades não declaradas não se pode dizer que se tenha erradicado completamente”, conclui sobre o trabalho de menores.

O Polígrafo contactou o gabinete de comunicação do Grupo Parlamentar do Partido Socialista (uma vez que Mendes discursou como Secretária Nacional) sobre a origem dos dados, mas não obteve qualquer resposta em tempo útil.

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Avaliação do Polígrafo:

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