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Ana Abrunhosa diz que “60% da propriedade [rústica] é detida por pessoas que já morreram”. É verdade?

Política
O que está em causa?
Em comentário na quinta-feira à tarde, na CNN Portugal, a ex-ministra Ana Abrunhosa, do PS, citou “dois números” que, na sua perspetiva, colocam alguns desafios ao trabalho de ordenamento da floresta: o facto de 98% dessa propriedade ser “privada”, mas também de 60% da mesma ser “detida por pessoas que já morreram”. Estes dados estão corretos?

“Depois de 2017 [da tragédia de Pedrógão Grande], fizemos mudanças, mas essas mudanças revelaram-se insuficientes”: a afirmação foi proferida pela ex-ministra da Coesão Territorial, Ana Abrunhosa, fazendo referência aos ajustes feitos, pelo Governo de que fez parte, ao nível da estratégia de prevenção e combate de incêndios rurais.

Em causa uma opinião, manifestada num espaço de comentário na CNN Portugal, na quinta-feira à tarde, numa semana em que vastos incêndios voltaram a impactar o território nacional. Por isso mesmo, considerou ser “importante” que os “dois partidos” com maior representação parlamentar – o PS e o PSD – “estejam unidos numa reforma que tem de continuar a ser feita, de gestão da floresta e dos territórios”.

Neste âmbito, citou “dois números”, que julgou relevantes no âmbito do debate sobre o tema. Primeiro, disse que “98% da propriedade é privada, portanto qualquer instrumento de ordenamento da floresta exige a participação dos privados”. Mas, além disso, “60% da propriedade é detida por pessoas que já morreram” – um pormenor desafiante visto que, “muitas das vezes, as partilhas demoram décadas”.

Confirmam-se estes dados? 

Sobre o primeiro dos números – “98% da propriedade é privada” –, é um valor que tem sido frequentemente citado, ao longo dos últimos dias, por especialistas na matéria (aqui e aqui, por exemplo). Aliás, o Polígrafo já tinha atestado a veridicidade, recentemente, de declarações do também socialista Sérgio Sousa Pinto, quando apontou que “praticamente toda a propriedade florestal é privada” em Portugal.

Sobre a percentagem de propriedade florestal “detida por pessoas que já morreram”, fonte oficial do Grupo Parlamentar do PS começou por explicar: “Temos dados para confirmar que 30% dos prédios rústicos pertencem a pessoas que faleceram entre 2003 e 2016 e não sabemos quantos prédios pertencem a pessoas que faleceram antes disso.”

A “fonte” desses dados seria “o Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica criado pelo Governo anterior, que procurou discutir e deixou um relatório com propostas de alteração da legislação, nomeadamente do direito sucessório, para resolver o problema das heranças indivisas, o problema de termos terrenos cujos proprietários desconhecidos”.

De facto, no documento “Relatório da 1.ª Fase – Diagnóstico” do referido grupo de trabalho, datado de fevereiro de 2022, refere-se que, de acordo com dados da Autoridade Tributária (AT), de um total de “11.515.368 prédios rústicos” analisados, “3.403.148 encontram-se em situação de herança indivisa”. Segundo a definição que consta no lexionário do Diário da República, trata-se de uma classificação atribuída ao “conjunto de bens, direitos ou relações jurídicas, que integram o património deixado pelo autor da sucessão, o falecido, que ainda não foi partilhado”. 

Contas feitas, tal “corresponde a uma percentagem de 30%” de prédios rústicos que se encontravam ainda em nome de defuntos. “Note-se que os números de prédios em situação de herança indivisa dizem respeito, apenas, às heranças indivisas declaradas como sujeito passivo de imposto do selo e de IMI, a partir de 2003”, lê-se no relatório, que conclui, portanto, que “o número real de heranças indivisas será seguramente superior, podendo haver situações em que os sucessíveis nem sequer conhecem a existência da herança indivisa”. 

Ao Polígrafo, fonte oficial do Grupo Parlamentar do PS explicou que Ana Abrunhosa, quando proferiu tais afirmações na CNN Portugal, citava números apontados, horas antes, pelo engenheiro florestal Pedro Bingre do Amaral, da Escola Superior Agrária do Instituto Politécnico de Coimbra, no mesmo canal televisivo.

De facto, pelas 11h23, o investigador disse o seguinte: “O problema não é [a floresta] ser privada, não há nenhum mal intrínseco em ser privada. O problema é que é privada, mas os donos já faleceram.” Ao que acrescentou: “Temos já dados para confirmar que pelo menos 30% dos prédios [rústicos] pertencem a pessoas que faleceram entre 2003 e 2016, mas não sabemos quantos prédios pertencem às pessoas que faleceram antes disso. Mas temos muitos indícios para crer que temos perto de 60% do território em nome de defuntos.” 

Ora, refira-se que Pedro Bingre do Amaral foi um dos especialistas envolvidos no Grupo de Trabalho para a Propriedade Rústica e, consequentemente, no relatório aqui citado – sendo, portanto, uma referência na matéria. Em março deste ano, em declarações ao “Expresso”, tinha já afirmado que, em Portugal, “30% dos prédios rústicos ainda estão em nome de defuntos” – mas que devido às especificidades da metodologia utilizada, tal “pode significar que pelo menos o dobro, ou seja 60% dos prédios rústicos, estão em nome de pessoas já falecidas”.

Pelo que consideramos, assim, que a afirmação de Ana Abrunhosa é fundamentada, embora seja de notar que os números por ela citados não passam, pelo menos por enquanto, de estimativas.

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Avaliação do Polígrafo:

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