“O que nos é revelado hoje pelo ‘Correio da Manhã’ mostra bem a radical hipocrisia do Bloco [de Esquerda]. Já estamos habituados”, destaca-se num post de 7 de agosto na página oficial do partido Chega no Facebook. Em causa está o suposto facto de o Bloco de Esquerda ser “contra deputados em exclusividade e em empresas“, mas a respetiva líder, Catarina Martins, não deixa de ter “participações sociais”.
A notícia do jornal “Correio da Manhã”, datada de 7 de agosto, apresenta o seguinte título: “PS com mais deputados que fazem acumulação.”
“São 43 os deputados que recebem subsídio de exclusividade e que têm participações em empresas. O PS tem a maioria absoluta e por isso o maior número de deputados, 120. Mas o partido também está na frente da lista dos deputados que recebem subsídio de exclusividade e têm, ao mesmo tempo, participações em empresas. Segundo a leitura que a Assembleia da República faz da lei, é permitido que os deputados tenham esta acumulação desde que não sejam pagos por funções ou cargos que desempenhem”, informa o referido jornal.
Tal como o Polígrafo verificou no dia 25 de julho, mais de 100 dias após a tomada de posse dos deputados à Assembleia da República (AR), os registos de interesses ainda não tinham sido divulgados. Mas entretanto já estão disponíveis na página da AR e, no que respeita a Catarina Martins, deputada e líder do Bloco de Esquerda, confirma-se que declara ter uma participação social de 8% (“com o cônjuge”) numa empresa denominada como Logradouro.
Importa desde já ressalvar que é uma participação social, numa empresa, no singular, e não “participações sociais” como se alega no post do Chega. Mais, Martins é casada em regime de comunhão de adquiridos e detém a referida participação social “com o cônjuge”, tal como está indicado no registo de interesses. Não tem qualquer tipo de função ou cargo, nem remuneração.
Aliás, esta informação não é nova. Em julho de 2018, o jornal “Eco” noticiou que “Catarina Martins tem posição em empresa de alojamento local. Mas é no interior do país”. Segundo essa notícia, “a coordenadora do Bloco de Esquerda detém uma posição minoritária numa empresa de alojamento local gerida pelo marido e pela sogra. Explora unidades no Sabugal. Partido diz que ajuda a combater a desertificação”.
A história remonta a 2008, quando Martins e o marido, Pedro Miguel Soares Carreira, “fundaram esta sociedade com ‘atividades comerciais na área do turismo’, no âmbito da ‘exploração de empreendimentos de Turismo no espaço rural’. Nessa altura, cada um detinha uma quota de 50%. Em 2009, a entrada de Martins no Parlamento, como deputada em regime de exclusividade, levou a alterações na gerência de empresa'”.
“Pedro Carreira manteve-se como gerente e entraram dois novos sócios: Ana Maria Manso Soares e José Manuel Carreira, sogros de Catarina Martins e proprietários de ‘grande parte’ do património explorado pela Logradouro Lda. Catarina Martins e o marido mantiveram uma ‘participação simbólica’ no negócio. Atualmente, a coordenadora do BE tem 4% da empresa“, prossegue o artigo. “E que património está aqui em causa? Desde logo, a Logradouro Lda. explora uma unidade de alojamento local com capacidade para quatro pessoas, com dois quartos e duas camas. A unidade, inscrita no Registo Nacional de Estabelecimentos de Alojamento Local (RNAL), é chamada de Casa da Marzagona”.
O imóvel está registado como alojamento local porque se trata da casa dos sogros de Catarina Martins na sua aldeia de origem, onde a família se reúne em épocas festivas. Nos períodos em que não é utilizada pelos proprietários, está disponível para turismo. De resto, a Logradouro Lda. “explora ainda quatro estabelecimentos turísticos que se encontravam abandonados no momento em que a empresa foi fundada. (…) A empresa conseguiu aprovar, no final de setembro de 2009, um projeto de ‘recuperação e reconversão de antigos palheiros para turismo rural’ no âmbito do Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN) e recebeu um incentivo comunitário de 137,3 mil euros“.
“O projeto foi avaliado em 183,1 mil euros. O património foi recuperado para turismo e, em 2011, estas quatro unidades foram registadas como empreendimentos turísticos. No total, os quatro empreendimentos explorados pela Logradouro Lda. têm capacidade para 16 pessoas. Atualmente, a empresa é gerida por Pedro Carreira e pela mãe, Ana Soares”, indica o artigo. Estes factos foram na altura confirmados pela própria visada, líder do Bloco de Esquerda.
Bloquistas defendem (e praticam) regime de exclusividade obrigatório
Ora, no “Programa Eleitoral 2022-2026” do Bloco de Esquerda propõe-se “tornar obrigatório o regime de exclusividade dos deputados e deputadas à Assembleia da República, dos executivos das autarquias locais e das entidades intermunicipais que exerçam o cargo em regime de permanência”.
“O Bloco de Esquerda considera o combate à corrupção uma prioridade. A corrupção mina as bases da confiança num Estado de Direito. A transparência é a defesa que qualifica e protege a democracia. A exclusividade no mandato dos deputados é a certeza da verdadeira separação entre interesses públicos e privados no poder legislativo“, sublinha-se no documento.
Ou seja, os bloquistas defendem que os deputados devem exercer o mandato em regime de exclusividade, não acumulando (em simultâneo) com outras funções ou cargos em empresas e respetivas remunerações. Este princípio, aliás, tem sido cumprido por todos os deputados (inclusive a própria Martins) do Bloco de Esquerda, desde a estreia na Assembleia da República em 1999.
Ventura acumulou funções remuneradas de consultor na Finpartner
Pelo contrário, nos primeiros meses na Assembleia da República, entre 2019 e 2020, André Ventura, líder do Chega, acumulou as funções (e remunerações) de deputado e consultor na Finpartner, uma empresa privada de consultoria, contabilidade e fiscalidade.
Ventura também manteve durante esses meses as funções de comentador num grupo de comunicação social, mas as colaborações de deputados com jornais e estações de televisão foram muito comuns ao longo das últimas décadas e, apesar de serem remuneradas, no entender das sucessivas Comissões Parlamentares de Ética (ou Transparência), não configuravam uma qualquer incompatibilidade, desde logo com o regime de exclusividade.
As colaborações de deputados com os media eram interpretadas como uma extensão da atividade político-partidária, não como uma atividade comercial ou empresarial ou sequer profissional. Mais recentemente, porém, esse entendimento foi modificado e apanhou Mariana Mortágua, deputada do Bloco de Esquerda, numa situação formalmente irregular que durou poucos meses.
Outro elemento a ter em conta é que o regime de exclusividade dos deputados, nas últimas décadas, não era de todo fiscalizado pelas Comissões Parlamentares de Ética ou pelos serviços da Assembleia da República. Mesmo quando foram noticiados casos de deputados em exclusividade que exerciam cargos em empresas, as consequências para os mesmos foram nulas. Na prática, o regime de exclusividade servia apenas para obter um abono suplementar, mediante uma declaração escrita sem qualquer tipo de controlo ou fiscalização.
Em suma, a publicação em causa do Chega extrapola uma situação que já foi esclarecida por Martins e distorce o sentido da proposta do Bloco de Esquerda de “tornar obrigatório o regime de exclusividade dos deputados e deputadas à Assembleia da República”. Só não classificamos como falsa devido à formulação dúbia da alegação – “Bloco de Esquerda contra deputados em exclusividade e em empresas” – que contorna a questão essencial: cargos, funções e remunerações.
__________________________________
Avaliação do Polígrafo: