A Lei dos Serviços Digitais foi um dos dossiers legislativos adotados recentemente no seio da União Europeia, prometendo trazer mudanças ao panorama digital. A sua implementação está ainda a ser efetivada, mas que impacto podemos esperar desta legislação?
O combate à desinformação é apenas um dos objetivos desta lei, cujo impacto ainda não se sente em lado nenhum a não ser em termos preventivos, face àquilo que as plataformas possam fazer no que terá que ser a sua atuação quando a lei entrar em vigor.
No sentido de fazerem já uma certa adaptação?
Eu estive na Meta, em Silicon Valley, nos Estados Unidos, há cerca de um mês, e assisti a essa preparação, com a empresa praticamente a agir perante a lei como se ela já estivesse em vigor. Nós habituámo-nos a que este fosse um mundo livre, mas agora vemos essa mesma liberdade condicionada.
Esta é uma legislação que coloca em oposição os valores relacionados com a liberdade de expressão face aos relativos à manutenção do bem-comum e à salvaguarda dos direitos fundamentais dos utilizadores. Como pode atingir-se um equilíbrio entre ambos os pratos da balança?
Durante muito tempo, achámos que essa liberdade era suficiente para salvaguardar este bem-comum, que não eram preciso regras. O que estamos a fazer agora é garantir esse mesmo equilíbrio: tentar ver se se atinge um meio-termo entre a salvaguarda da liberdade de expressão e esse bem-comum.
As medidas aqui em causa passam, nomeadamente, por remover o que é ilícito: as plataformas só são obrigadas a retirar das suas redes conteúdos ilícitos ou produtos ilícitos que vendam nos seus “marketplaces”, e não necessariamente a desinformação. Ainda que eu, como utilizadora, possa sempre recorrer do conteúdo que foi removido, para garantir esse equilíbrio.
Esse é o ponto central da questão, precisamente para não limitar a liberdade de expressão. Até porque, nesse caso, seria uma limitação se obrigássemos a retirar esse tipo de conteúdos, com as plataformas a terem de fazer, elas próprias, um pouco o papel de “polícia”.
Quanto à desinformação, considera então ser necessário adotar medidas adicionais para complementar o previsto nesta lei?
Claro. Porque a desinformação não é boa para a educação, para a democracia, para o bem coletivo, nem para o trabalho daqueles que têm a missão de informar. Enquanto leitora, eu quero ser informada, não quero ser desinformada.
De que outras formas – e com que legitimidade – poderiam os Estados-Membros monitorizar os conteúdos de desinformação difundidos nas grandes plataformas digitais?
No digital, a desinformação prolifera-se, repete-se e entra em determinadas “bolhas”, porque os nossos dados são usados para nos dizer aquilo que nós queremos que nos digam. Ao passo que nos meios de comunicação ditos tradicionais, é sempre possível confrontar um canal com outro, um jornal com outro, e as diversas visões dos diferentes profissionais que lá trabalham. No digital não: muitas vezes, nós só lemos aquilo que queremos ler; aquilo que as plataformas sabem que nós queremos ouvir. Então, quando estão a decorrer campanhas políticas e se entra no âmbito da publicidade política, torna-se ainda mais perigoso.
Importa lembrar que foram situações desta natureza que desencadearam realidades como o “Brexit”, o que se passou no Capitólio, nos Estados Unidos e, antes disso, a campanha de Donald Trump, que se tornaram exemplos clássicos de desinformação. Mas isso também pode acontecer noutras áreas, como vimos durante a pandemia de Covid-19. É por isso que também há medidas para obrigar as plataformas a controlos especiais em situações de crise, como aconteceu nesse caso. Também para que elas possam fazer auditorias e encontrar meios – porque hoje com a Inteligência Artificial pode fazer-se muito mais neste sentido -, para combater a desinformação.
A desinformação não é boa para a educação, para a democracia, para o bem coletivo, nem para o trabalho daqueles que têm a missão de informar
Que formas existem, por parte dos produtores de desinformação, de contornar esta legislação para continuar a recorrer às principais redes sociais como forma de atingir os seus objetivos? É um receio da parte dos legisladores?
Quem é legislador, e eu já fui, quando está a legislar numa área onde o poder económico é muito grande, sabe que corre sempre esse risco. O que significa que, da parte de quem tem essa função, e sobretudo de quem for responsável por aplicar este regulamento a nível europeu – a Comissão Europeia – e a nível nacional, nos Estados-Membros, há que monitorizar muito bem se não existem formas criativas de aplicar a lei ou de fugir à mesma. São leis novas, leis que interferem com atores económicos, com plataformas com muito poder. E, por isso mesmo, perante aquelas que têm mais de 45 milhões de utilizadores, é a própria Comissão Europeia a fazer esse trabalho. Essas plataformas já estão identificadas, embora no futuro possam vir a ser outras. Já assistimos a várias mudanças neste domínio. Mas diria que esse poder ficou muito bem centralizado na Comissão Europeia.
E esse também é um objetivo deste regulamento: que as regras sejam as mesmas para todos. Porque eu não estou a ver um Estado-membro, sozinho, a ter a capacidade e o poder de enfrentar estes atores se não tivesse este apoio num regulamento comum, numa coordenação entre as várias autoridades que vão, nos Estados-membros, ocupar-se dele, e se não existir essa própria centralização, na Comissão Europeia, do papel de interação com os atores mais poderosos.
Que impacto pode prever-se da entrada em vigor desta regulamentação em Portugal? Que mudanças se prevêem no ambiente digital num país como o nosso?
É preciso esperar. O digital, felizmente e infelizmente – pois tem vantagens e desvantagens -, é um mundo sem fronteiras. Acho que devemos esperar, em toda a União Europeia, que o regulamento seja efetivamente aplicado. E, portanto, temos de ter aqui indicadores de monitorização para saber se a desinformação está a diminuir, se o conteúdo ilícito está a ser devidamente combatido, se os produtos de contrafação deixaram de estar no mercado, se deixamos de receber tanta publicidade dirigida, se podemos usar os nossos direitos para receber informação nas nossas redes sociais de uma maneira diferente. Tudo isto são direitos novos que vão ser criados. Se os direitos forem efetivos, o regulamento está a ter impacto. Se não forem, temos de revê-lo.
Estes serão, então, os benefícios desta nova lei?
Exato. Eles serão, principalmente, para os utilizadores do mundo digital – seja nas plataformas de pesquisa ou de discussão política, seja na marcação de hotéis, como no Booking, ou nos “marketplaces”, por exemplo na Amazon. Esses são os benefícios: o facto de eu passar a saber a quem compro. Mas eles também existem para as pequenas empresas, que também vendem nos “marketplaces”. Há aqui muitas regras que as beneficiam.
Em que sentido?
Por exemplo, uma pequena empresa que vende através de uma plataforma destas, passa a poder ter acesso aos dados das suas vendas, o que não acontece atualmente. Mas, naturalmente, no que toca a uma lei, só no final é que se sabe.
Uma empresa que começa a ser reconhecida por muitos como promotora de desinformação… isso não é bom para a organização
Quais são os principais desafios apresentados às plataformas visadas, como o Facebook e a Google, com a implementação desta legislação?
No caso das grandes plataformas, a verdade é que elas vão ser obrigadas a fazer auditorias para avaliar o risco de desinformação ou outros riscos que decorrem do exercício da sua atividade, bem como a ter códigos de conduta para determinadas áreas. Sobretudo no caso dos conteúdos lesivos, isso é mais importante.
Neste mundo, temos de viver com regras. Sabemos desde o século XIX que, se o mercado for deixado a si próprio, se destrói a si próprio. As primeiras leis da concorrência que surgiram nos Estados Unidos, como o “Sherman Act”, foram para proteger o mercado. Para esse mercado que tem tantas vantagens. A liberdade de mercado tem de ser protegida.
Mas existirão, também, ganhos para as próprias plataformas com esta Lei dos Serviços Digitais?
Uma empresa cuja reputação é posta em causa – no caso do Facebook isso aconteceu -, isso também não lhe é muito favorável. E nós vimos a Meta preocupada com isso. Pode dizer-se que a empresa estava a falar para os deputados da Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu e que só se fosse estúpida é que teria outro tipo de discurso. É verdade que pode ser isso e que o será em certa parte, até porque estamos a falar de empresas muito profissionais. Mas, atualmente, a responsabilidade das empresas perante os seus utilizadores é cada vez maior também.
Portanto, uma empresa que começa a ser reconhecida por muitos como promotora de desinformação… isso não é bom para a organização. Vir uma ex-funcionária, com informação interna, referir que a organização optava pela desinformação em detrimento da informação, porque rendia mais “gostos” e aumentava o preço da publicidade – o que sabemos que é verdade -, não é positivo. Mas quando isto se torna demasiado público, as empresas também sofrem custos reputacionais. Ninguém tem o mercado assegurado ad aeternum, portanto isso pode ter custos efetivos para uma empresa.
Como é que se responde àqueles que consideram que está aqui em causa um “excesso de regulação” face aos serviços digitais?
Não sei se será um excesso ou se não o será. Aqui, no Parlamento Europeu, negociamos muito, com elementos mais pró-regulação e outros menos pró-regulação, e penso que chegámos a um ponto muito equilibrado. Nós vamos, sobretudo, focar as regras nos grandes operadores. Não quer dizer que não existam, também, regras para os médios operadores, mas o grande foco é nos grandes. Agora vamos ver se conseguimos fazê-lo. Eu acho que esta legislação é equilibrada, tomara que ela consiga aplicar-se tal como foi desenhada.
Tal passaria por conseguir-se, por exemplo, a remoção de conteúdos e de produtos ilícitos que concorrem indevidamente com produtos lícitos: ou seja, que não são contrafacionados, que pagam impostos e aos seus trabalhadores e que são seguros para os consumidores. Acho que deixar difundir tudo, por via das grandes plataformas, sem ninguém saber quem é que pôs lá o produto, sem rastrear a sua “vida” antes de chegar ao consumidor, não é bom para o mercado, porque o mesmo é feito de quem vende, mas também da segurança e da confiança de quem compra e de quem usa.
Esta lei já sofreu um processo evolutivo. Considera que poderia ser ainda mais ambiciosa?
Como disse, considero que a proposta foi equilibrada. A relatora até foi do meu grupo político e teve bastante em conta as outras opiniões, porque caso contrário não conseguia chegar a um acordo. No Parlamento Europeu é assim que funciona: às vezes, até achamos que devíamos ter ido mais longe em certas matérias, mas, no final, o que se consegue é o acordo possível. E aqui só se fazem acordos se – olhando para o caso do meu grupo político -, à direita, pelo menos os liberais estiverem de acordo. Porque, à esquerda, mesmo com o grupo político d’Os Verdes não conseguimos a maioria. As propostas que saem do Parlamento Europeu são equilibradas nesse sentido, ou seja, obedecem a uma profunda negociação. Às vezes estamos juntos em propostas mais disruptivas, noutras vezes não conseguimos a maioria para elas.
Tendo em conta a nossa falta de experiência regulatória nesta área, esta é uma proposta equilibrada. E se os principais objetivos forem atingidos, é uma excelente proposta para fazer com que estes grandes atores e estas grandes empresas difusoras de informação, não filtradas – pois cada um partilha lá o que quer -, também contribuam para democracias mais saudáveis, que estão a ser atacadas. Não é apenas a desinformação sobre o creme de beleza que aqui está em causa, falamos também aqui de coisas mais graves. Como vimos com o caso do Capitólio ou das vacinas contra a Covid-19, de desinformação ou de divulgação de conteúdos ilícitos que trazem consequências graves.
Mas não houve certos direitos do utilizador das plataformas digitais que poderiam ter sido salvaguardados de uma forma mais severa através desta legislação?
As pessoas têm o direito, cada vez mais, a ver os seus dados protegidos de publicidade que não pediram para ver, e de terem a garantia de que os seus dados sensíveis não podem ser utilizados. Aí está um ponto onde nós gostaríamos de ter ido mais longe, mas não conseguimos. Protegemos os menores da publicidade direcionada a esses perfis da população, de forma a não os deixarmos receber publicidade que fomente o consumo de certo tipo de jogos, por exemplo. Protegemos o uso de dados sensíveis, como a orientação sexual, a religião ou etnia, mas não protegemos outro tipo de dados que gostaríamos de ter protegido ou impedido o seu uso para o direcionamento da publicidade. Mas este foi o acordo possível.
Quais são os principais obstáculos à implementação de uma lei desta natureza?
Quando uma lei é nova, o obstáculo, em primeiro lugar, é não estarmos treinados, nem termos autoridades treinadas com a lei – nem a nível nacional, nem a nível europeu. Com a Lei dos Mercados Digitais (Digital Markets Act) estamos um pouco mais familiarizados, porque é mais um problema de concorrência e de abuso de poder económico. Neste caso, não: estamos a aprender, fazendo. Esse é um primeiro obstáculo, o treino das autoridades. Acho que esta rede que se vai criar entre as mesmas, e depois as orientações que vão ser produzidas na sequência deste diploma, serão muito importantes para esse treino. Claro que também temos de ter em conta o poder de quem estamos a regular, que não gosta que o façamos.
Existem consequências para as plataformas se não cumprirem o que está previsto na lei? Como será feita essa regulação?
Existem sanções muito pesadas. E para a reincidência também. No sentido em que, se não cumprirem a legislação, tal como está fixado no diploma, prevê-se uma penalização de um máximo de 6% do volume de negócios anual da empresa. E estamos aqui a falar do seu volume de negócios a nível mundial, portanto não são brandas as sanções. Fora os custos reputacionais.
Espera-se que sejam eficazes, pelo menos, ao ter um efeito dissuasor?
Da minha experiência, diria que elas são necessárias, primeiro, para ter esse efeito dissuasor. Em segundo lugar, quando são aplicadas, têm também um grande efeito sobre os restantes atores, para não se sentirem impunes. O pior que pode haver, em qualquer lei, é o sentido de impunidade. De saber que ela está lá, mas sentir que posso fazer o que quero pois não serei descoberto ou sancionado por isso. Por vezes, um único caso de aplicação de sanções basta para ter um efeito dissuasor.
No Parlamento Europeu estamos também preocupados com essa questão, por isso criámos para estes dois diplomas uma espécie de Comissão de Acompanhamento da sua implementação. Que é uma excelente medida, sobretudo quando se trata de diplomas novos, com tanto impacto e tão disruptivos. Até porque, no fundo, somos os primeiros a legislar nestes termos em todo o mundo, como aconteceu, aliás, com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Digamos que o grande objetivo geopolítico, se assim se pode dizer, é marcar o modelo quanto a este tema e, também, em matérias de Inteligência Artificial (IA), que estamos já aqui a discutir, no sentido de levar outras zonas do mundo a seguir o exemplo.
Que importância tem o jornalismo de verificação de factos no âmbito deste objetivo de tentar garantir um “espaço digital mais seguro”, como prevê o próprio regulamento?
É muito importante que ele seja feito de forma independente. Se nós virmos que o “fact-checking” é feito apenas sobre certos atores, deixando os outros mentir à vontade, estamos perante um enviesamento. Agora, se for feito de uma forma mais geral, diria que ele é, em si próprio, um incentivo a um maior rigor, o que é muito importante. E isto não quer dizer que uma pessoa não se possa enganar, pois quem anda à chuva pode sempre molhar-se de vez em quando. Eu já estive em várias posições políticas diferentes e é claro que se soubermos que vamos ser escrutinados, provavelmente vamos ser mais cuidadosos e mais rigorosos na informação que damos. Portanto, se essa verificação for feita de forma geral, acho que é saudável para a política. E não só, porque pode existir “fact-checking” de empresários, de todos aqueles que falam para o público e de quem tem opinião.
Nota editorial: o Polígrafo viajou a convite do Parlamento Europeu