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Piero Leirner, antropólogo: “Caminho de Bolsonaro para o poder seguiu uma lógica de guerra” (COM VÍDEO)

Este artigo tem mais de um ano
Aos 100 dias de Governo de Bolsonaro, Piero Leirner, antropólogo e professor da Universidade Federal de São Carlos, afirma que desde a campanha eleitoral o Brasil vive uma espécie de ‘guerra híbrida’ - e explica os motivos que despertaram os militares para um novo ciclo de participação política.

Em geral, o Exército tem boa reputação em pesquisas de opinião, apesar da ditadura militar. Numa uma entrevista, afirmou que as Forças Armadas têm um certo ressentimento pelo facto de os civis “não se interessarem por elas” e que, por isso, se fecham mais. Agora, elas estão novamente abertas, ocupando cargos no governo e sendo consideradas fiadores da estabilidade do governo. Como avalia esse cenário? Porque voltaram ao poder?

Para se entender melhor como estas perguntas se conectam, precisamos inicialmente de partir de uma distinção: uma avaliação é a opinião pública sobre a instituição militar e o seu papel até recentemente. Evidentemente, depois de três décadas obliterada pela sua própria lógica intramuros, exceto quando se colocava em campanhas de visibilização (“Braço forte, mão amiga”) com inúmeras ações de assistência social – que sem dúvida podem ser contabilizadas numa estratégia maior de ações “psicossociais” –, o que ficou foi um saldo positivo. Totalmente diferente de quando se está numa vidraça, como é o caso da maior parte do mundo político. Ao mesmo tempo, é notavelmente paradoxal que esta “retração” em direção aos quartéis provocou também uma queda do prestígio social da pessoa militar, que ficou muito afastada do relacionamento com o establishment. Quando é que, há poucos anos, você diria que os militares seriam vistos como “elite”? Trata-se de um quadro muito distinto, por exemplo, do norte-americano, que firmou uma elite baseada num complexo financeiro-industrial-militar. O que passou a ocorrer agora? Ou, pelo menos, de há uns anos para cá, desde 2010 ou 2011? Algo até certo ponto inédito, que foi um conjunto de ações de alguns militares que procuraram galvanizar vários agentes em torno de um projeto que visava estabelecer uma nova elite do poder. Do meu ponto de vista, isso partiu de oficiais do topo, da reserva e depois da ativa, e que depois se espalharam numa rede em que um foi puxando o outro. Como eles agora entram no radar como pessoas de elite, correm o risco de operar o paradoxo no sentido contrário, que é afetar negativamente a instituição.

Ele [Bolsonaro] estabeleceu uma autoridade carismática em relação à base, enquanto era mantido ao mesmo tempo com cautela e tolerância pelo topo.

Considera que pode existir um jogo ambíguo entre os militares e Bolsonaro? Até onde essa relação é sustentável? E por que motivo Bolsonaro foi o “eleito” pelos militares dentro da cadeia de comando do Exército?

Qual é, do meu ponto de vista, a ambiguidade? O facto de, num dado momento – fim de 2014 –, o comando das Forças Armadas ter franqueado o acesso de Bolsonaro aos quartéis. Ele passou a frequentar formaturas, por exemplo, e tinha canal aberto para oficiais da base, aspirantes e sargentos. Fez campanha com todas as letras, está tudo registado no YouTube. Qual é o ponto, então? Ele estabeleceu uma autoridade carismática em relação à base, enquanto era mantido ao mesmo tempo com cautela e tolerância pelo topo. Criou-se uma relação quase de tipo “sindical”, com PMs inclusive, um “Jango às avessas” – porque alimentado pelo topo. Porquê ele? Porque ele tem carisma – uma espécie de carisma mnemônico, porque é baseado em elementos extremamente repetitivos; mas não só. Desde cedo ele fidelizou-se a grupos de pressão de militares da reserva, que atuavam como células de extrema-direita, dando-lhes voz no Congresso. Esses grupos foram uma base importante da articulação dessa nova “elite do poder” que mencionei acima. Então, desse ponto de vista, o que parece uma contradição tem, na verdade, um fundo sintético. E obviamente traz problemas, pois criou-se uma arquitetura em que a base está plugada ao presidente através de uma autoridade carismática, enquanto se dirige ao topo através de uma autoridade burocrática. No meio disso, temos as pessoas que vão entrando na máquina através de relações pessoais. É uma situação bem difícil, e realmente não sei como os comandos das Forças vão distanciar a tropa da política.

Poderíamos dizer que é uma rotação entre um sentido “clássico”, baseado em Clausewitz, para uma adaptação pós-moderna baseada em Sun-Tzu, onde a “latência” da guerra se sobrepõe ao choque – aliás, o “choque” passa a fazer parte também de uma estratégia de “comunicação”. Nesse sentido, a avaliação é de que agora não há distinção entre “guerra e paz”.

Sair da “caserna” para os cargos de poder é um risco para a democracia? Já afirmou que “deveria motivar reflexões sobre o perigo de misturá-la [instituição militar] com a política”.

Não necessariamente. Não tenho nada contra alguém se aposentar e procurar algo para fazer. É melhor do que ficar toda a tarde no Clube Militar destilando as adversidades. O risco todo aqui foi outro: terem deixado a política entrar com tudo dentro da caserna. Isso foi responsabilidade dos comandantes desde 2014, pelo menos, e também de Dilma e Temer, que nada fizeram. Não tenho o menor problema em dizer isto: Dilma tinha que ter esticado a corda e convocado o Conselho de Segurança Nacional para mandar os militares tomarem uma providência quanto à escuta que foi exposta. É óbvio que eles poderiam recusar-se, e ela seria forçada a demitir alguns. Se havia crise, no mínimo deveríamos ter sido expostos a ela, e não blindados por todos os lados. Depois dessa, ninguém mais poderia dizer que “as instituições estão a funcionar normalmente”, quando não estavam e não estão. Portanto, risco à democracia foi nada ter sido feito, e agora quem fala alguma coisa passa por maluco.

bolsonaro

Qual é o conceito de guerra híbrida e como é que ele mudou – se é que mudou – da campanha eleitoral para cá (há exemplos?) já com Bolsonaro como presidente? Quais são esses elementos identificáveis com uma estratégia militar?

O conceito de guerra híbrida não é daqui. Mas, como a própria guerra híbrida, ele também produz confusão. Teoricamente ele foi “inventado” nos e pelos EUA por volta de 2005, 2007. O position paper sobre o assunto é de um tenente-coronel do USMC, fuzileiros navais dos EUA, Frank Hoffman, e o ponto principal é um “giro epistemológico” em relação às guerras convencionais.

As redes, especialmente o WhatsApp, funcionaram como células semi-independentes que operavam como “estações de repetição”.

 

Poderíamos dizer que é uma rotação entre um sentido “clássico”, baseado em Clausewitz, para uma adaptação pós-moderna baseada em Sun-Tzu, onde a “latência” da guerra se sobrepõe ao choque – aliás, o “choque” passa a fazer parte também de uma estratégia de “comunicação”. Nesse sentido, a avaliação é de que agora não há distinção entre “guerra e paz”, e portanto os teatros de operação produzem “efeitos híbridos”, como o borramento entre civis e militares. O resultado disso – falando muito resumidamente e com o risco de estar distorcendo muito – é que os princípios mais cruciais para o resultado da guerra dão-se sobretudo na esfera da cognição, pois o que realmente importa é deixar o cenário o mais cinzento e indistinto possível, a ponto de manobrar as ações do inimigo a partir “de dentro” e sem que este saiba que está sendo manipulado. Por isso, talvez o principal set são as chamadas “operações psicológicas”, e os seus protagonistas, as “forças especiais”, que podem atuar quase que de maneira autônoma – ao modo de células, ainda que recebam comandos de longe. A partir daí é quase guerra por “controlo remoto”, baseada na cooptação de agentes que vão produzir os efeitos desejados numa “abordagem indireta”. Em poucas palavras, é a terceirização multinível das guerras. Os russos diagnosticaram isso precocemente e perceberam esse movimento sendo usado nas chamadas “revoluções coloridas”, que atingiam seu entorno geopolítico. Como resultado, mostraram que a essência da guerra híbrida é operar a partir de uma corrosão da política local, através de “agentes coloridos”, e que quem faz isso são os EUA: invadem, infiltram, cooptam e, finalmente, fazem os outros lutarem por procuração. No Brasil, parece que vivemos ainda uma terceira forma, ou uma segunda geração de guerra híbrida, pois de certa maneira a guerra híbrida foi produzida por setores do próprio Estado, nomeadamente do Judiciário. O Estado corroeu-se “por dentro”, e a perpetuação dos métodos – abordagem indireta, camuflagem, criptografia – estende-se até agora.

Qual é o papel das redes sociais nessa lógica da guerra híbrida?

Isso está no livro do Andrew Korybko [Guerras híbridas – das revoluções coloridas aos golpes, 2018, Expressão Popular], muito bem analisado. Ele faz um estudo de caso a partir do Facebook. A partir dele eles identificam, cooptam sem saber e manipulam. A rede e os algoritmos encarregam-se do resto. Produzem o que ele chama de “estratégia de enxame”. No caso daqui eu iria além. Como disse numa entrevista, as redes, especialmente o WhatsApp, funcionaram como células semi-independentes que operavam como “estações de repetição”.

Jair Bolsonaro quis proibir familiares de médicos estrangeiros de trabalhar no Brasil?
créditos: Poligrafo

A sua horizontalidade garantia que, se uma caísse, as demais manter-se-iam e que nunca se chegaria ao centro da rede, ou emissor central. É bem básico dessas táticas de Opsi [operações psicossociais] e de Forças Especiais produzir criptografias e camuflagens com a tal “abordagem indireta”, é um esquema de “bombas semióticas” que não se tem ideia de onde foram disparadas.

Por isso, toda a gente fica desnorteada, perde a sensação do real. E num modo de “dissonância cognitiva”, as pessoas tendem a correr atrás de qualquer viés de confirmação. Onde vão procurar? No vizinho, no parente que mandou o WhatsApp. É então que ocorre o “enxame”, ou, se quiser, o “efeito manada”. Finalmente, quando se está nesse modo, dificilmente se restabelece um parâmetro “central”. Por isso mesmo, a guerra híbrida tem uma enorme inércia, e não parou nem vai parar no dia da posse nem nos primeiros 100 dias. As pessoas continuam no “modo campanha”.

O que vemos desde a campanha? O uso intensivo de contradições, vai e volta, caneladas.

Como avalia esses posicionamentos considerados “mais razoáveis” do vice-presidente e general Mourão comparados com os de Bolsonaro? Ele tenta, em vários momentos, ser o “polícia bonzinho”, digamos. Antes das eleições não era assim. Qual é o significado disso?

Bem colocado: a estratégia parece mesmo a de filme americano, “o bom polícia e o mau polícia”. Ambos querem a mesma coisa, e o bom polícia usa o mau polícia para operar uma fratura no adversário. Aí tenho uma pequena discordância em relação à pergunta, pois o método é o mesmo desde a campanha. Só que agora ele convergiu para essa dupla, que é ao mesmo tempo a central de informações e contra-informações operando diretamente no núcleo do Estado. E o que vemos desde a campanha? O uso intensivo de contradições, vai e volta, caneladas. Toda a gente entra em dissonância, e então o “good cop” aparece com a solução de ordem. Para mim, o significado é que este é um padrão que tende a permanecer, mesmo que se mude certas posições e se inclua mais personagens. O que importa é o clima constante de ameaça e contradição.

Nota editorial: esta entrevista é publicada ao abrigo do protocolo de republicação entre o Polígrafo e a Agência Pública de Jornalismo Investigativo. Para ler o texto original, clique aqui.

 

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