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Entrevista a Paul Jay, autor do livro que Julian Assange segurou ao ser preso

Este artigo tem mais de um ano
Paul Jay, jornalista e autor do livro em que relata conversas com o falecido filósofo Gore Vidal, afirma que, ao mostrar a sua obra "Gore Vidal: History of The National Security State" no momento em que foi preso na Embaixada do Equador, o fundador da Wikileaks quis denunciar Estado de Segurança Nacional dos EUA.

Quando o ativista Julian Assange foi arrastado por policias para fora da Embaixada do Equador em Londres, a 11 de abril, pondo fim a sete anos de exílio, um facto chamou a atenção de quem assistiu à cena ao redor do mundo: o fundador da Wikileaks segurava, entre as mãos algemadas, o livro “Gore Vidal: History of The National Security State”. Trata-se de uma coleção de entrevistas do falecido romancista e ativista político norte-americano Gore Vidal. A obra, até então pouco conhecida, tornou-se rapidamente um best-seller.

O livro, publicado em 2014, é uma parceria entre Gore Vidal e o jornalista Paul Jay, editor do site americano The Real News Network, conhecido por ter uma linha editorial progressista. Em entrevista à Agência Pública, Jay explicou a tese trazida pelo livro brandido por Assange: como a militarização dos EUA após a Segunda Guerra Mundial criou uma narrativa do medo que aponta ameaças internacionais, exigindo constantes investimentos na indústria armamentista – e como o Estado americano se tornou dependente dessa narrativa.

Pode resumir o conceito de Estado de Segurança Nacional dos EUA e o termo da Presidência Imperial, na visão de Gore Vidal?

Depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA emergiram como o único superpoderoso do mundo. E, em vez de reduzir o tamanho e o investimento nas Forças Armadas e voltar à chamada “era de paz” os EUA encontraram-se numa posição em que poderiam, essencialmente, dominar o mundo.

O país construiu um complexo industrial militar que teve início na Primeira Guerra, mas em maior escala na Segunda Guerra. Muito da economia norte-americana foi militarizada e isso permaneceu por muitas razões. A primeira é que o gasto militar era visto como uma forma de lidar com a potencial recessão do pós-guerra. Mas, principalmente, eles viram que poderiam encontrar grandes vantagens económicas em controlar a Europa, o Japão e, até mais importante, a Ásia, a África e a América Latina. A justificação para criar esse complexo militar era que a União Soviética representava uma ameaça e os EUA tinham que se defender.

É muito claro que toda a ideia de que a União Soviética era uma ameaça militar era infundada. Mas isso ajudou a justificar gastos massivos na construção do arsenal nuclear dos EUA e de todo o complexo militar. Então o argumento de Gore é como esse Estado Nacional de Segurança se tornou uma parte predominante tanto da economia como do Estado. E para justificá-lo, eles precisam de continuar tendo ameaças.

Assange
Paul Jay, autor do livro em que relata conversas com o falecido filósofo Gore Vidalcréditos: Agência Pública

O fundamental aqui é que a questão é ganhar dinheiro e não defender o povo americano. É taxar e extorquir o povo norte-americano a pagar por tudo isso. Porque isso dá vantagens comerciais a corporações norte-americanas e quantidades enormes de dinheiro às indústrias dos EUA. E isso defende interesses estratégicos, como o petróleo no Oriente Médio ou na Venezuela. A questão é a oligarquia dos Estados Unidos, mantendo sua posição como a mais rica e poderosa oligarquia do mundo. Essa é a principal função do Estado Nacional de Segurança.

Acredita que, com a eleição de Trump, esse Estado Nacional de Segurança, um estado de exceção criado pelo medo como ideologia, foi aprofundado?

Acredito que está em uma posição mais agressiva e desafiada. Isso porque os EUA não são mais, realmente, o único grande poder do mundo.

Hoje não sei se o Estado Nacional de Segurança está mais profundo agora, só está a lidar com uma situação na qual especialmente a China tem uma economia que está a tornar próxima do tamanho da economia dos EUA. De acordo com analistas militares dos EUA, as Forças Armadas Chinesas estão a alcançar as americanas. Talvez seja verdade. Acredito que a China tem um poder regional. Regionalmente a China já está a par do que os EUA podem fazer com forças convencionais na Ásia.

Então não acho que o Estado de Segurança Nacional está aprofundado, está apenas a lidar com uma nova situação. Ele está muito poderoso. A proposta de orçamento do Pentágono era menor do que o orçamento destinado pelo próprio Trump e pelo Congresso para a área. Eles estão a construir toda uma nova geração de armas nucleares, têm porta-aviões que custam 14 bilhões de dólares cada. A única razão para ter esses porta-aviões é projetar poder. Não há nada de defensivo num porta-aviões.

A maior parte das indústrias militares garante que produzam armas em todos os estados dos Estados Unidos de forma com que todos os estados tenham empregos dependentes disso. Então quando se fala sobre cortes no orçamento militar, todos os estados, em teoria, perderiam empregos.

O mais perigoso neste momento é que eles precisam do “quase-guerra”. Eles gostam de “quase-guerra” no Oriente Médio, e no momento o alvo principal é o Irão. E quanto mais perigoso fica mais armamento os americanos compram, mais armamento os sauditas compram, os israelitas, os egípcios… Os militares de todo o mundo vão à loucura.

livro

Acredita que a própria perseguição a Assange e à Wikileaks são consequências desse Estado Nacional de Segurança?

Com certeza. O ponto sobre as guerras norte-americanas, o pior pelo menos, é que a maior parte delas cometem crimes de guerra. A guerra do Iraque, do Vietnam, ambas foram crimes de guerra por si só, apenas por terem sido conduzidas. Não foram guerras defensivas. De acordo com a ONU, a única guerra legítima é quando há uma ameaça iminente de ser atacado. Nenhuma das guerras americanas desde a Segunda Guerra Mundial aconteceram porque os EUA estavam sob ameaça de ataque iminente. Então foi uma guerra ilegal atrás da outra. A cultura das Forças Armadas americanas é ser super-ultra-agressiva. E tudo isso depende do segredo. O povo americano claramente opôs-se à Guerra do Vietnam, e quando ouviu as histórias das atrocidades, isso inflamou a opinião pública.

Considerando que ele [Assange] teve muito tempo para pensar no dia em que seria preso e que nos três dias antes da sua prisão era óbvio que estava para acontecer, eu não acho que ele apenas pegou algo para ler. Ele fez um esforço para mostrar o livro a todos enquanto estava algemado. Ele está a dizer ao mundo que o Estado de Segurança Nacional norte-americano está a chegar a si, porque ele expôs seus segredos.

O que Chelsea Manning expôs e a Wikileaks divulgou foi diretamente ao coração dessa ameaça ao Estado de Segurança Nacional, porque eles não querem que o povo norte-americano saiba quão bárbaros são os soldados americanos e a guerra americana. Então o Estado de Segurança Nacional dos EUA não quer apenas evitar que [essa fuga de informação] aconteça de novo. Na realidade, quer mandar a mensagem de que ninguém se pode meter com eles. Não há dúvidas de que querem apanhar Assange para provar esse ponto.

Ele está a ser acusado pelo que fez com Chelsea Manning. E neste ponto, como um jornalista, e pensando no trabalho jornalístico da Wikileaks, havia uma obrigação de expor os crimes de guerra. E toda essa patetice sobre documentos classificados e de como isso prejudicou os EUA… Não, os crimes de guerra feriram os EUA! Os crimes de guerra em nome do povo norte-americano feriram a América. A única diferença é que o Pentágono alega que Julian ajudou Chelsea a conseguir os documentos, e isso o tornou um pouco mais proativo do que só receber a informação. É patetice. A questão fundamental é que eles expuseram crimes de guerra e muitos jornalistas fazem muitas coisas para conseguir os seus furos jornalísticos.

Como jornalista e editor-chefe de um veículo jornalístico independente, acredita que a prisão de Assange é uma ameaça à liberdade de imprensa?

É definitivamente uma ameaça para delatores. Houve mais prisões de delatores durante o governo de Obama, então isso é uma política real do Estado de Segurança Nacional: assustar os delatores. Para os jornalistas, sim e não. É certamente uma mensagem de que se você ajudar a fonte de alguma forma eles irão contra você. Mas eles não foram atrás de nenhum dos jornais que trabalharam com a Wikileaks, o que incluiu o New York Times, o Washington Post, jornais na Alemanha, no Brasil e em todas as partes do mundo que foram parceiros da Wikileaks. Nenhum deles foi denunciado porque eles não podem provar que qualquer um desses jornais ajudou Chelsea. Então ainda não está claro.

Em algumas entrevista o senhor disse que não sabia que Julian estava lendo seu livro, mas que acredita que ele escolheu segurá-lo durante o momento de sua prisão para passar uma mensagem.

Considerando que ele teve muito tempo para pensar no dia em que seria preso e que nos três dias antes da sua prisão era óbvio que estava para acontecer, eu não acho que ele apenas pegou algo para ler. Ele fez um esforço para mostrar o livro a todos enquanto estava algemado. Ele está a dizer ao mundo que o Estado de Segurança Nacional norte-americano está a chegar a si, porque ele expôs seus segredos.

Nota: esta entrevista é publicada no âmbito da parceria de republicação que o Polígrafo mantém com a Agência Pública de Jornalismo Investigativo, um dos mais prestigiados órgão de comunicação social brasileiros. Para ler o texto no site da Agência Pública, clique aqui.

 

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