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João Ferreira: “Um país não se desenvolve com salários baixos”

Este artigo tem mais de um ano
Em entrevista ao Polígrafo, o ex-eurodeputado e atual vereador da Câmara Municipal de Lisboa, João Ferreira, garante que o PCP nunca "alimentou ilusões acerca da natureza" da denominada "geringonça", pois desde 2015 que o PS "não rompia com aspectos estruturantes da política de direita". Justifica o chumbo do OE2022 com uma "distância" que nunca foi "tão grande entre o que são as necessidades e as possibilidades". E defende a importância de aumentar o salário mínimo nacional para um valor que, ainda assim, "não impede gente que trabalha de ser arrastada para uma situação de pobreza".

Os eleitores do PCP compreenderam a votação do partido no Orçamento do Estado para 2022 (OE2022) ou vão deixar transparecer a sua indignação nas próximas eleições legislativas?

Tem havido tentativas de manipular a situação criada com a não aprovação do OE2022, não propriamente no sentido de ajudar a resolver problemas e dificuldades que o país enfrenta e que as pessoas enfrentam, mas no sentido contrário. Ou seja, de procurar responsabilizar aqueles que, até ao fim, se esforçaram por encontrar no OE2022 e para lá dele as respostas de que o país precisa.

 

Por um lado temos o PCP a responsabilizar o Governo do PS e o primeiro-ministro António Costa pela intransigibilidade nas negociações, por outro lado temos o Governo do PS e o primeiro-ministro a responsabilizarem o PCP…

Isto não pode ser visto como uma mera troca de argumentos de um lado e do outro. Costuma-se dizer que “contra factos não há argumentos”. Hoje são conhecidos um conjunto de aspectos relativos à discussão que teve lugar a respeito do OE2022 que demonstram onde é que esteve a intransigência e onde é que esteve, até ao fim, a procura de soluções. A discussão – que hoje é pública – relativamente ao salário mínimo nacional, a soluções para o Serviço Nacional de Saúde (SNS), torna claro que houve quem tivesse procurado fazer um caminho de aproximação a posições que não eram as suas e quem se tivesse mantido intransigente.

 

“Houve quem tivesse procurado fazer um caminho de aproximação a posições que não eram as suas e quem se tivesse mantido intransigente”.

 

A questão do aumento do salário mínimo nacional foi o gatilho para o fracasso das negociações com o Governo?

É um exemplo. Entre outros. Desde há dois anos que o PCP tem vindo a defender a fixação do salário mínimo nacional nos 850 euros, num momento em que a Alemanha vai chegar aos 2.000 euros e em que a Espanha, aqui ao lado, atingirá os 1.000 euros. E defendemos de forma lógica e consequente os 850 euros. Admitimos, porém, um caminho de aproximação, que passou por defender os 800 euros, quando o PS defendia os 705 euros. Quando o PS se mantinha fixo nos 705 euros, defendemos os 755 euros, como ponto de um trajeto que nos levaria aos 800 euros até ao final do ano.

 

Um salário mínimo de 850 euros em Portugal é uma visão realista para as pequenas e médias empresas? António Costa justificou na entrevista à RTP o porquê de um aumento gradual de 40 euros este ano, dizendo que as pequenas e médias empresas não suportariam o aumento exigido pelo PCP…

Essa é uma discussão tão antiga quanto a do salário mínimo nacional. Todos nos lembramos ainda do argumento utilizado quer por parte de forças da direita quer pelo patronato, quando em 2015 e em cada um dos anos que se seguiam se decidiu aumentar o salário mínimo nacional. Aquilo que se verificou foi que não apenas os aumentos, apesar de insuficientes, representaram uma melhoria nas condições de vida das pessoas que auferem o salário mínimo, mas sobretudo que este aumento constituiu-se como um dos fatores que possibilitaram níveis de crescimento económico que o país não conheceu até essa altura.

O aumento dos salários é não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade do ponto de vista de objetivos de desenvolvimento. Um país não se desenvolve com salários baixos. Estamos a falar, no caso do salário mínimo nacional, de um valor que não impede gente que trabalha e que tem um salário seja arrastada para uma situação de pobreza. Nenhum país se pode conformar com isto, muito menos alguém que se afirme à esquerda.

 

 

Desde a formação da geringonça no final de 2015, o PS nunca deixou de votar muitas vezes alinhado com o PSD e o CDS-PP na Assembleia da República, sobretudo para reprovar propostas do PCP e do BE. Apesar disso o PCP continuou a aprovar sucessivos Orçamentos do Estado. Só agora é que deram conta desse alinhamento que se intensificou a partir de 2019?

Não só sempre soube como sempre fez questão de o assinalar. Não foi o PCP que alimentou ilusões acerca da natureza da solução política encontrada em 2015. O PCP sempre situou o posicionamento do PS como o de alguém que não rompia com aspectos estruturantes da política de direita. O PCP, mesmo quando deu o seu voto favorável a sucessivos Orçamentos do Estado, não deixou de dizer que representando avanços pontuais importantes que valorizamos, e que por isso viabilizávamos com o nosso voto, que aqueles Orçamentos não estavam a responder como era possível e necessário a todos os problemas que o país enfrenta.

 

“Não foi o PCP que alimentou ilusões acerca da natureza da solução política encontrada em 2015. O PCP sempre situou o posicionamento do PS como o de alguém que não rompia com aspectos estruturantes da política de direita”.

 

Mas o PCP continuou a viabilizar e agora, perante aquele que tem sido classificado como “o Orçamento mais à esquerda de sempre”, decidiu chumbar…

Isso é um chavão, uma frase de propaganda que não encontra sustentação no concreto. Um Orçamento tem que ser compreendido em função, desde logo, do que são necessidades a que tem de responder, as possibilidades de resposta. E depois, face às possibilidades que existem, que resposta é que assegura. O que se verificou neste Orçamento é que, nunca como agora, há uma distância tão grande entre o que são as necessidades e as possibilidades.

Ficou demonstrada a evidência de que existem possibilidades de resposta que não existiam noutros momentos. Apesar disso, o nível de concretização dessa resposta é menor do que aquilo que aconteceu noutros momentos. Não considero nem creio que se possa considerar um Orçamento à esquerda aquele que, perante uma situação como aquela que o SNS hoje enfrenta, não tome medidas básicas de defesa. Isso não é de esquerda, por muito que alguns insistam nesse chavão.

A forma como o PS recusou, por exemplo, propostas do PCP no domínio da fiscalidade que visavam aumentar a receita do Estado, chamando a um contributo dos rendimentos do capital superior àquele que tem sido dado para a coleta de impostos, permitindo com isso aliviar os impostos sobre o trabalho. Isto é de esquerda? Discriminar negativamente o trabalho em relação ao capital?

 

“O que se verificou neste Orçamento é que, nunca como agora, há uma distância tão grande entre o que são as necessidades e as possibilidades”.

 

© Polígrafo / Nuria Leon Bernardo

 

Refere-se às possibilidades, o facto de as regras europeias do défice orçamental estarem suspensas neste período levou o PCP a assumir esta posição de maior exigência?

O PCP sempre fez neste Orçamento, tal como nos anteriores, uma discussão muito focada no que são as respostas concretas, os problemas e as respostas que o Orçamento deve assegurar. Num momento em que tanta gente se pronunciou durante meses sobre um Orçamento sem nunca falar no seu conteúdo, isto pode parecer algo fora da caixa, mas de facto o PCP sempre teve esta atitude. E por isso trouxemos não uma, duas ou três, mas um conjunto de questões para esta discussão.

As questões dos rendimentos, a necessidade de valorização dos rendimentos por via dos salários da Administração Pública, mas também dos salários em geral. As questões do SNS, de outros serviços públicos como é o caso da Educação. Temos milhares de jovens sem professores neste momento e temos professores no desemprego. As questões da habitação, que ganharam uma dimensão hoje que não tinham há cinco ou seis anos. A questão das creches, da valorização das pensões, dos lares, que ficou à vista com a pandemia…

 

Mas porquê esta posição de maior exigência, neste momento, defender quase uma obrigatoriedade de dar resposta a essas questões?

Em primeiro lugar porque as necessidades estão aí, os problemas existem…

 

Agravados pela pandemia?

Exatamente. Nós dissemos nos Orçamentos anteriores: “Atenção, isto representa avanços pontuais mas não se está a responder a todos os problemas”. Um problema, quando não se lhe responde, não desaparece. A maior parte das vezes, acumula-se, avoluma-se. E também a necessidade de lhe responder ganha uma premência cada vez maior.

Estou a falar de situações, por exemplo o SNS, em que as medidas que hoje são necessárias para o defender, a questão da defesa do SNS coloca-se hoje de uma forma diferente da que se colocava em 2015 e 2016. Desde logo porque nestes últimos anos houve uma drenagem de profissionais do SNS para o setor privado que põe em causa a própria existência do SNS.

 

“A questão da defesa do SNS coloca-se hoje de uma forma diferente da que se colocava em 2015 e 2016. Desde logo porque nestes últimos anos houve uma drenagem de profissionais do SNS para o setor privado que põe em causa a própria existência do SNS”.

 

Nas exigências que o PCP fez ao Governo do PS, a maior parte das propostas visava beneficiar a Função Pública. Desde a valorização das carreiras e salários dos profissionais de Saúde, o aumento salarial da Função Pública acima dos 0,9% propostos pelo Governo… O PCP tornou-se um partido da Função Pública?

Não. As propostas que o PCP apresentou no OE2022 não visavam especialmente defender a Função Pública.

 

Na fase final das negociações…

Até à última hora houve três questões em cima da mesa. Nenhuma delas tem especialmente que ver com a Função Pública. A questão do salário mínimo nacional, a questão da caducidade da contratação coletiva e a questão do SNS, nenhuma destas três tem que ver particularmente a Administração Pública.

Não podemos ignorar o facto de vivermos num país onde há 10 anos que os funcionários públicos perdem poder de compra, sendo que este Orçamento do Estado resultava em mais um ano a perder poder de compra. Com o aumento dos 0,9%, de acordo com o que são as estimativas atuais, ficará sempre abaixo da taxa de inflação. Isto não deve sossegar ninguém, sobretudo quando passámos por uma experiência como a da pandemia, onde percebemos a importância que tem determinado tipo de funções sociais do Estado, que não podem ser plenamente desempenhadas sem garantir a quem as assegura condições dignas de salário e de carreira.

 

“Não podemos ignorar o facto de vivermos num país onde há 10 anos que os funcionários públicos perdem poder de compra, sendo que este Orçamento do Estado resultava em mais um ano a perder poder de compra. Com o aumento dos 0,9% (…) ficará sempre abaixo da taxa de inflação”.

 

Como é que se explica que o PCP tenha aprovado o OE2019 que resultou num superavit inédito, mas que agora tenha chumbado o OE2022 que previa um défice de -3,2%?

A cada Orçamento do Estado há uma avaliação de um quadro de necessidades com que o país se confronta, de possibilidades de resposta a essas necessidades e, depois, uma avaliação sobre em que medida é que o Orçamento do Estado responde ou não a essas necessidades. Nós sempre considerámos que nunca respondeu por inteiro, sempre ficou aquém do que se exigia. A questão é que, este ano, a distância verificou-se bastante maior por via da intransigência do PS.

Houve apesar de tudo, noutros momentos, uma possibilidade de conseguir, mesmo que contra a vontade do PS, mover o PS das suas posições para ir ao encontro de medidas que nós achávamos necessárias. Desta vez não foi e eu acho que se vai tornando claro porque é que não foi: houve, da parte de intervenientes vários, uma atuação que convergiu na opção que se tomou de convocar eleições.

 

 

Do ponto de vista ideológico do PCP, um Orçamento do Estado baseado em “défice zero”, ou próximo desse nível, será sempre “mau” ou “insuficiente”?

Nós não descuramos a importância de haver um equilíbrio nas contas públicas, mas esse equilíbrio deve ser encarado não apenas no horizonte imediato, mas no horizonte temporal mais ou menos alargado. Na situação em que estamos, não há nenhum país que não tenha défice das contas públicas. Por uma simples razão: os países foram confrontados com uma situação em que se tornou imperioso acorrer ao apoio às famílias, à economia. Reforçar serviços públicos, por exemplo a Saúde… O PCP, no Orçamento para este ano, deu um contributo grande para que assim fosse, para que o Orçamento desse essa resposta, evidentemente que com défice, tal como aconteceu na generalidade dos países da União Europeia e até do mundo.

Na segunda parte da entrevista ao Polígrafo, João Ferreira alerta para o perigo das maiorias absolutas e defende que "a solução não é aliviar o PS dos condicionamentos, mas alterar essa relação a favor do PCP". Considera ser improvável a eleição de uma maioria parlamentar de direita, embora sublinhe a urgência de "responder aos problemas concretos nas vidas das pessoas". E revela que vai explorar "muitas contradições" do programa de Carlos Moedas na Câmara Municipal de Lisboa.

É uma demonstração de como a questão do equilíbrio das contas públicas se tem de encarar num horizonte temporal mais ou menos alargado. A questão não é tanto o ter ou não ter esse equilíbrio, a questão é como é que se alcança esse equilíbrio. E há hoje um conjunto de determinações e de imposições da União Europeia que forçam a que esse equilíbrio seja encontrado de uma determinada forma que se tem demonstrado negativa para o país. Mas essa não é a única forma possível.

Nós percebemos, nos últimos anos, desde 2015, a importância que teve na diminuição do peso da dívida o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). Para um país como Portugal, altamente endividado, a forma mais eficaz de reduzir o peso da dívida não é o caminho que tem vindo a ser defendido pela União Europeia, e que o Governo seguiu no essencial, mas sim o crescimento económico. O rácio da dívida sobre o PIB tem no crescimento económico a forma mais rápida de reduzir o peso da dívida. Não tem sido esse o caminho seguido pelo Governo que entendeu acatar um conjunto de determinações e imposições da União Europeia.

 

“Nós não descuramos a importância de haver um equilíbrio nas contas públicas, mas esse equilíbrio deve ser encarado não apenas no horizonte imediato, mas no horizonte temporal mais ou menos alargado. Na situação em que estamos, não há nenhum país que não tenha défice das contas públicas”.

 

Entendeu acatar ou foi obrigado a acatar? Essas determinações estão nos Tratados da União Europeia que assinámos e ratificámos…

Quem conhecer minimamente a História do processo de integração europeia percebe que uma coisa são as regras e outra coisa é a aplicação dessas regras que é fruto de uma negociação permanente. Negociação onde conta muito a vontade de um Estado ou de um Governo e a sua capacidade de defender os interesses do seu país. Ora, isso não se verificou. Desta vez, o Pacto de Estabilidade foi suspenso antes da sua violação, mas houve situações em que aconteceu a posteriori quando determinados países decidiram não cumprir o Pacto de Estabilidade.

Portanto, não, não resulta de nenhuns escritos sagrados. Foi o Governo que entendeu submeter-se a essas limitações que trouxeram prejuízo à capacidade de resposta do país. Quando hoje olhamos para problemas crónicos que temos, como o défice produtivo, tecnológico, demográfico, a emigração de gente qualificada, encontramos também aí algumas das explicações.

 

Jerónimo de Sousa apontou, recentemente, a subordinação à União Europeia e ao Euro como uma das grandes fontes de discórdia com o PS. Podemos concluir que, para o PCP, seria preferível sair da União Europeia e do Euro?

O PCP tem relativamente a isso uma posição que vem de há muito tempo. Nós não defendemos a saída da União Europeia, embora entendamos que não podemos perder de vista que o processo de integração é fruto de uma negociação permanente em que conta muito a vontade de um país para defender os seus interesses. Nós precisamos de contrariar, recusar, rejeitar imposições que vêm da União Europeia que são contrárias ao interesse nacional.

 

Dentro da União Europeia…

É evidente. Até aproveitando contradições que hoje existem no seio da própria União Europeia, tendo noção de que, se o fizéssemos, não seríamos provavelmente os únicos. A questão é se nas oportunidades que tivemos e que temos, a intervenção do Governo português foi de molde a aproveitar essas contradições e em criar espaço para rejeitar essas imposições ou, pelo contrário, se somou ao acordo daqueles que pretenderam fortalecer imposições que são lesáveis do interesse nacional.

Quanto à questão do Euro, eu creio que hoje está demonstrado – foi uma daquelas questões que a vida veio a demonstrar e veio a dar razão ao PCP – que a evolução do país desde o momento de adesão à moeda única dá razão aos alertas que então o PCP fez de que o país não estava preparado para essa decisão. Que seria profundamente lesiva dos interesses nacionais e dos interesses dos trabalhadores e do povo português. Se olharmos hoje para a realidade portuguesa nestes anos, e até de outros países, dentro e fora, chegamos a essa conclusão.

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Nota editorial: A segunda parte desta entrevista será publicada hoje, 15 de novembro, às 12 horas.

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