Uma acusação de violação que as mulheres não fizeram, testemunhos adulterados, pressão do Reino Unido para não largar o caso, um juiz parcial, uma prisão numa penitenciária de segurança máxima, tortura psicológica – Julian Assange enfrentou tudo isso e agora corre risco de uma extradição para os EUA, onde pode enfrentar até 175 anos de prisão por expor crimes de guerra.

Os Estados Unidos pedem a extradição do fundador do Wikileaks com base na Lei de Espionagem por ter publicado documentos secretos do governo americano. Enquanto aguarda o julgamento do pedido, Assange está num presídio de segurança máxima na Inglaterra.

Pela primeira vez, o Relator Especial sobre tortura da ONU, Nils Melzer, fala em detalhes sobre as descobertas explosivas da sua investigação ao caso do fundador do Wikileaks. Melzer é taxativo ao explicar por que o caso de Assange o interessa – e por que deveria interessar a todos que se importam com a democracia. “Julian Assange foi intencionalmente torturado psicologicamente pela Suécia, Inglaterra, Equador e pelos EUA”, diz.

“A coisa realmente horripilante nesse caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem matar sem medo de punição e o jornalismo transforma-se em espionagem. Está a tornar-se um crime dizer a verdade”.

Nils Melzer, por que motivo está a Relatoria Especial de Tortura da ONU interessada em Julian Assange?

Isso é uma coisa que o ministro das Relações Exteriores da Alemanha também me perguntou recentemente. Isso está dentro do seu mandato, como relator para tortura? O Assange é vítima de tortura?

Qual foi sua resposta?

O caso está sob meu mandato de três maneiras diferentes: primeiro, Assange publicou provas de tortura sistemática, mas ao invés dos responsáveis pela tortura, é o Assange que está sendo perseguido. Segundo, ele mesmo foi tão maltratado que agora está a exibir sintomas de tortura psicológica. E terceiro, ele está prestes a ser extraditado para um país que detém pessoas como ele em condições de detenção que a Amnistia Internacional descreveu como tortura. Em suma: Julian Assange denunciou práticas de tortura, foi ele mesmo torturado e poderia ser torturado até a morte nos Estados Unidos. E um caso desses não deveria ser da minha responsabilidade? Além disso, esse caso tem grande importância simbólica e afeta todos os cidadãos de países democráticos.

Porque não assumiu o caso antes, então?

Imagine um quarto escuro. De repente, uma pessoa coloca luz sobre um elefante no quarto – e revela criminosos de guerra, ou corrupção. Assange é o homem com a lanterna.Os governos ficam primeiro em estado de choque, mas depois desviam a luz da lanterna com acusações de violação. É uma manobra clássica para manipular a opinião pública. O elefante desaparece mais uma vez na escuridão. E Assange vira o foco da atenção, no seu lugar. E nós começamos a discutir se ele está a andar de skate na embaixada ou se está a alimentar o seu gato corretamente. De repente, todos sabemos que ele é um violador, um hacker, um espião e um narcisista. Mas os abusos e crimes de guerra que ele denunciou desaparecem na escuridão. Eu também perdi o foco, apesar da minha experiência profissional, que deveria ter-me deixado mais atento.

Vamos começar pelo começo. O que o levou a assumir esse caso?

Em dezembro de 2018, os advogados dele pediram-me para intervir. Inicialmente recusei. Eu estava sobrecarregado com trabalho e não estava familiarizado com o caso. A minha impressão, altamente influenciada pelos media, também foi direcionada pelo preconceito de que o Assange era de certa maneira culpado e queria manipular-me. Em março de 2019, os seus advogados abordaram-me uma segunda vez, porque uma série de fatores indicavam que em breve ele seria expulso da embaixada do Equador em Londres. Eles enviaram-me alguns documentos importantes e um resumo do caso e eu percebi que minha integridade profissional exigia que eu pelo menos olhasse para o material.

Imagine um quarto escuro. De repente, uma pessoa coloca luz sobre um elefante no quarto – e revela criminosos de guerra, ou corrupção. Assange é o homem com a lanterna.

E então?

Rapidamente percebi que algo estava errado. Era uma contradição que não fazia sentido para mim, com minha extensa experiência legal: por que uma pessoa seria submetida a nove anos de uma investigação preliminar por violação, sem ser indiciado?

Isso é incomum?

Eu nunca vi um caso parecido. Qualquer um pode iniciar uma investigação preliminar contra qualquer pessoa simplesmente indo à polícia e acusando outra pessoa de um crime. As autoridades suecas, no entanto, nunca se interessaram em ouvir o depoimento de Assange. Eles deixaram-no num limbo intencionalmente. Imagine ser acusado de violação durante nove anos e meio por todo um aparato de Estado e pelos media, sem nunca ter tido a chance de se defender porque nenhuma acusação formal foi feita.

Você diz que as autoridades suecas nunca se interessaram em ouvir o depoimento de Assange, mas os media e as agências governamentais pintaram uma imagem completamente diferente durante estes anos: de que Julian Assange teria fugido da Justiça sueca para evitar a condenação.

Foi isso o que eu sempre achei, até que comecei a investigar. O oposto é a verdade. Assange apresentou-se às autoridades suecas em muitas ocasiões, porque ele queria responder às acusações. Mas as autoridades bloquearam-no.

O que quer dizer com “as autoridades bloquearam-no”?

Permita-me começar do começo. Eu falo sueco fluentemente e assim fui capaz de ler todos os documentos originais. Mal pude acreditar no que li: de acordo com o testemunho da mulher em questão, a violação nunca aconteceu. E não apenas isso: o testemunho da mulher foi alterado pela polícia de Estocolmo sem o seu envolvimento, para que de alguma forma parecesse que houve uma violação. Eu tenho todos os documentos comigo, os e-mails, as mensagens.

“O testemunho da mulher foi alterado pela polícia” como?

Em 20 de agosto de 2010, uma mulher chamada S. W. entrou numa esquadra de Estocolmo, juntamente com uma outra mulher chamada A. A.
A primeira mulher, S. W., disse que teve relação sexual consensual com Julian Assange, mas ele não usou um preservativo. Ela disse que estava preocupada com o facto de ele a ter possivelmente infectado com HIV e queria saber se podia forçar Assange a fazer um teste. Ela disse que estava muito preocupada. A polícia anotou seu depoimento e imediatamente informou procuradores. Antes mesmo de o interrogatório acabar, S. W. foi informada que Assange seria preso sob suspeitas de violação.

O que quer isso dizer?

S.W. nunca acusou Julian Assange de violação. Ela negou-se a participar noutros interrogatórios e foi para casa. Apesar disso, duas horas depois, uma manchete apareceu na primeira página da Expressen, um tabloide sueco, dizendo que Julian Assange era suspeito de ter cometido duas violações.

Duas violações?

Sim, porque havia uma segunda mulher, A. A. Ela não queria apresentar queixas também, apenas estava acompanhando S. W. à delegacia. Nem foi interrogada naquele dia. Depois disse que Assange a assediou sexualmente. Eu não posso afirmar, claro, se isso é verdade ou não. Só posso apontar para a ordem dos acontecimentos: uma mulher vai até a esquadra de polícia. Ela não quer apresentar uma queixa, mas quer pedir um teste de HIV. A polícia então decide que isso pode ser um caso de violação e um assunto para procuradores públicos. A mulher recusa-se a colaborar com essa versão dos acontecimentos, vai para casa e escreve a uma amiga que não era sua intenção, mas a polícia queria “colocar as mãos” em Assange. Duas horas depois, o caso está nos jornais.

Hoje sabemos que os procuradores filtraram o caso para a imprensa – e fizeram-no sem que tivessem pelo menos chamado Assange para depor. E a segunda mulher, que supostamente foi violada de acordo com a manchete do dia 20 de agosto, só foi interrogada no dia 21 de agosto de 2010.

O que a segunda mulher disse quando foi interrogada?

Ela disse que disponibilizarás o seu apartamento a Assange, que estava na Suécia para uma conferência. Um pequeno apartamento de um quarto. Enquanto Assange estava no apartamento, ela voltou mais cedo a casa do que o planeado e disse-lhe que não havia problema, e que eles dois poderiam dormir na mesma cama.

A mulher recusa-se a colaborar com essa versão dos acontecimentos, vai para casa e escreve a uma amiga que não era sua intenção, mas a polícia queria “colocar as mãos” em Assange. Duas horas depois, o caso está nos jornais.

Naquela noite eles tiveram sexo consensual, com preservativo. Mas ela disse que durante o sexo, Assange intencionalmente furou a camisinha. Se isso for verdade, então foi, claro, um crime sexual, chamado stealthing. Mas a mulher também disse que só percebeu depois que o preservativo estava furado. Isso é uma contradição que deveria ser esclarecida. Se eu não percebi, então não posso saber se o outro o fez intencionalmente. Nenhum traço de DNA de Assange ou de A. A. foi detectado na camisinha que foi apresentada como prova.

wikileaks

Como é que as duas mulheres se conheciam?

Na verdade elas não se conheciam. A. A., que hospedava Assange e que trabalhava como sua assessora de imprensa, conheceu S. W. num evento no qual S. W. estava usando um casaco de caxemira  rosa. Ela aparentemente sabia, de Assange, que ele estava interessado em dormir com S. W., porque numa noite ela recebeu uma mensagem de um conhecido dizendo que ele sabia que Assange estava hospedado com ela e que ele, o conhecido, gostaria de contactar Assange. A. A. respondeu: Assange aparentemente está a dormir agora com a “cashmere girl”. Na manhã seguinte, S. W. falou com A. A. pelo telefone e ela disse que também havia dormido com Assange e estava preocupada sobre ter possivelmente se infetado com HIV.

Essa preocupação, aparentemente, era real, porque S. W. foi a uma clínica consultar-se. A. A. então sugeriu: vamos à polícia – eles podem obrigar Assange a fazer um teste de HIV. As duas mulheres, porém, não foram à esquadra mais próxima, mas a uma afastada, onde uma amiga de A. A. trabalhava como polícia – foi ela quem posteriormente interrogou S. W., inicialmente na presença de A. A., o que não é a prática apropriada.

Até aí, porém, o único problema era a falta de profissionalismo. A malevolência intencional das autoridades só se tornou aparente quando elas imediatamente disseminaram a suspeita de violação através da imprensa tabloide, e o fizeram sem interrogar A. A. e em contradição com o depoimento de S. W.

Isso também violou uma clara proibição da lei sueca sobre divulgar nomes de supostas vítimas ou acusados de ofensas sexuais. O caso então chamou a atenção da promotora-chefe da capital sueca e ela encerrou as investigações de  violação depois, com a justificativa de que, apesar dos depoimentos de S. W. serem críveis, não havia evidências de que o crime fora cometido.

Mas o caso realmente avançou. Porquê?

O supervisor da agente que conduziu o interrogatório escreveu-lhe um e-mail a pedir-lhe para reescrever o depoimento de S. W.

O que é que ela mudou?

Não sabemos, porque o primeiro depoimento foi alterado diretamente no computador e já não existe. Nós só sabemos que o original, de acordo com a procuradora-chefe, aparentemente não continha nenhuma indicação de que um crime havia sido cometido. Na forma editada, o depoimento diz que os dois tiveram relações sexuais muitas vezes – consensuais e sem preservativo. Mas de manhã, de acordo com o depoimento editado, a mulher acordou com ele tentando penetrá-la sem preservativo. Ela perguntou: “Você está com preservativo?” E ele disse: “Não.” Então ela disse: “É bom você não ter HIV”. E permitiu que ele continuasse. O depoimento foi editado sem o envolvimento da mulher em questão e não foi assinado por ela. É uma prova manipulada sobre a qual a polícia sueca construiu a história de uma violação.

Por que as autoridades suecas fariam isso?

O timing foi decisivo: No final de julho, o Wikileaks – em cooperação com o New York Times, o The Guardian e a revista Der Spiegel – publicaram os Diários da Guerra no Afeganistão. Foi uma das maiores fugas de informação da história do exército americano. Os EUA imediatamente exigiram que todos os seus aliados enchessem Assange de processos criminais. Não sabemos de todas as conexões, mas a empresa Stratfor, uma consultora de segurança que trabalha para o governo dos EUA, aconselhou oficiais americanos a afogar Assange com todos os tipos de processos criminais pelos próximos 25 anos.

Ela perguntou: “Você está de preservativo?” E ele disse: “Não.” Então ela disse: “É bom você não ter HIV”. E permitiu que ele continuasse. O depoimento foi editado sem o envolvimento da mulher em questão e não foi assinado por ela. É uma prova manipulada sobre a qual a polícia sueca construiu a história de um violação.

Por que Assange não se entregou à polícia na ocasião?

Ele entregou-se. Eu disse isso anteriormente.

Então elabore, por favor.

Assange descobriu sobre as acusações de violação através da imprensa. Ele entrou em contato com a polícia para prestar depoimento. Apesar de o escândalo ter sido publicado, ele só pôde fazer isso nove dias depois, quando a acusação de que ele violou S. W. não estava mais a ser investigada. Mas os procedimentos relacionados com o assédio sexual de A. A. continuavam. No dia 30 de agosto de 2010, Assange foi à esquadra prestar depoimento. Ele foi interrogado pela mesma agente que recebeu o pedido para rever o depoimento de S. W. No início da conversa, Assange diz que está pronto para prestar o depoimento, mas acrescenta que não quer ler sobre o seu depoimento na imprensa. Isso é seu direito, e ele recebe garantias de que isso seria feito. Mas naquela mesma noite, tudo estava nos jornais de novo. E só poderia ter vindo das autoridades, porque ninguém mais estava presente durante o interrogatório. A intenção foi muito clara de manchar seu nome.

De onde veio a história de que Assange estava a tentar evitar a Justiça sueca?

Essa versão foi fabricada, mas não condiz com os factos. Se ele estivesse a tentar esconder-se, não teria ido à esquadra por vontade própria. Com base no depoimento editado de S. W., um recurso foi feito contra a decisão da procuradoria de suspender as investigações e, no dia 2 de setembro de 2010, o processo de violação foi retomado. Um representante legal chamado Claes Borgström foi indicado para as duas mulheres, pago pelo governo. O homem era sócio do escritório de advocacia do antigo ministro da justiça, Thomas Bodström, sob cuja supervisão funcionários de segurança prenderam dois homens considerados suspeitos pelo governo dos EUA no centro de Estocolmo. Os homens foram presos sem nenhum procedimento legal e entregues à CIA, que os torturou.

Isso mostra o pano de fundo transnacional desse caso. Após o reinício da investigação de violação, Assange repetidamente indicou através do seu advogado que desejava responder às acusações. O procurador responsável continuava a protelar. Numa ocasião não tinha agenda, noutra o agente responsável estava doente. Três semanas depois, o seu advogado finalmente escreveu que Assange precisava ir a Berlim para uma conferência e perguntou se ele podia sair do país. O escritório do procurador deu autorização escrita para ele sair do país por curtos períodos de tempo.

E então?

No dia que em Julian Assange saiu da Suécia, num momento em que não estava claro se ele estava a sair por um curto período ou por um longo tempo, foi emitido um mandado de prisão. Ele voou com a Scandinavian Airlines (SAS) de Estocolmo para Berlim. Durante o voo, os seus laptops desapareceram do compartimento de bagagem. Quando ele chegou a Berlim, a Lufthansa solicitou uma investigação à SAS, mas a companhia aérea aparentemente recusou-se a fornecer qualquer informação.

Porquê?

É exatamente esse o problema. Nesse caso, acontecem o tempo todo coisas que não deveria ser possíveis, a não ser que você olhe para elas de um ângulo diferente. Assange, ainda assim, continuou a viagem rumo a Londres, mas não tentou esconder-se da justiça. Através do seu advogado sueco, ele ofereceu uma série de possíveis datas para o interrogatório na Suécia – essas correspondências existem. Então aconteceu o seguinte: Assange soube que um caso criminal secreto havia sido aberto contra ele nos EUA. Na época, isso não foi confirmado pelos EUA, mas hoje sabemos que era verdade. A partir daí, o advogado de Assange começou a dizer que o seu cliente estava pronto para testemunhar na Suécia, mas ele exigia a garantia diplomática de que a Suécia não iria extraditá-lo para os EUA.

E essa era uma possibilidade real?

Com certeza. Alguns anos antes, como mencionei, agentes de segurança suecos entregaram dois homens que pediam asilo, ambos registados na Suécia, para a CIA, sem nenhum processo legal. Os abusos já começaram no aeroporto de Estocolmo, onde foram maltratados, drogados e levados para o Egipto, onde foram torturados.

Nós não sabemos se eles foram os únicos casos, mas sabemos desse caso porque os homens sobreviveram. Ambos apresentaram queixas em agências de direitos humanos da ONU e venceram os seus processos. A Suécia foi obrigada a pagar a cada um deles meio milhão de dólares pelos danos.

E a Suécia concordou com as exigências de Assange?

Os advogados dizem que durante os quase sete anos nos quais Assange viveu na embaixada do Equador, eles fizeram mais de 30 ofertas para que Assange fosse à Suécia – em troca da garantia de que ele não seria extraditado para os EUA. Os suecos recusaram a dar essas garantias argumentando que os EUA não tinhamfeito um pedido formal de extradição.

Qual é sua visão sobre essa exigência feita pelos advogados de Assange?

Garantias diplomáticas como essa são parte da prática internacional rotineira. Pessoas pedem garantias de que não serão extraditadas para lugares onde há perigo de sérias violações de direitos humanos, completamente independentemente de um pedido de extradição ter sido apresentado pelo país em questão ou não. É um procedimento político, não legal. Aqui está um exemplo: imagine que a França exije que a Suíça extradite um empresário cazaque que mora na Suíça, mas que é procurado pela França e pelo Cazaquistão por alegações de fraude fiscal. A Suíça não vê perigo de tortura na França, mas acredita que esse perigo existe no Cazaquistão. Então a Suíça diz à França: “vamos extraditar o homem, mas queremos uma garantia diplomática de que ele não será extraditado para o Cazaquistão posteriormente”. A resposta francesa não é: “Cazaquistão nem registou um pedido”. Em vez disso, eles obviamente concederiam tal garantia.

Os argumentos provenientes da Suécia foram fracos, na melhor das hipóteses. Isso é uma parte. A outra parte, e digo isto com base em toda a minha experiência nos bastidores da prática internacional: se um país se recusa a fornecer tal garantia diplomática, todas as dúvidas sobre as boas intenções do país em questão são justificadas. Por que a Suécia não deveria fornecer tais garantias? Do ponto de vista jurídico, afinal, os EUA não têm absolutamente nada a ver com os processos de crimes sexuais suecos.

Então por que a Suécia não ofereceu tal garantia?

Apenas veja como o caso foi conduzido: para a Suécia nunca foi sobre os interesses das duas mulheres. Mesmo após o seu pedido de garantias de que não seria extraditado, Assange ainda queria testemunhar. Ele disse: se você não pode garantir que eu não serei extraditado, estou disposto a ser interrogado em Londres ou por vídeo.

Mas é normal, ou legalmente aceitável, que as autoridades suecas viagem para um país diferente para um interrogatório como esse?

Essa é mais uma indicação de que a Suécia nunca esteve interessada em encontrar a verdade. Para esses tipos de questões judiciais, existe um tratado de cooperação entre o Reino Unido e a Suécia, que prevê que as autoridades suecas possam viajar para o Reino Unido, ou vice-versa, para conduzir interrogatórios ou que eles possam ocorrer via vídeo. Durante o período em questão, essa prática entre a Suécia e a Inglaterra ocorreu em outros 44 casos. Foi apenas no caso de Julian Assange que a Suécia insistiu que era essencial que ele aparecesse pessoalmente.

Por que isso?

Existe apenas uma explicação para tudo – a recusa em conceder garantias diplomáticas, a recusa em interrogá-lo em Londres: eles queriam prendê-lo para que ele fosse extraditado para os EUA. O número de violações da lei que se acumulou na Suécia apenas algumas semanas durante a investigação criminal preliminar é simplesmente grotesca. O Estado designou um consultor jurídico para as mulheres, que lhes disse que a interpretação criminal sobre o que elas viveram estava a cargo do Estado, e não mais delas. Quando o consultor jurídico foi questionado sobre as contradições entre o testemunho das mulheres e a narrativa adotada pelos funcionários públicos, ele disse, em referência às mulheres: “ah, mas elas não são advogadas”.

Mas por cinco longos anos, a procuradoria sueca evitou interrogar Assange sobre a suposta violação, até que os seus advogados finalmente peticionaram a Suprema Corte Sueca a forçar a procuradoria a oferecer denúncia ou encerrar o caso. Quando os suecos disseram ao Reino Unido que eles poderiam ser obrigados a abandonar o processo, os britânicos responderam preocupados: “Não ousem ficar com medo!”.

É sério?

Sim, os ingleses, ou mais especificamente o serviço de procuradoria da Coroa, queriam evitar que a Suécia abandonasse o caso a qualquer custo. Quando na verdade os ingleses deveriam estar felizes porque não teriam que gastar mais milhões de dólares de impostos para manter a embaixada equatoriana sob constante vigilância para prevenir uma fuga de Assange.

Por que os ingleses estavam tão determinados em evitar que os suecos encerrassem o processo?

Temos que parar de acreditar que havia um real interesse de conduzir uma investigação sobre crime sexual. O que o WikiLeaks fez foi uma ameaça à elite política dos Estados Unidos, do Reino Unido, da França e da Rússia em igual medida. O WikiLeaks publica segredos de Estado, documentos confidenciais – eles são contra qualquer sigilo.

E num mundo, mesmo nas chamadas democracias maduras, onde o sigilo se tornou desenfreado, isso é visto como uma ameaça fundamental. Assange deixou claro que hoje os países não estão mais interessados ​​em confidencialidade legítima, mas na supressão de informações importantes sobre corrupção e crimes. Veja o famoso caso do WikiLeaks dos vazamentos fornecidos por Chelsea Manning: o chamado vídeo “Collateral Murder”. [Em 5 de abril de 2010, o Wikileaks publicou um vídeo secreto das forças armadas dos EUA que mostrava o assassinato de várias pessoas em Bagdad por soldados dos EUA, incluindo dois funcionários da agência de notícias Reuters].

Como conselheiro de longa data para o Comité Internacional da Cruz Vermelha em zonas de guerra, eu posso dizer: o vídeo sem sombra de dúvidas documenta um crime de guerra. A tripulação de um helicóptero simplesmente matou um monte de gente. Pode até ser que uma ou duas dessas pessoas carregassem uma arma, mas as pessoas feridas foram alvos intencionais. Isso é um crime de guerra. “Ele está ferido”, você pode ouvir um americano dizendo. “Estou a disparar.” E então eles riem. Então uma van chega para ajudar os feridos. O motorista está com duas crianças. Dá para ouvir os soldados dizerem: “Bom, é culpa deles terem levado as crianças para uma guerra”. E abrem fogo. O pai e os feridos são imediatamente mortos, mas as crianças sobrevivem com sérios ferimentos. Através da publicação do vídeo, tornámo-nos testemunhas de um massacre injusto e criminoso.

O que é que uma democracia constitucional deve fazer numa situação dessas?

Uma democracia constitucional provavelmente investigaria Chelsea Manning por violar o sigilo oficial, porque ela passou o vídeo para Assange. Mas certamente não iria atrás de Assange, porque ele publicou um vídeo de interesse público, o que faz parte das práticas do jornalismo de investigação clássico.

Mais do que isso, uma democracia constitucional investigaria e puniria os crimes de guerra. Esses soldados deveriam estar presos. Mas nenhuma investigação criminal foi aberta contra nenhum deles. Em vez disso, o homem que informou o público está preso em Londres e pode enfrentar uma condenação nos EUA de até 175 anos de prisão. É uma sentença completamente absurda. Para comparar, os principais criminosos de guerra do tribunal da Jugoslávia receberam sentenças de 45 anos. Cento e setenta e cinco anos de prisão em condições que foram consideradas desumanas pelo Relator Especial da ONU e pela Amnistia Internacional.

Mas a coisa realmente horrível nesse caso é a ilegalidade que se desenvolveu: os poderosos podem matar sem medo de punição e o jornalismo transforma-se em espionagem. Está a tornar-se um crime dizer a verdade.

Você está dizendo que a perseguição de Assange ameaça a liberdade de imprensa.

Vamos ver onde estaremos daqui a 20 anos se Assange for condenado – o que você continuará a poder publicar como jornalista. Eu estou convencido de que estamos em sério risco de perder liberdades de imprensa. Já está a acontecer: de repente, a sede da ABC News na Australia foi invadida em conexão com os Diários da Guerra no Afeganistão. O motivo? Mais uma vez a imprensa revelou má conduta de representantes do Estado. Para que as divisões de poder funcionem, o Estado deve ser fiscalizado pela imprensa como um quarto poder. O WikiLeaks é a consequência lógica de um processo contínuo de sigilo expandido: se a verdade não puder mais ser examinada porque tudo é mantido em segredo, se os relatórios de investigação sobre a política de tortura do governo dos EUA forem mantidos em sigilo e quando até grandes partes do resumo publicado são censuradas, a fugas de informação serão a consequência.

O WikiLeaks é a consequência do sigilo crescente e reflete a falta de transparência no nosso sistema político moderno. Existem, é claro, áreas nas quais o sigilo pode ser vital. Mas se nós não pudermos mais saber o que os governos estão a fazer e que critérios estão a seguir, se os crimes não forem mais investigados, então isso representa um grave perigo para a integridade social.

Quais são as consequências?

Como Relator Especial sobre Tortura da ONU e, antes disso, como membro da Cruz Vermelha, eu já vi horrores e violências e já vi o quão rápido países pacíficos como a Jugoslávia ou a Ruanda podem transformar-se em infernos. Nas raízes desses acontecimentos estão sempre a falta de transparência e um poder político ou económico desenfreado, combinados com a ingenuidade, indiferença e maleabilidade da população.

De repente, o que sempre aconteceu com o outro – a tortura impune, violação, expulsão e assassinato – pode facilmente acontecer connosco ou com os nossos filhos. E ninguém vai se importar. Eu posso garantir-lhe isso.

Texto originalmente publicado em inglês pelo site Republik. Tradução de Ethel Rudnitzki.

Pode lê-lo  aqui na Agência Pública

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