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Delphine Colard: “Algumas pessoas só querem consumir o que está nas suas bolhas”

A porta-voz adjunta do Parlamento Europeu falou com o Polígrafo sobre temas prementes como a ameaça da desinformação, os desafios colocados pela inteligência artificial no que à desinformação diz respeito, mas também no papel social que cada um cidadão deve desempenhar no escrutínio de informações duvidosas nas redes sociais.

A desinformação está a ganhar novas formas, nomeadamente devido à emergência de ferramentas de inteligência artificial ao serviço da distorção da verdade. Considera que este novo fenómeno uma ameaça real?

Onde vejo uma grande preocupação é em torno da desinformação ou manipulação da informação porque não se trata apenas de um relato falso ou descontextualizado. A sua complexidade não advém apenas de textos escritos; baseia-se também em imagens que podem ser apresentadas fora de contexto. Hoje temos imagens forjadas através de Inteligência Artificial, aquilo a que chamamos deep fakes, que são susceptíveis de colocar as pessoas a afirmar coisas que nunca disseram ou em situações em que nunca estiveram. Isso não acontecia antes. O mais importante é reconhecer que precisamos de ter um software que, pelo menos, reconheça isto.

Podemos controlar este problema com softwares como o que fala?

Se perguntar especificamente sobre a questão das deep fakes, é claro que há soluções de software que serão desenvolvidas, mas eu diria que o principal recurso são as ferramentas jornalísticas básicas. Antes de mais, devemos parar por um momento e perguntar se o conteúdo é credível ou se é algo que, apresentado na vida real, um amigo me mostraria e eu diria: ‘vá lá, isto é forjado, é distorcido’. Por vezes, escrevemos demasiado rápido, clicamos e partilhamos, mesmo que não verifiquemos a informação. Devíamos dedicar alguns segundos extra para a verificar. Em segundo lugar devemos ir às coisas básicas. O endereço, o autor, ou se posso encontrar esta imagem noutro meio de comunicação. Ou seja, ferramentas que os fact-checkers e os meios de comunicação utilizam todos os dias, mas que é muito importante que a população em geral também conheça e que as aplique no seu quotidiano. Não requer muito conhecimento, é colocar a imagem na pesquisa do Google ou num motor de busca e ver se esta aparece ou se foi verificada por outra fonte.

Delphine

Então não falamos apenas de meios de comunicação social. O público também tem um papel a desempenhar?

O que é realmente importante, antes de mais nada, é saber que esta desinformação não acontece apenas online. Esta ideia de que a desinformação está algures numa plataforma secundária e que podemos ignorá-la é totalmente errada porque atualmente está em todo o lado e tem consequências reais. Não se trata apenas de trocar palavras e amplificar mensagens ou criar conversas artificialmente. Estão também em causa danos diretos às pessoas, aconselhando-as, por exemplo, a ter uma má conduta para com a sua saúde, como aconteceu durante a pandemia da Covid-19.

Ou como também já sucedeu em atos eleitorais.

Há pessoas que estão empenhadas em não participar nas eleições ou em desvincular-se da democracia e não participar de todo. Consideram as eleições inúteis quando não o são. Pensemos, por exemplo, nas últimas eleições na Bulgária em que se informou erradamente (ou desinformou) sobre potenciais ataques a escolas e locais de voto, apenas para garantir que as pessoas não iriam votar nem participar. Portanto, tem duras consequências e nós temo-las visto. Não mencionando apenas a questão da saúde e da Covid-19, falemos também do que vimos com a invasão do Capitólio e o ataque ao Congresso no Brasil. Vimos pessoas que alegadamente só tinham vindo a partilhar conteúdos nas redes sociais, mas que na realidade queriam aplicá-las diretamente na sociedade. Esta enorme polarização criada por alguns atores que querem que a democracia falhe tem um resultado tangível que se traduz em violência e em pessoas enviadas para o hospital ou mesmo perda de vidas. É extremamente perigoso quando é levada a um ponto extremo com incidentes. É perigoso todos os dias considerar que isto está a acontecer num mundo em que não existem consequências concretas.

Quais são mecanismos de punição contra a desinformação já existentes?

Bem, já existe um código de prática nas redes sociais que está a ser revisto e as plataformas são solicitadas a retirar conteúdos falsos. Mas isto ainda é voluntário e sabemos que o algoritmo ainda permanece bastante limitativo. Assim, para os fact-checkers ou para os académicos, continua a ser complicado. Por exemplo, nem tudo é disponibilizado para avaliar a atribuição de uma informação em particular e isso é um factor importante porque só assim sabemos quem nos está a tentar enganar.

Com a implementação, no início de 2024, da Lei dos Serviços Digitais, as plataformas passarão a ser consideradas editoras, e não temos previstas ferramentas adicionais. Posto isto, sublinhe-se que não é porque se tem liberdade de expressão que se tem a liberdade de amplificar desinformação. E se alguém o fizer, as plataformas terão o dever de o denunciar e retirar. Se não o fizerem, podem ser multadas. O mesmo acontece com outra legislação que está agora a ser discutida no Parlamento Europeu sobre publicidade política online porque, de momento, é uma realidade, há pessoas que são alvo de publicidade política sem nunca o ter escolhido. O objetivo da legislação é que se possa escolher o que se vê e o que não se vê.

É ainda necessário, no caso dos anúncios, deixar claro quem pagou por eles. Isso é transparência. E temos ainda as questões que  já são ilegais, sejam ou não desinformação. Mesmo a informação que até pode ser verdade mas insere-se no discurso de ódio ou assédio já é punida por lei a nível internacional.

Nas redes sociais, o que define o que consumimos é o algoritmo que leva as pessoas a consumir o mesmo tipo de informação vezes sem conta. Existe uma forma de evitar este modelo?

Em primeiro lugar, é a consciência da população de que o que se vê nas redes sociais não é factual, é um algoritmo. É um modelo de negócio que reforça o preconceito inconsciente ou consciente do utilizador, colocando-o numa espécie de bolha. Para manter o utilizador na plataforma, só lhe são apresentados pontos de vista que reforçam as suas crenças e, como tal, este algoritmo acaba por contribuir para uma certa polarização da sociedade. As pessoas têm de estar conscientes e procurar informação noutras fontes, acompanhar os meios de comunicação tradicionais e ter a sapiência de colocar a informação num contexto geral. Sabemos, no entanto, que não é fácil e que algumas pessoas só querem consumir o que está nas suas bolhas.

É o caso dos negacionistas a propósito da pandemia de Covid-19?

Sim, sobre a pandemia pode haver certos grupos ou teorias complexas. O importante é manter o diálogo, diria. Muitos fact-checkers e jornalistas que trabalham na questão dizem que se as pessoas não confiam na informação é porque são estúpidas ou que têm uma concepção errada de algo. Mas não, é porque são expostos apenas a isso, é-lhes apresentado aquele ponto de vista e o mesmo é reforçado. Se começarem a ser expostos a outras perspectivas e o diálogo puder ser instalado, então será possível reconstruir uma ideia com base em elementos comuns e, eventualmente, divergir na sua opinião. Isto é o que há de bom na União Europeia, nós baseamo-nos na liberdade de expressão, todos têm direito à sua opinião. Mas uma coisa é ter direito à sua opinião, outra é usar ferramentas, táticas, procedimentos para a tornar maior do que realmente é, levando as pessoas a pensar que é um ponto de vista geral de uma instituição, do governo ou de uma grande maioria da população.

O controlo da desinformação nas redes sociais leva alguns utilizadores a argumentar que este limita a sua liberdade de expressão. Qual é a linha que separa uma coisa da outra?

Penso que a liberdade de expressão é um valor essencial que precisa ser protegido e defendido juntamente com o Estado de Direito e outros valores fundadores da União Europeia. Por isso, nem sequer é essa a questão. Reforço que há leis em certos Estados-Membros que proíbem determinadas atitudes, mas não que se fale sobre as coisas. A diferença é quando alguém está a manipular com recurso a ferramentas ou táticas para dar a impressão de que não está a falar uma pessoa, mas um conjunto de indivíduos que partilham esta opinião ou usam imagens, conteúdo distorcido, ou em contexto distorcido para apresentar uma opinião como um facto. É muito importante fazer a distinção.

Toda a gente tem direito a uma opinião. Mas se se é só um, mas finge-se que se é uma equipa de futebol de 11 por ter, por exemplo,  recorrido a robôs [os chamados ‘bots’, ou seja, uma aplicação de software concebida para simular ações humanas de forma repetida] e criado conteúdos forjados para parecer que é a opinião de 10.000, então não está a respeitar as regras. Se está sozinho, está sozinho.

delphine

Na guerra na Ucrânia, a desinformação tem sido difundida em massa. Plataformas como o Telegram tornaram-se amplamente utilizadas, mas a informação divulgada não é toda verificada. Como podemos combater a difusão de informação falsa nestes meios, por exemplo?

Penso que a desinformação viaja um pouco por todo o lado e cada vez que são tomadas medidas para plataformas específicas, esta viaja para outras, como aconteceu na passagem da Meta para o Telegram. O Telegram tornou-se popular entre as plataformas que não são completamente supervisionadas. Para instituições como nós é importante estar presente também nessas plataformas, para que o diálogo permaneça possível e as pessoas não fiquem apenas com uma versão da história. Por isso, é importante que os meios de comunicação social continuem a ser os mais importantes catalisadores.

Mas para além dos media, é também importante ter criadores de conteúdos, fact-checkers e os media tradicionais envolvidos em plataformas de redes sociais para garantir que o conteúdo é verificado, partilhado, visto e acessível. Em geral, é bom perguntarmo-nos, questionarmos os nossos amigo ou colegas. Por exemplo perguntar se a informação foi mudada porque parece bom demais para ser verdade ou escandaloso demais para ser verdade. Todos têm este papel social de manter este ambiente de informação tão saudável quanto possível. O desafio é quando se trata de atores externos como o Kremlin ou outros países que promovem narrativas para mudar a forma como a sociedade está organizada na Europa, porque é esse o objectivo.

Há formas de combater a desinformação proveniente da Rússia?

Existem situações diferentes. A Rússia é atualmente um ecossistema onde vozes dissidentes são reprimidas. Por isso, uma série de vozes, oposições violentas ou democráticas nem sequer são permitidas ou ouvidas. O pluralismo dos meios de comunicação social não é uma realidade. Portanto, só se tem uma voz e, de momento, é realmente complicado combater essa propaganda. Mas não é só a Rússia que está a sofrer com o tipo de propaganda institucional ou narrativas de desinformação. Essas narrativas são também enviadas para todos os países do Ocidente e para o resto do mundo. Pensemos na narrativa de que o Ocidente está a envolver-se com a Ucrânia e a apoiar a Ucrânia à custa da fome em África ou à custa de uma grande crise de energia na Europa e que as pessoas pobres pagarão o preço. Portanto, temos de estar atentos ao objectivo por detrás de algumas mensagens, quem as envia e qual é a intenção subjacente. A intenção é sempre a de enganar, criar a descrença na democracia ou no sistema. Portanto, as eleições são tempos cruciais.

Pegando no tema das eleições, a desinformação pode influenciar muitas vezes os resultados. Como podemos mitigar este problema?

O principal ponto-chave para as eleições é informar as pessoas sobre a data e os processos. É garantir que sabem como votar e que estão informadas sobre a segurança e a integridade do ato eleitoral, porque a maior parte das narrativas concentra-se sempre na fraude eleitoral. A informação é sempre a condição prévia. Quanto mais as pessoas são informadas, mais têm factos, mais conscientes ficam da situação e menos propensas estão a cair em narrativas de desinformação. Em segundo lugar, os meios de comunicação social pluralistas, muito dinâmicos, são muito importantes porque é aí que os políticos são escrutinados e é verificado o que está a ser feito. Estes são os dois fatores mais importantes.

A literacia mediática é um terceiro ponto. Formar os estudantes desde cedo para compreenderem como funcionam as redes sociais, que o que vêem não é a realidade, mas sim uma verdade parcial. É como olharem para uma fotografia que mostra pessoas numa praia e há toneladas de atividades, mas depois só se faz zoom sobre o rapaz que está a atirar lixo para a praia. É como se todos em Portugal estivessem a atirar lixo para a praia e isso não é verdade. Por isso, penso que é essencial promover a literacia mediática e distribuir  muita informação sobre as eleições e como são organizadas.

E o papel do Parlamento Europeu?

O Parlamento fará a sua parte. Faremos uma campanha de informação para as eleições de 2024 para garantir, de forma muito neutra, que as pessoas sabem o que é o Parlamento, o que este traz aos cidadãos e como é importante que se envolvam novamente na democracia. O objectivo não é favorecer qualquer tipo de discurso político. Não é esse o nosso papel como instituição, o nosso papel é assegurar que as pessoas saibam que a sua voz conta e que as conversas podem acontecer, mas também que podem expressar-se e votar. E se votarem, isso molda o Parlamento. Molda o tipo de resultado que irão obter. Por isso, têm a democracia nas suas mãos.

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