No século XIX, o Partido Democrata defendia a manutenção da escravatura e acreditava na virtude de um governo limitado. Por seu lado, o Partido Republicano lutava contra a segregação racial e queria um governo interventivo. Mas essas posições inverteram-se, entre a viragem do século e a década de 1960.
“Não há estados vermelhos ou estados azuis, apenas os Estados Unidos da América.” Esta frase é de Barack Obama. Foi proferida em vários discursos, quando era presidente, procurando unificar a nação e esbater o fosso entre democratas e republicanos. E a História parece dar razão ao antigo presidente norte-americano, desde logo porque os estados vermelhos (do Sul e do Centro, que votam tradicionalmente no Partido Republicano) começaram por ser azuis (afectos ao Partido Democrata, atualmente dominante no Nordeste e na Costa do Pacífico) e vice-versa. A certa altura verificou-se uma grande troca de eleitores (e ideologia) entre os dois partidos. Mas quando? E como?
Para compreender a transformação é necessário recuar até às eleições presidenciais de 1828, o momento da fundação do Partido Democrata, a partir de facções do Partido Democrata-Republicano que acabara de ser extinto. Um dos fundadores do novo partido, Andrew Jackson, ganhou as eleições e tornou-se o sétimo presidente dos EUA. Ora, dois anos mais tarde, Jackson obteve a aprovação do Indian Removal Act que lhe permitiu negociar com as tribos “índias” do Sul a retirada para territórios a oeste do rio Mississippi. Essa iniciativa legislativa consolidou o apoio ao Partido Democrata nos estados do Sul, beneficiados pela tomada de posse das terras que eram habitadas pelas tribos “índias”. Nessa altura, os democratas eram a favor de um governo limitado, da ideia de “destino manifesto” e da instituição da escravatura.
Em contraponto, o Partido Republicano foi fundado no Norte, em 1854, com base na oposição à escravatura (um elemento fundamental da economia dos estados do Sul). Defendia políticas governamentais expansionistas como o desenvolvimento da moeda nacional, tarifas mais elevadas para proteger determinadas indústrias e aumentos da despesa para financiar a construção de linhas ferroviárias e o estabelecimento do sistema universitário estatal. O primeiro presidente do Partido Republicano, eleito em 1861, Abraham Lincoln, ficaria para sempre ligado à abolição da escravatura (a “Proclamação de Emancipação”, em 1863) e à vitória na Guerra Civil Americana (1861-1865) contra os estados confederados do Sul, pró-escravatura.
Quando é que as posições dos partidos se inverteram? Vários historiadores apontam para uma janela temporal entre o início do século XX e a década de 1960. Os grandes investimentos ao nível federal que os republicanos lançaram nas últimas décadas do século XIX favoreceram os interesses dos estados do Nordeste, sobretudo as companhias ferroviárias, os bancos e outros grandes negócios. Mas a admissão de novos estados do Oeste na União criou entretanto um novo bloco de votantes, disputado pelos dois partidos. Em vez dos grandes negócios do Nordeste, os democratas viraram-se para os pequenos agricultores do Oeste, com novos programas federais, enquanto os republicanos transitaram gradualmente para uma abordagem não-intervencionista.
William Jennings Bryan, três vezes candidato à presidência pelo Partido Democrata (em 1896, 1900 e 1908), sempre perdedor, desempenhou um papel relevante nessa transformação. Durante as campanhas eleitorais, Bryan diluiu as fronteiras partidárias, ao enfatizar a responsabilidade do governo ao nível da justiça social e propondo a expansão do poder federal. Ou seja, defendeu causas tradicionalmente republicanas. Bryan que foi mesmo o primeiro liberal a conquistar a nomeação do Partido Democrata para as eleições presidenciais, causando um forte abalo nas raízes conservadoras do partido.
Mais tarde, os republicanos trilharam o caminho inverso, abandonando a defesa do “grande Governo” para se oporem veementemente ao New Deal – conjunto de programas federais implementados entre 1933 e 1938, em resposta à “Grande Depressão”, focados na recuperação económica, assistência aos pobres e desempregados e reforma do sistema financeiro – do presidente democrata Franklin D. Roosevelt.
A mudança ideológica desenvolveu-se mais rapidamente do que a troca de eleitores entre os dois partidos, a qual só viria a concretizar-se nas eleições presidenciais de 1964 em que o democrata Lyndon B. Johnson (61% dos votos) derrotou o republicano Barry Goldwater (38%). Foi então que se verificou o grande “realinhamento do Sul“, como é classificado pelos historiadores. Invertendo o padrão mais comum de resultados eleitorais desde a Guerra Civil Americana, Johnson conquistou os bastiões republicanos de Idaho, Utah e Wyoming, enquanto Goldwater obteve vitórias em cinco estados do Sul que costumavam apoiar sempre os democratas: Alabama, Georgia, Louisiana, Mississippi e Carolina do Sul.
A causa mais imediata para essa viragem política foi a aprovação do Civil Rights Act que pôs fim à segregação racial que persistia nos estados do Sul. Ao assinar essa iniciativa legislativa, o presidente Johnson terá confidenciado a um camarada democrata que o partido teria perdido os votos do Sul durante muito tempo. Algo que viria a confirmar-se, com a maioria da população branca do Sul a abandonar o Partido Democrata, passando a votar maioritariamente no Partido Republicano. Em sentido inverso, os afro-americanos começaram a votar em massa no Partido Democrata – contudo, estão em minoria, mesmo nos estados do Sul, daí as sucessivas vitórias do Partido Republicano a partir de 1964.
Houve uma inversão do mapa político dos EUA que persiste até aos dias de hoje. A eleição de 1964 produziu uma mudança significativa nas lealdades partidárias a Norte e a Sul, puxou os democratas para a esquerda política e criou o Partido Republicano moderno, essencialmente conservador, que deu um passo de gigante para a direita com Goldwater. Também introduziu a novidade das campanhas negativas, com publicidade negativa (contra os adversários) sistematicamente utilizada pelos candidatos.
O declínio gradual dos democratas sulistas representa a culminação de meio século de realinhamento político mediante factores económicos, sociais, culturais e étnico-raciais. Esta mudança contribuiu para a polarização da política norte-americana, segundo vários especialistas, ao substituir os democratas conservadores – que frequentemente votavam fora das linhas partidárias – por republicanos conservadores que não o fazem, pois são mais leais ao partido.