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“QAnon”: A maior teoria da conspiração promovida pelos apoiantes de Donald Trump

Este artigo tem mais de um ano
Nasceu com uma publicação num fórum na Internet e foi ganhando muitos milhares de seguidores que acreditam que o presidente dos EUA combate uma sociedade secreta formada por democratas satânicos, estrelas de Hollywood e multimilionários envolvidos numa rede de pedofilia e tráfico sexual. O Facebook decidiu apagar as páginas relacionadas com o movimento nas redes sociais e o FBI considera-o uma ameaça de terrorismo interno.

A pandemia de Covid-19 e as convulsões sociais e raciais nos EUA aumentaram consideravelmente a visibilidade de um grupo que nasceu com uma publicação num fórum na Internet, em 2017, e cresceu ao ponto de uma das suas apoiantes – Marjorie Taylor Greene – ser favorita à obtenção de um lugar na Câmara dos Representantes do Congresso dos EUA nas eleições de 3 de novembro, depois de vencer a nomeação do Partido Republicano para o 14º distrito da Geórgia. 

Denominada como QAnon, trata-se de uma teoria da conspiração que une apoiantes do atual presidente dos EUA, crentes de que Donald Trump trava uma batalha secreta contra os inimigos do “Deep State” (“Estado Profundo”, em tradução livre), formado por democratas satânicos, estrelas de Hollywood e multimilionários que se dedicam à pedofilia e ao tráfico sexual. 

Trump terá como objetivo desmascarar todos os envolvidos nos supostos crimes e encarcerá-los em Guantánamo, complexo prisional que os EUA mantêm em Cuba. Bill e Hillary Clinton, Barack Obama, Bill Gates, Tom Hanks, George Soros ou o Papa Francisco são alguns dos vilões destas narrativas conspiracionistas, sem fundamento.

“Calma antes da tempestade”

No final de outubro de 2017, um utilizador identificado como “Q Clearence Patriot” iniciou um tópico no 4chan (fórum online) com o título “Calm before the storm” (“Calma antes da tempestade”, em tradução livre), no qual garantia ter acesso a informação classificada do Governo dos EUA. De referir que o uso da letra Q, no Departamento de Energia dos EUA, equivale ao mais alto nível de acesso a informação sobre engenhos nucleares ou material de guerra.

“Q Clearence Patriot” não escolheu por acaso o título que atribuiu ao tópico no 4chan. Algumas semanas antes de o criar, o presidente dos EUA referiu-se à “calma antes da tempestade” durante um encontro com militares. Quando questionado sobre o que queria dizer, a resposta foi lacónica: “Já vão descobrir!”

Na primeira publicação, “Q Clearence Patriot” assegurou que estava em marcha a extradição de Hillary Clinton, a candidata do Partido Democrata que foi derrotada por Trump na eleição presidencial de 2016, e que a prisão da antiga Secretária de Estado dos EUA seria imediata. Acumulando mais de quatro mil publicações, “Q Clearence Patriot” transformou-se numa lenda do mundo online, com alegado acesso a informação restrita aos níveis mais altos de segurança e conhecedor dos segredos mais obscuros do “Estado Profundo”.

Para os seguidores da QAnon, teoria também conhecida como “a tempestade”, as publicações de “Q Clearence Patriot” são “drops” (gotas) que contêm “breadcrumbs” (migalhas), ou seja pistas. Cabe-lhes seguir estas indicações para descobrir as provas da verdade supostamente escondida por uma “elite mundial do mal”. No entanto, essas informações não se têm confirmado, como aconteceu no caso da teoria que defende que a investigação à alegada ingerência russa nas eleições dos EUA era apenas uma manobra para Trump e o procurador Robert Muller desmascararem pedófilos como o casal Clinton ou Obama.

 

Pizzagate, o rumor falso que acabou em tiroteio

A QAnon baseia-se em outras teorias da conspiração como é o caso do Pizzagate, rumor que se tornou viral nos EUA durante a campanha eleitoral de há quatro anos. Foi difundida a ideia de que as referências a comida e a um conhecido restaurante que tinham sido detetadas nos e-mails do diretor de campanha de Hillary Clinton, John Podesta, corresponderiam a um código secreto para falar sobre uma rede de tráfico infantil. A mentira viral levou um homem a deslocar-se ao local e iniciar um tiroteio, acreditando que havia crianças sequestradas nas instalações do restaurante.

Este movimento alberga ainda teorias antissemitas muito antigas, como se explica numa colaboração entre os jornais “El Diario” e “The Guardian”, que têm origem nos “Protocolos dos Sábios do Sião”, um documento falso que serviu para justificar essas ideias durante o século XX, apontando para a existência de uma conspiração judaica que visa dominar o mundo. Noutro mito defendido pela QAnon acredita-se que os membros do “Estado Profundo” extraem adrenocromo – composto químico gerado pela oxidação da adrenalina no corpo humano – do sangue das suas vítimas infantis, utilizando-o num suposto processo de rejuvenescimento.

 

“#SaveTheChildren” espalha desinformação

No Verão de 2020, de acordo com um artigo do “Maldita.es”, partidários da QAnon utilizaram a hashtag “#SaveTheChildren” para propagar informações falsas sobre personalidades públicas e a sua suposta relação com a pedofilia e o tráfico sexual. Os conspiracionistas recorreram assim a uma hashtag aparentemente inofensiva e previamente utilizada pela ONG de defesa dos direitos das crianças com o mesmo nome, levando mais longe as suas teorias que atingiram Tom Hanks, por exemplo.

O ator foi acusado de ter fugido para a Grécia na companhia da mulher, Rita Wilson, para evitar ser implicado no caso de Jeffrey Epstein, o magnata norte-americano acusado de abuso de menores e que se suicidou depois de ter sido preso. A escolha do destino, defendem os seguidores das teorias QAnon, estaria relacionada com o facto de a pedofilia ser considerada na Grécia como uma deficiência e não um crime. Essa alegação já foi desmentida pelo “Lead Stories”. 

Por seu lado, o “Maldita.es” analisou uma outra fake news, na qual se garantia que o ator Richard Gere estariaa em prisão domiciliária por ser pedófilo.

 

A ligação com os negacionistas da Covid-19

Desde o início da pandemia, os grupos que defendem as teorias da conspiração QAnon viram a sua popularidade aumentar exponencialmente, desde logo no Facebook, Twitter e Instagram. “Inicialmente, QAnon era um fenómeno marginal, que a maioria das pessoas podia ignorar com segurança. Porém, nos últimos meses, generalizou-se. Twitter, Facebook e outras redes sociais foram inundadas de informação falsa relacionada com a QAnon sobre a Covid-19, os protestos Black Lives Matter e as eleições de 2020″, destaca-se num artigo do jornal “The Wall Street Journal“. 

Seguidores das teorias de “Q Clearence Patriot” recomendaram a utilização da substância MMS, que resulta da dissolução de dióxido de cloro em água, para combater a infeção provocada pelo novo coronavírus. Como o Polígrafo já verificou, trata-se de um logro.

“De um lado está QAnon, uma intricada teoria da conspiração que defende que Trump lidera uma guerra secreta contra os pedófilos de elite que adoram Satanás. Do outro, uma massa de pseudociência que afirma que o coronavírus não existe, que não é mortal, ou qualquer outra informação infundada. Estas duas ideias unem-se cada vez mais, numa grande mescla de conspiração”, descreveu a BBC.

 

A identidade escondida

Estima-se que existam cerca de 100 mil fiéis seguidores das teorias QAnon. No entanto, alguns dos maiores grupos no Facebook dedicados a este movimento chegaram a ter aproximadamente 200 mil elementos. No início de outubro, essa rede social anunciou que iria apagar páginas, grupos e contas de Instagram que representam o movimento, mesmo que não promovam violência. No Twitter foram aproximadamente 150 mil os utilizadores com atividade restringida.

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O movimento parece ser especialmente popular entre pessoas mais velhas, republicanos e cristãos evangélicos. Seguem uma personagem que ninguém sabe quem é na realidade. Alguns elementos acreditam que “Q Clearence Patriot” é o próprio Trump, outros que é John John Kennedy (filho do antigo presidente John F. Kennedy, assassinado em 1963) que morreu num acidente de aviação em 1999, mas os conspiracionistas acreditam que essa morte foi forjada.

De acordo com o jornal “The New York Times“, também “há quem especule que um único troll da Internet assinou como ‘Q’ durante todo este tempo, outros dizem que são várias as pessoas envolvidas nas publicações e outros ainda que a identidade de ‘Q’ mudou entretanto”.

Em novembro de 2017, “Q Clearence Patriot” passou do fórum 4chan para o 8chan, desaparecendo durante vários meses quando este foi encerrado em agosto de 2019. Reapareceu num novo site, o 8kun, criado pelo proprietário do 8chan.

Editor no “The Huffington Post”, Andy Campbell defende que a QAnon “são todas as teorias da conspiração reunidas numa só, uma sinfonia de teorias da conspiração”.

 

QAnon nas fileiras do Partido Republicano

Em 2017, num comício de Trump em Tampa, na Florida, foram muitos os apoiantes do presidente dos EUA que levaram camisolas ou cartazes com a letra “Q”. Essa foi “a primeira vez que os seguidores desta teoria se manifestaram em público”, noticiou então a BBC.

Ainda que a maioria dos membros não participem em atos violentos, tem crescido o número de incidentes relacionados com as crenças deste movimento, como o que aconteceu quando uma mulher viajou de Illinois até Nova Iorque armada com 12 facas para matar Joe Biden, candidato do Partido Democrata à presidência dos EUA. Entretanto, o FBI classificou o grupo como uma ameaça de terrorismo interno.

De acordo com a investigação dos jornais “El Diário” e “The Guardian”, o QAnon ganha cada vez mais força dentro do Partido Republicano: existem 77 candidatos ao Congresso que já manifestaram apoio ao movimento e é muito provável que, no dia 3 de novembro, Marjorie Taylor Greene seja eleita. 

Além disso, o grupo conta com o apoio do próprio Trump, para quem os seguidores de QAnon “amam os EUA” e são verdadeiros patriotas. “Não sei muito sobre o movimento, a não ser que gostam muito de mim, o que eu agradeço”, declarou Trump em agosto.

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