Um apontamento positivo, para começar. A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital é uma ideia interessante – ou, pelo menos, suficientemente interessante para sobreviver a três embaraços: à designação barroca que alguém decidiu atribuir-lhe, ao facto de ter sido cozinhada em ambiente de razoável penumbra democrática por um conjunto de deputados fervorosamente capitaneados por José Magalhães e, finalmente, à circunstância de conter uma passagem (o agora tristemente célebre artigo 6º) que é muito discutível na forma e profundamente questionável no conteúdo. Mas já lá vamos.
A desinformação – prefiro este termo em detrimento da irresistível sexyness da expressão “fake news” – é a mais perigosa das pandemias do século XXI. Se a Covid já matou cerca de 17 mil pessoas em Portugal e mais de três milhões no mundo inteiro, a pandemia da desinformação, pelo seu potencial destruidor das sociedades democráticas, poderá matar muitas mais. Para a primeira já há uma vacina. A segunda está incontrolável. Dissemina-se à velocidade da luz em todos os segundos das nossas vidas.
A História mostra-nos que a melhor vacina alguma vez inventada tem um nome bem menos pomposo do que a lei que o Parlamento português aprovou e que Marcelo Rebelo de Sousa acriticamente promulgou. Chama-se “democracia”. Sim, o “pior dos sistemas à exceção de todos os outros”, como o definiu Winston Churchill, poupa vidas. Muitas. Milhares. Todos os dias. Lembremo-nos do nazismo e do estalinismo: juntos, dizimaram mais de 30 milhões de pessoas – dez vezes mais do que a Covid-19.
Ao minar a confiança nas instituições democráticas e nos media, a desinformação embriaga cidadãos altamente permeáveis a discursos populistas, desenhados para dar abrigo ideológico a anos de frustrações acumuladas: frustração com os políticos, que “são todos iguais”; frustração com os jornalistas, que estão “sempre ao serviço de alguém”; frustração com a justiça, “que só toca aos mais fracos”; frustração, por fim, com a vida que levam, plena no trabalho e miserável na compensação. Há toneladas de indignação no ar, alimentada por discursos que colocam em causa os poderes estabelecidos, na ânsia da emergência de uma nova ordem. Garantir que regimes obscuros permanecem no caixão da História não é só uma obrigação – é um imperativo moral nos tempos que correm.
Acredito que terá sido porque partilha desta visão que José Magalhães (acompanhado pelo PAN) decidiu avançar com a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital. A ideia é obviamente relevante e, apesar da quase clandestinidade em que foi aprovada, não partilho o catastrofismo dos que, como Pacheco Pereira ou António Barreto, deram a entender, em textos de opinião, que o deputado socialista é o Grande Censor da nação. Mas isso não quer dizer que estejamos perante uma boa lei, porque um bom diploma é aquele que é tão feliz nos princípios como nos meios que prevê para os alcançar. Não é o caso desta lei, que é bondosa nas intenções, mas absurda na definição de alguns dos instrumentos que prevê para as aplicar no terreno.
Ao minar a confiança nas instituições democráticas e nos media, a desinformação embriaga cidadãos altamente permeáveis a discursos populistas, desenhados para darem um novo abrigo ideológico a anos de frustrações acumuladas: frustração com os políticos, que “são todos iguais”; frustração com os jornalistas, que estão sempre “ao serviço de alguém”; frustração com a justiça, “que só toca a alguns”
A Carta tem cerca de duas dezenas de artigos, na sua maioria pacíficos e necessários. Mas o problema está no resto. Nos detalhes.
Primeiro na definição de desinformação: “Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”. Esta é uma abordagem no mínimo original, suscetível de colocar uma imensidão de perguntas. Deixo duas: Como se determina que um qualquer conteúdo é “uma ameaça aos processos democráticos”? Quem decide se um post publicado no Facebook ou no Twitter coloca em causa os “processos de elaboração de políticas públicas”? Esta definição, por ser tão vaga e tão dada a interpretações dúbias, corrói perigosamente as boas intenções que estão na base do diploma. E isto leva-me ao próximo detalhe.
Ao prever que qualquer cidadão possa apresentar uma queixa na Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), independentemente da plataforma em que é veiculada a informação supostamente falsa ou manipulatória, esta lei torna-se, na prática, inaplicável. Se hoje a ERC já tem sérias dificuldades na gestão dos processos que respeitam aos media tradicionais, como será quando lhe chegarem (e vão chegar) milhares de reclamações provenientes em larga medida dos maníacos da indignação que pululam nas redes sociais? O facto de esta ideia estar vertida na lei só prova uma coisa: que os deputados da nação pouco ou nada sabem sobre a dinâmica das redes – curiosamente as mesmas cujo conteúdo se propõem regulamentar. Se soubessem, não ignorariam que estas se encontram fortemente dominadas por movimentos radicais organizados, que não hesitarão em entupir com queixas os serviços da ERC, colocando-a ao serviço de devaneios habitualmente resultantes da cegueira ideológica que os move. Mais: se antes de terem seguido o rebanho os parlamentares tivessem parado um segundo para pensar, também facilmente concluiriam que não faz qualquer sentido que seja a ERC, uma entidade pública, a julgar se os conteúdos partilhados nas redes são verdadeiros ou falsos – e a, numa fase posterior, punir os “infratores”. Depois de cercado pela opinião pública, José Magalhães fugiu em frente e garantiu que esta ideia decorre da aplicação das diretrizes europeias contra a desinformação, estando mesmo a ser aplicada na vizinha Espanha. Uma falsidade que não sobrevive a um exercício básico de fact-checking.
O facto de esta ideia estar vertida na lei só prova uma coisa: que os deputados da nação pouco ou nada sabem sobre a dinâmica das redes – curiosamente as mesmas que se propõem regulamentar. Se soubessem, não ignorariam que estas se encontram fortemente dominadas por movimentos radicais organizados, que não hesitarão em entupir com queixas os serviços da ERC, colocando-a ao serviço dos devaneios habitualmente resultantes da cegueira ideológica.
A fragilidade da “Lei Magalhães” não se esgota na definição periclitante do conceito de desinformação e na atribuição à ERC de funções que esta não tem capacidade para desempenhar com eficácia. Também a forma como aborda o fenómeno do fact-checking, conferindo-lhe privilégios especiais em detrimento da chamada imprensa tradicional, é preocupante, porque desajustada da realidade. Neste particular, estou muito confortável para emitir opinião, dado que, além de ter fundado e de dirigir o Polígrafo, sou também sócio da empresa que o detém.
José Magalhães e restantes deputados querem que o Estado subsidie projetos de fact-checking, desde que estes cumpram uma série de prerrogativas estabelecidas no artigo 6º, entre as quais sublinho as que se seguem:
– Estarem registados na ERC;
– Exercerem fact-checking “a título exclusivo ou predominante”;
– Obedecerem ao Código de Princípios de “redes internacionais de verificação de factos” – e aqui o diploma refere-se à organização mundial de referência a esse nível: a International Fact-Checking Network (IFCN);
Pergunta: quantos órgãos de comunicação social portugueses cumprem, ao dia de hoje, estas três prerrogativas? Resposta: um. Qual? O Polígrafo.
Depois do surgimento do Polígrafo, foram vários os jornais nacionais que decidiram criar secções dedicadas ao fact-checking nas suas edições online. Ora, tendo em conta que a lei aprovada define que a atividade tem de ser exercida “a título exclusivo ou predominante”, é fácil concluir que nenhum deles é elegível para ser apoiado pelo Estado – nem mesmo o Observador, que a par do Polígrafo é o único órgão de comunicação social português acreditado pela IFCN, mas cujo serviço de fact-checking está a milhas de ser a sua atividade “exclusiva ou predominante”. O que coloca outra questão: esta lei (ou, pelo menos, esta passagem nuclear do diploma) é dirigida exatamente a quem?
Neste particular, lamento desiludir a pequena claque de indignados que, nas redes sociais, têm partilhado democraticamente a teoria segundo a qual o diploma foi ardilosamente cozinhado por mim e por José Magalhães com dois objetivos: a) alavancar o negócio do Polígrafo “depois de este já ter recebido, juntamente com a SIC, 15 milhões do Estado” – um número simpático que só peca por ser 15 milhões de euros mais robusto do que aquilo que na verdade já recebemos dos cofres públicos – e b) para “ressuscitar a censura” em Portugal, quase 50 anos depois do 25 de abril.
Em teoria até poderia ter sido, tendo em conta que o Polígrafo é, de facto, o seu único potencial beneficiário no curto e no médio prazo (é no mínimo notável que nenhuma das 230 mentes brilhantes que o votaram não tenha percebido este detalhe). Na prática, dá-se o caso de considerarmos que a lei, contendo aspetos relevantes, é profundamente discriminatória, ao privilegiar um órgão de comunicação e um determinado exercício jornalístico em detrimento dos restantes. Eleger o fact-checking – e o Polígrafo em particular – como a panaceia que resolve todos os problemas da desinformação é um inconsequente exercício de cegueira política. Alimenta-se uma árvore, esquecendo que esta é parte de uma floresta, de um ecossistema que deve ser tratado de forma transversal, sob pena de ruir – e de, com ele, obviamente levar também os projetos de fact-checking.
Lamento desiludir a pequena claque de indignados que, nas redes sociais, têm partilhado democraticamente a teoria segundo a qual este diploma foi ardilosamente cozinhado por mim e por José Magalhães para “alavancar o negócio do Polígrafo” e para “promover a censura” (…) Dá-se o caso de eu considerar que a lei, contendo em si aspetos relevantes, é profundamente discriminatória.
Por último, a atribuição de selos de qualidade, que tanta polémica provocou. Trata-se de uma ideia que, ao contrário da lei que a alberga, de original nem o nome tem. Os selos de qualidade existem em todo o mundo em vários sectores da economia, incluindo o da comunicação social. Na sua homepage, o Polígrafo exibe, com orgulho, o que lhe foi atribuído pela IFCN porque sabemos que se trata de uma distinção dirigida apenas aos melhores projetos mundiais de fact-checking. Para o obterem, as organizações têm anualmente de se submeter a uma exigente auditoria coordenada por um perito internacional independente selecionado pela IFCN. Entre outras coisas, é avaliada a estrutura acionista das organizações, as suas fontes de financiamento, o seu apartidarismo, a sua transparência, o compromisso do projeto com a independência, a qualidade editorial dos textos produzidos ou o cumprimento de uma rigorosa política de correções.
No que respeita ao Polígrafo, estamos conversados quanto a selos de qualidade. Não queremos outro além do da IFCN – e ainda menos um dos que, como pretende o Parlamento, serão atribuídos por organizações que seguramente têm os seus méritos mas nenhum deles relacionado com a sua capacidade para avaliar com rigor o trabalho jornalístico. Um selo da Confederação dos Meios de Comunicação Social? Não, obrigado. Um selo da Associação da Imprensa de Inspiração Cristã, num Estado laico? Dispensamos. Um selo do Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial (!!!)? Passamos.
O problema quanto à atribuição de selos de qualidade não se esgota nas visíveis carências (vamos designá-las assim) das organizações elencadas no diploma como elegíveis para avaliar os projetos de fact-checking. Prende-se também com o facto de ser o Estado a atribuir-lhes o Estatuto de Utilidade Pública, com tudo o que isso pressupõe, nomeadamente ao nível dos benefícios fiscais. José Magalhães, que é obviamente um democrata, jura que o Estado não quer meter a mão nos media. Se não quer, parece. A verdade é que ao dar ao Estado a competência para decidir quais são as entidades que reúnem condições para atribuir selos de qualidade, esta lei alimentará ferozmente o monstro que pretende combater, constituído pela turba de radicais que não hesitarão em instrumentalizá-la para dar nova força às teorias da conspiração que fazem furor nas redes sociais, segundo as quais há uma mão invisível que manipula secretamente os principais órgãos de informação portugueses.
Um selo da Confederação dos Meios de Comunicação Social? Não, obrigado. Um selo da Associação da Imprensa de Inspiração Cristã, num Estado laico? Dispensamos. Um selo do Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial (!!!)? Passamos.
Resumindo, baralhando e concluindo: sendo, em tese, uma boa ideia, a pomposa Carta Portuguesa dos Direitos Humanos na Era Digital padece de uma praga potencialmente fatal que, a menos que seja entretanto debelada através da abolição pura e simples do artigo 6º, a tornará potencialmente discriminatória, injusta e ineficaz – e isso é tudo o que o combate à desinformação não precisa neste momento.