Na passada segunda-feira, 14, o Polígrafo publicou um fact-check que procurava responder a uma questão: Luís Montenegro pertenceu à loja Maçónica Mozart? O texto foi solicitado por vários leitores através da nossa linha de WhatsApp (968213823), disponível no site para que quem nos segue – e são cada vez mais os que o fazem, felizmente - possa enviar sugestões de temas que considere suficientemente verificáveis pelo Polígrafo.

Trata-se de um canal precioso de comunicação com os leitores. Desde 6 de Novembro de 2018, dia do lançamento do projeto, recebemos centenas de mensagens através deste meio. Por pura incapacidade ou por falta de consistência da proposta, não respondemos a todas as sugestões. Ainda assim, já foram muitos os textos que publicámos e que nasceram a partir desta linha.

Na passada segunda-feira, a resposta à pergunta sobre se Montenegro era membro da maçonaria não era difícil de encontrar. Foram muitos os artigos que, em 2012, aquando da constituição de uma comissão parlamentar para investigar os serviços secretos, foram publicados por órgãos de referência sobre o assunto.  O Expresso, que investigou profusamente as ligações entre a Mozart e a Ongoing, garantiu que assim era, tendo chegado mesmo a publicar um artigo sobre um almoço maçónico para o qual o então deputado social-democrata fora convidado. A Sábado, uma publicação conhecida por ter acesso privilegiado a informação maçónica, também garantiu em várias ocasiões que Montenegro frequentara a loja fundada pelo ex-espião. Eu trabalhava na revista no momento em que as informações foram divulgadas e nunca duvidei (continuo sem duvidar) da veracidade da informação assinada quase sempre por um dos profissionais mais sérios com quem trabalhei. As notícias, nunca desmentidas, foram tema de peças televisivas e radiofónicas.

Mais: Em “O Fim dos Segredos”, um livro escrito por Catarina Guerreiro, outra jornalista de excelência que estudou aprofundadamente o universo maçónico português, também se garantiu que assim era. A obra, que foi um sucesso de vendas e que teve grande repercussão pública, nunca foi desmentida – nem por Montenegro nem pelas dezenas de outros elementos apresentados como sendo membros da instituição.

Perante tanta informação, decidi corresponder ao desejo dos leitores e esclarecê-los sobre o tema, escrevendo um texto em que nada de novo era revelado – limitava-se a compilar informação existente. É também para isso que servem as publicações de fact-checking: para organizar a informação dispersa por várias fontes, de modo a fazê-la chegar de forma clara e precisa ao seu público.

Poucas horas depois de o fact-check ter sido publicado, recebi uma chamada telefónica de um membro da Mozart, que me garantiu que, ao contrário do que se concluía no texto agora assinado por mim, Montenegro nunca pertenceu à maçonaria. Pelo menos no sentido formal do termo.

O Polígrafo é um jornal diferente. Quando escrevo que é diferente, não quero dizer que é melhor. Não é. Há grandes jornalistas em Portugal a trabalhar com fontes anónimas, que são absolutamente imprescindíveis para fazer investigação jornalística – quem disser o contrário pouco ou nada perceberá da profissão.

O que aconteceu foi o que se segue: Luís Montenegro foi, de facto, iniciado na maçonaria, tendo mesmo sido submetido ao ritual iniciático. Porém, a sua entrada nunca foi formalizada em qualquer documento da Grande Loja Legal de Portugal (GLLP). Já então a Mozart estava sob apertada vigilância. A revista Sábado publicara vários artigos sobre a sua atividade e, por colocarem a possibilidade de as fugas de informação poderem estar a partir de dentro da própria GLLP, os maçons da Mozart começaram a ser mais cautelosos, instituindo algumas regras. Uma delas passava por reunir fora das instalações da instituição (recordo-me, porque trabalhava lá na altura, de a Sábado ter publicado fotos de alguns dos seus membros a carregar os instrumentos necessários para cumprir o ritual fora dos tempos maçónicos convencionais). Outra consistia em não comunicar à direção da GLLP as entradas de novos membros, sempre que estes fossem figuras públicas. Montenegro foi um dos elementos que encaixou neste perfil. É certo que o “challenger” de Rui Rio nunca foi um maçon ativo. Não passou do grau de aprendiz (o mais básico na escala maçónica) e a sua passagem pela organização foi extremamente fugaz, sendo muito provavelmente injusto afirmar que terá recolhido quaisquer benefícios por ter sido iniciado numa organização legalmente constituída e presente há mais de um século na sociedade portuguesa.

Com estes elementos em cima da mesa, o que umas horas antes dessa conversa era um dado adquirido, ganhou um novo contorno. Se por um lado sabia que Montenegro fora iniciado na maçonaria, por outro não possuía provas documentais de que tal tivesse sucedido.

Se ainda trabalhasse na Sábado - ou em qualquer órgão de comunicação social dito “tradicional” – esta evolução não seria um problema para mim. Afinal, tinha a certeza de que o essencial da informação era verdadeiro. Mas o Polígrafo é um jornal diferente. Quando escrevo que é diferente, não quero dizer que é melhor. Não é. Há grandes jornalistas em Portugal a trabalhar com fontes anónimas, que são absolutamente imprescindíveis para fazer investigação jornalística – quem disser o contrário pouco ou nada perceberá da profissão.

Porém, no jornalismo de fact-checking não é habitual a publicação de notícias sem base documental (que podem ser livros, notícias publicadas e nunca desmentidas, relatórios oficiais, estatísticas, teses de doutoramento...). É uma regra que não existe por acaso. Ao utilizar, por regra, fonte documental, a margem de erro é menor. Continua a existir, porque felizmente somos humanos, mas torna-se substancialmente mais reduzida.

Frequentemente tenho acesso a informações relevantes e verdadeiras, mas sem base documental. Até ao dia 5 de Novembro de 2018 não hesitava em fazer o que os bons jornalistas fazem: confirmar a informação e, se tivesse a certeza de que era fidedigna, publicá-la. Agora o que faço é transmiti-la a outros colegas que a podem tratar sem a limitação, vamos chamar-lhe assim, que o Polígrafo objetivamente possui.

No dilema entre permanecer fiel ao princípio de não revelar informações sem base documental ou corrigir a imprecisão de Montenegro, decidi agora, depois de demorada reflexão, escolher a segunda opção. O valor da verdade falou mais alto. Devo-o aos leitores do Polígrafo.

Decidi, por este motivo, retirar o fact-check do ar. Logo na segunda-feira, foram muitos os leitores que questionaram o Polígrafo sobre a opção. Optei por responder com a verdade: foi uma opção editorial. Sem mais explicações. À medida que as horas foram passando a dúvida também foi agigantando, tendo mesmo chegado à página d’Os Truques da Imprensa Portuguesa – um espaço polémico a quem reconheço um trabalho interessante ao nível da denúncia do fenómeno tenebroso do clickbait na internet, mas também uma plataforma em que a desonestidade intelectual e a raiva incontida de alguns dos frequentadores das caixas de comentários se impõe com frequência à habitualmente rigorosa análise dos seus autores.

Assim sendo, o que mudou entretanto para agora fazer uma tão grande adenda a uma tão curta resposta? O facto de na terça-feira, 15, um dia depois da publicação do fact-check entretanto retirado, Luís Montenegro ter declarado taxativamente à CMTV que nunca teve nada que ver com a maçonaria – e isso não corresponde à verdade dos factos.

No dilema entre permanecer fiel ao princípio de não revelar informações sem base documental ou corrigir a imprecisão de Montenegro, decidi agora, depois de demorada reflexão, escolher a segunda opção. O valor da verdade falou mais alto. Devo-o aos leitores do Polígrafo, que se sentiram legitimamente frustrados com o facto de um conteúdo ter sido retirado do ar sem justificação concludente. Sabem agora que não era possível dizer tudo sem agredir um princípio que considero relevante para a afirmação do projeto enquanto espaço de rigor.

Vivemos tempos difíceis, em que a verdade e a ficção se confundem frequentemente, semeando na população a desconfiança, a descrença, a apatia e com isso contribuindo decisivamente  para a afirmação de uma lamentável embriaguez intelectual coletiva. São os políticos que prometem uma coisa em campanha eleitoral e que fazem o seu contrário quando assumem o poder. São os comentadores e influenciadores que, em vez de esclarecerem, tantas vezes lançam ainda mais confusão no espaço público. São as redes sociais, um verdadeiro cemitério da verdade em que a desinformação – as chamadas fake news – circula à velocidade da luz, intoxicando uma população que hoje consome 60% da totalidade da informação através de plataformas como o Facebook ou o YouTube. E são os jornalistas, cada vez mais proletarizados, cada vez mais precários, cada vez mais incapazes de, num ambiente hostil, estar à altura de cumprir com a elevação necessária o papel fulcral que têm de desempenhar na luta contra a desinformação. Não me excluo desse lote. Não sou melhor do que ninguém, o Polígrafo não é melhor do que os outros. Fazemos o nosso trabalho tão honestamente quanto podemos. E pedimos desculpa quando falhamos.

Talvez tenha chegado a hora de o fazermos pela primeira vez. A reflexão que agora faço chega com dois dias de atraso e penalizo-me por isso. Sei que os que nos leem com boa-fé seguirão connosco nesta trajetória fascinante que consiste na procura da verdade e na promoção do aprofundamento da democracia. Os outros, os profissionais do ódio anónimo em caixas de comentários, os mestres do insulto e da insinuação canalha, vão obviamente ficar a falar sozinhos.

Há um trabalho maior para fazer. Vamos a ele?

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