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A carga de trabalhos do Orçamento do Estado: Ayatollah Khomeini, Sócrates otimista e 100 milhões perdidos

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Elaborar o Orçamento do Estado português é uma tarefa complexa. As recessões que não se preveem, o impacto das crises mundiais, transferências que ficam por fazer ou chumbos do Tribunal Constitucional têm obrigado vários governos a tomar medidas extraordinárias ou a aprovar orçamentos retificativos.

Com a votação final global da proposta do Orçamento do Estado a ter lugar hoje, o Polígrafo recorda alguns episódios – incluindo atrasos nas entregas do documento -, que marcaram o país nas últimas décadas.

Ayatollah no Irão leva FMI a aterrar pela segunda vez em Portugal

A revolução iraniana liderada pelo ayatollah Khomeinie a guerra Irão-Iraque provocaram o disparo do preço do petróleo nos mercados internacionais no início dos anos 80. Portugal era então governado por Francisco Pinto Balsemão (1981-1983) e o aumento do preço do barril obrigou o país a gastar mais dinheiro quando chegava a hora de comprar petróleo ou combustíveis ao exterior.

“Nós vivemos aquela crise enorme do aumento do preço do petróleo nos anos 80, por causa do Irão. Houve uma tensão enorme no Médio Oriente, o preço do petróleo disparou cinco vezes”, conta ao Polígrafo o então ministro da Administração Interna, Ângelo Correia.

A subida do preço do barril “alterou completamente as posições quer da balança de pagamentos, quer do Orçamento do Estado”, recorda o ex-ministro e um dos fundadores do PSD. “Gastava-se muito dinheiro em petróleo e não havia exportações suficientes para compensar. Por isso, tivemos uma crise enorme que levou em 1983 à desvalorização do escudo e à entrada do FMI em Portugal”.

Com a dívida externa a crescer 732 milhões de escudos em dois anos para quase 1.200 milhões de escudos no final de 1982, o Governo de coligação PSD/CDS/PPM ainda aumentou as taxas de juro em quatro pontos e vendeu 50 toneladas de ouro no início de 1983 para mitigar os efeitos da crise, segundo o jornal Público.

Mas de pouco valeu, pois meses mais tarde o Fundo Monetário Internacional (FMI) viria a aterrar em Portugal pela segunda vez (a primeira intervenção foi em 1977), já com o Governo do bloco central (PS-PSD) instalado, sob a liderança de Mário Soares.

Apesar da crise que se abateu então sobre o país, Ângelo Correia afirma que as negociações para o Orçamento do Estado dentro do Governo de coligação PSD-CDS-PPM foram sempre tranquilas.

“Essa altura foi um período doloroso financeiramente, havia uma contenção por parte de todos os ministérios para não gastarmos. Havia a perceção de todos os membros do Governo que a situação era muito difícil e que não podíamos esticar a corda minimamente”, segundo o ex-ministro.

Disquete rejeitada obriga a caixotes de papelada

Cavaco Silva conquistou a sua segunda maioria absoluta consecutiva em 1991. Depois de Miguel Cadilhe e de Miguel Beleza terem sido os ministros das Finanças nos seus dois primeiros governos, o social-democrata convidou Jorge Braga de Macedo para o cargo.

“Naquela altura tinha de se levar o Orçamento do Estado em caixotes e caixotes. Eu tentei levar uma disquete, mas não aceitaram. O PSD disse logo ‘não faça isso, senão eles dizem que não vale porque não é papel’. Eu tive que levar um guarda-costas com sete ou oito caixotes, uma coisa ridícula quando se podia usar uma disquete.

Quando chegou ao Governo ao 1991, o professor universitário contava já no seu currículo com passagens pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Comissão Europeia. Na altura de entregar o seu primeiro Orçamento do Estado, Braga de Macedo ficou surpreendido com as práticas tradicionais da Assembleia da República.

“Naquela altura tinha de se levar o Orçamento do Estado em caixotes e caixotes. Eu tentei levar uma disquete, mas não aceitaram. O PSD disse logo ‘não faça isso, senão eles dizem que não vale porque não é papel’. Eu tive que levar um guarda-costas com sete ou oito caixotes, uma coisa ridícula quando se podia usar uma disquete. Era uma coisa um bocado física”, conta o professor da Nova SBE.

“Mas recusaram porque houve medo e exigiram que fosse papel. Isto foi depois da segunda maioria absoluta e o ambiente era tal relativamente ao cavaquismo, aquilo estava numa fúria”, recorda. “Mais tarde passou a ser totalmente aceite ser uma disquete”, acrescenta.

Sobre a entrega da proposta do Orçamento do Estado no Parlamento, Braga de Macedo assegura que entregou o documento “sempre uns dias antes ou véspera, não era aquela coisa da entrega noturna como agora”.

Os 100 milhões que ficaram por transferir

A elaboração de um Orçamento do Estado é uma tarefa complexa para os vários membros de um Governo. Esta complexidade pode dar origem a gralhas, erros ou lapsos. Durante o primeiro Governo de António Guterres (1995-1999) teve lugar um destes episódios, quando um dos ministérios não inscreveu uma transferência de muitos milhões de escudos relativos à contrapartida nacional de fundos europeus no Orçamento do Estado de 1996.

“Houve um erro do lado do ministério do Planeamento e depois teve que ser construída uma solução porque se tinham esquecido que havia transferências a fazer para o ministério da Economia em matéria de fundos estruturais”, recorda o então ministro da Economia, Augusto Mateus.

Esta transferência teria um valor entre os 100 milhões a 150 milhões de escudos. Conforme explica o economista, apesar de este montante “estar inscrito no Orçamento, não estava era no elenco das transferências que seriam feitas do ministério do Planeamento para o ministério da Economia”.

“Quando dei por mim tinha um Orçamento do Estado aprovado onde não tinha sido inscrito o que devia ter sido do ponto de vista da contrapartida nacional dos fundos estruturais, foi preciso fazer uma reformulação disso”, acrescenta.

“Houve um erro do lado do ministério do Planeamento e depois teve que ser construída uma solução porque se tinham esquecido que havia transferências a fazer para o ministério da Economia em matéria de fundos estruturais”, recorda o então ministro da Economia, Augusto Mateus.

 

Detetado o problema, o Executivo de António Guterres encontrou uma “solução técnica” e realizou uma “reprogramação” que permitiu a transferência dos fundos europeus entre os dois ministérios.

Sobre as negociações dentro de um governo para elaborar o Orçamento do Estado, o economista conta que este é um “tempo de antipatia por parte do ministro das Finanças e um tempo de exigências dos outros ministros. Normalmente, há uma equipa que é o primeiro-ministro e o ministro das Finanças, que são os maus, enquanto os outros ministros são os bons”.

O economista considera que o ministro das Finanças tem assim um papel crucial para equilibrar os desejos dos ministros e a despesa que pode ser efetuada.  “Se eu fizesse um Orçamento a pedir a todos os ministros o que é que querem para inscrever no OE eu ia ter o dobro da despesa possível. O ministro das Finanças tem assim um papel relevante do ponto de vista de disciplinar aquilo que é a elaboração do OE”.

Sócrates com “excesso de otimismo” em ano de crise financeira mundial

Em 2007 a crise do crédito à habitação de alto risco (o “subprime”) explodiu nos Estados Unidos, gerando uma crise financeira que teve como consequência a falência de um dos maiores bancos norte-americanos em 2008, o Lehman Brothers.

A crise financeira acabou por alastrar-se à Europa e atingiu Portugal em cheio em 2009 cuja economia recuou quase 3% nesse ano, com o desemprego a subir de 8,5% para 12% entre 2008 e 2010.

Em outubro de 2009 tiveram lugar as eleições legislativas, com José Sócrates a ser reeleito, mas agora com um Governo minoritário. António Mendonça entrou então para o segundo Governo Sócrates como ministro das Obras Públicas, Transportes e Comunicações

Analisando esse período, António Mendonça considera que houve um “excesso de otimismo” por parte do Governo Sócrates quando elaborou o Orçamento do Estado para 2009, por não ter previsto o impacto da crise financeira na economia nacional.

“O défice desse ano foi muito elevado devido à quebra das receitas fiscais. Houve um excesso de otimismo relativamente ao comportamento da economia, uma expectativa demasiado otimista. Pensava-se que a economia portuguesa resistia mais à crise do que efetivamente veio a ocorrer. Na elaboração orçamental também estava refletido esse otimismo que a economia não sofreria tanto devido à crise internacional, como de facto veio a sofrer”, recorda ao Polígrafo o professor do ISEG.

No Orçamento do Estado de 2009, o primeiro Governo Sócrates deu uma prenda aos funcionários públicos: uma subida do ordenado de 2,9%, no que foi o maior aumento salarial do sector público desde 2001.

Este aumento contribuiu para a subida da despesa pública e agravamento do défice. Entre 2008 e 2009, a despesa pública total em percentagem do PIB subiu dos 44,7% para 49,7% num total de 83,1 mil milhões de euros. Esta percentagem viria subir para os 51,5% em 2010, atingindo os 88,9 mil milhões de euros, de acordo com dados do Banco de Portugal.

O aumento da despesa pública nesses anos reflectiu-se no défice orçamental, que depois de atingir os 3% em 2007 disparou nos anos seguintes: 3% em 2008, e 9,8% em 2009. Já em 2010 o Governo de José Sócrates atingiu um défice recorde de 11,2%, para voltar a recuar em 2011 para os 7,4%, ano em que a troika entrou em Portugal e arrancou o programa de assistência financeira internacional.

Paralelamente, a economia sofria altos e baixos. Depois de um crescimento de 2,49% do PIB em 2007, a economia desacelerou em 2008 quando cresceu apenas 0,20%. Já em 2009, a economia afundou 2,98%, para voltar a crescer em 2010 (1,90%), antes de voltar a afundar em 2011 (-1,83%).

Mas o défice desse ano também foi penalizado pela quebra da receita fiscal devido à queda da economia portuguesa, com as receitas fiscais a recuarem quase 14% para os 30,6 mil milhões de euros, segundo dados disponibilizados pelo Pordata.

Na sua análise, António Mendonça considera que a quebra das receitas fiscais foi mais penalizadora para o défice do que o aumento da despesa. “O défice desse ano foi menos devido, ao contrário do que se diz, ao aumento da despesa, mas foi fundamentalmente por culpa da quebra das receitas que não foram aquilo que inicialmente se tinha previsto”.

O economista considera que o Governo Sócrates subestimou a crise financeira internacional. “Mesmo a nível internacional, os relatórios do FMI e de outras instituições, havia a ideia de que a crise era uma coisa que se controlaria bem, mas ainda estamos a viver hoje os efeitos dessa crise. Houve um erro de apreciação generalizado, que se refletiu depois em erros que foram cometidos ao nível dos países. Houve de facto uma grande subestimação sobre o que viria a ser a crise”, reconhece António Mendonça.

Teixeira dos Santos: Onde é que está o Orçamento?

Durante os governos Sócrates, ficaram para a posteridade vários episódios envolvendo a entrega das propostas de Orçamento do Estado no Parlamento, devido a atrasos e a falta de documentos.

Um dos episódios mais famosos teve lugar a 14 de outubro de 2008 quando o ministro das Finanças Teixeira dos Santos entregou a proposta de Orçamento do Estado para 2009 de forma incompleta, pois faltavam vários documentos essenciais na “pen” entregue no Parlamento.

Na altura, o deputado do PCP Honório Novo queixava-se que a proposta de Orçamento do Estado para 2009 tinha sido entregue aos deputados sem relatório nem mapas, o que “torna o documento ininteligível. Isto é um mistério que o ministério [das Finanças] vai ter que resolver”.

“Isto é o articulado, a proposta de lei. Falta o quadro macroeconómico, o relatório não veio, nem o do PIDDAC (Plano de Investimentos e Desenvolvimento da Administração). Na prática, não foi entregue o Orçamento do Estado”, declarou então à Agência Lusa o deputado comunista.

Um dos episódios mais famosos teve lugar a 14 de outubro de 2008 quando o ministro das Finanças Teixeira dos Santos entregou a proposta de Orçamento do Estado para 2009 de forma incompleta, pois faltavam vários documentos essenciais na “pen” entregue no Parlamento.

“Isto não é normal. Na prática não foi entregue o Orçamento”, dizia então o deputado do PCP, citado pelo Diário de Notícias.

Nesse ano, o Governo Sócrates entregou a proposta de OE, um dia antes da data limite de 15 de outubro, mas só foi entregue no Parlamento três horas e meia depois da hora prevista, com a “pen” a não conter muita informação essencial. A conferência de imprensa de apresentação do OE só teria lugar na manhã do dia seguinte.

Dois anos mais tarde, o Orçamento do Estado voltou a ser entregue de forma incompleta no Parlamento, precisamente pelo mesmo ministro das Finanças, Teixeira dos Santos.

A entrega da proposta de Orçamento do Estado para 2011 estava marcada para as 19:30 de 15 de outubro. Foi depois adiada para as 22:30, mas o documento acabou por se entregue apenas às 23:30.

No entanto, a “pen” entregue pelo ministro Teixeira dos Santos estava, novamente, incompleta, pois faltavam vários documentos relevantes, segundo a RTP.

O PCP e Os Verdes acusaram o Governo de Sócrates de total desrespeito pela Assembleia da República por o OE ter sido entregue de forma incompleta.

Vítor Gaspar: O “enorme aumento de impostos” e as guerras com o Constitucional

O economista tecnocrata sem experiência política foi escolhido por Pedro Passos Coelho para gerir as contas públicas durante a intervenção da troika. Incumbido da tarefa de aumentar impostos e cortar na despesa, Vítor Gaspar viu várias das suas medidas orçamentais serem chumbadas pelo Tribunal Constitucional.

Para o Orçamento do Estado de 2013, o então ministro das Finanças anunciou um “enorme aumento de impostos”, através da criação de uma sobretaxa de 4% no IRS. Entre as medidas chumbadas, constava a suspensão dos subsídios de férias dos funcionários públicos e de 90% dos subsídios de férias dos pensionistas, assim como um corte de 5% nos subsídios de doença e de 6% nos subsídios de desemprego.

Vitor gaspar
epa06259275 Vitor Gaspar, Director of the Fiscal Affairs Department of the International Monetary Fund (IMF), speaks at a press briefing on fiscal monitors at IMF Headquarters in Washington, DC, USA, 11 October 2017. The 2017 Annual meetings of the International Monetary Fund and World Bank Group take place 9-15 October. EPA/JIM LO SCALZO

A decisão do Constitucional obrigou o Governo de Passos Coelho a elaborar um Orçamento retificativo, conforme reconheceu o ministro das Finanças em junho de 2013. “A alteração ao Orçamento do Estado foi necessária devido ao aumento de despesa exigido no seguimento da decisão do Tribunal Constitucional”, disse então Vítor Gaspar no Parlamento, citado pelo Diário de Notícias.

Mas um ano antes, o Constitucional já tinha chumbado o primeiro Orçamento do Estado do Governo PSD/CDS. Em julho de 2012, os juízes do Palácio Ratton pronunciaram-se contra o corte dos subsídios aos funcionários públicos previsto no Orçamento de 2012.

Durante a sua legislatura, o Governo de Passos Coelho aprovou dois orçamentos retificativos em três dos quatro anos: 2012, 2013 e 2014, com 2015 a ser a exceção, quando o Orçamento do Estado desse ano foi alterado uma única vez.

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