Ambos estreados há meio-século – “Woodstock” a 26 de Março de 1970 nos EUA (em Portugal estrearia apenas em Junho de 1975), “Gimme Shelter” com première norte-americana a 6 de Dezembro de 1970 – as longas-metragens documentam, respectivamente, o lendário festival de música realizado entre 15 e 18 de Agosto de 1969 numa quinta de Bethel, a 65 quilómetros da povoação de Woodstock, estado de Nova Iorque, e as derradeiras semanas de tournée dos Rolling Stones nos EUA em 1969, que culminariam no (infelizmente célebre) concerto de Altamont, arredores de São Francisco, Califórnia.
Obras cinematográficas de abordagem diversa – “Woodstock” utilizando mais técnicas de montagem, entrevistas encenadas e recursos visuais como o split-screen, apresentando até três sequências em simultâneo no ecrã; “Gimme Shelter” num olhar mais directo, menos filtrado, próprio da escola de cinéma vérité coinventada e prosseguida pelos irmãos Maysles (“Salesman”, “Grey Gardens”) – os dois filmes estão ligados de forma simbólica:
“Woodstock” reproduz um acontecimento capital no espírito libertário e na mensagem de esperança característicos do final dos anos 60; “Gimme Shelter” funciona como o internegativo dessa mensagem, ao culminar nos acontecimentos trágicos de 6 de Dezembro de 1969 em Altamont.
“Woodstock” é uma reprodução bastante fiel, necessariamente comprimida, dos três dias do festival de música que marcaria o movimento hippie e a atmosfera de flower power que então atravessava a América jovem, dando conta dos problemas de organização e policiamento e do caos na frequência de um evento originalmente pago mas cujas bilheteiras nunca funcionaram em pleno, levando a que um show musical com dezenas de artistas onde se esperavam 50 mil espectadores tivesse chegado, no seu pico, a uma audiência ao vivo de cerca de 450 mil pessoas.
“Woodstock” reproduz um acontecimento capital no espírito libertário e na mensagem de esperança característicos do final dos anos 60; “Gimme Shelter” funciona como o internegativo dessa mensagem, ao culminar nos acontecimentos trágicos de 6 de Dezembro de 1969 em Altamont.
Porém, em múltiplos momentos de partilha entre músicos e público como nos testemunhos e imagens recolhidos nas pausas das performances, o documentário é muito eficaz e, aqui e ali, inspirador, na forma como transmite a alegria e a felicidade dos participantes de um acontecimento surpreendentemente pacífico para a sua escala e nível de improviso, acabando por reforçar o mito de Woodstock, que perduraria até hoje, embora não se omitam os acasos, os contratempos e a – por vezes – dramática euforia.
“Woodstock” reúne concertos de algumas das maiores figuras do rock e folk dos sixties, como os Creedence Clearwater Revival, Joan Baez, Crosby, Stills, Nash & Young, Janis Joplin, Jefferson Airplane, Jimi Hendrix ou Santana (cuja carreira descolaria a partir daqui).
Filmado em estéreo de quatro pistas (é um dos raríssimos filmes documentais nomeados para o Óscar de Melhor Som) e vencedor do Óscar de Melhor Documentário na edição de Março de 1970, “Woodstock” teve na sua equipa de editores jovens aspirantes a cineastas como Martin Scorsese ou o próprio Wadleigh e veteranos como Thelma Schoonmaker (“Taxi Driver, “O Touro Enraivecido”), acumulando receitas mundiais de 8 milhões de dólares (7,13 milhões de euros) para um orçamento – reduzido – de 600 mil dólares (534 mil euros).
Com 184 minutos de duração, “Woodstock” teve uma director’s cut (versão do realizador) com 228 minutos estreada em sala e lançada em DVD em 1994, por ocasião do 25º aniversário do festival e agora em Dolby SR-D, onde se incluem sobretudo faixas inéditas em filme, como as performances de Janis Joplin ou dos Jefferson Airplane. Esta director’s cut termina com uma imagem do Memorial do Vietname e uma lista de nomes fundamentais na História dos anos 60 (de JFK a Malcolm X), ao som de “Find the Cost of Freedom Playing” dos Crosby, Stills, Nash & Young.
Por ocasião do 40º aniversário, foi lançada em Blu-Ray uma edição especial com mais actuações, então editadas mas que não chegariam à versão original, totalizando 356 minutos.
A quinta de Max Yasgur, um agricultor que juraria jamais repetir a experiência traumática de ocupação dos seus terrenos, com centenas de milhares de jovens à chuva, na lama, sem condições sanitárias, foi a quarta escolha, já em desespero, dos organizadores John Roberts e Joel Rosenman.
Além de dois nascimentos durante o festival (um na gigantesca fila de trânsito até ao local dos concertos, outro após a grávida ser transportada de urgência do lamaçal para o helicóptero), registaram-se quatro abortos durante os quatro dias de espectáculos, além de duas mortes acidentais: uma por excesso de insulina injectada (e não por overdose de heroína, como chegou a ser noticiado), outra por…atropelamento de tractor.
A três dias do início do festival, a falta de licenças de construção levaram a equipa que montava o evento a ter de optar entre finalizar o palco ou completar as vedações e as bilheteiras (daí as borlas e o caos acrescido). Woodstock, “an Aquarian Exposition: 3 Days of Peace & Music” (era este o título original do evento) deixou Roberts e Rosenman na ruína e, por ironia, só o grande sucesso de bilheteira do documentário e o êxito de vendas do álbum do festival lhes permitiria escapar à bancarrota. “Woodstock” ajudaria mesmo a salvar a Warner Brothers da insolvência.
No entanto, houve dificuldades que “Woodstock” omite ou secundariza:
– com 32 bandas e intérpretes em apenas quatro dias (os concertos duravam toda a tarde e noite, estendendo-se após o nascer do sol, com interrupções de poucas horas no final de cada manhã; a hoje antológica performance de Jimi Hendrix, que encerraria Woodstock, começou às 8h30 da manhã, por causa da chuva e de atrasos no alinhamento), boa parte dos artistas de maior notoriedade que foram convidados recusaram: os Doors, os Beatles (John Lennon chegou a responder, sugerindo antes actuar com Plastic Ono Band, no que foi logo declinado), Bob Dylan – justificando-se com o facto de não gostar de festivais, embora acabasse por actuar no festival britânico da ilha de Wight no mesmo período -, Simon & Garfunkel (então a meio da gravação do álbum “Bridge Over Troubled Water”) ou Joni Mitchell que, ao ver uma reportagem na TV sobre os concertos, arrepender-se-ia, escrevendo uma das melhores canções da sua carreira sobre o evento, “Woodstock”.
- Além de dois nascimentos durante o festival (um na gigantesca fila de trânsito até ao local dos concertos, outro após a grávida ser transportada de urgência do lamaçal para o helicóptero), registaram-se quatro abortos durante os quatro dias de espectáculos, além de duas mortes acidentais: uma por excesso de insulina injectada (e não por overdose de heroína, como chegou a ser noticiado), outra por…atropelamento de tractor – um espectador dormia num local ermo na relva e o condutor do veículo não reparou nele;
- Cerca de 80 processos por perdas e danos foram movidos por agricultores da região contra os promotores do festival; se não fossem os proventos do documentário, Roberts e Rosenman não poderiam ter negociado os acordos para os anular; um dos processos individuais foi movido por um dos faxineiros contratados para limpar as sanitas portáteis instaladas na quinta, que alegaria “angústia, embaraço e ridículo público” depois de a sua entrevista ser incluída no filme;
- Devido aos distúrbios causados na zona por centenas de milhares de transeuntes eufóricos, a assembleia de habitantes de Bethel decidiu não reeleger o supervisor municipal Daniel Amatucci, que negociara as autorizações para o festival;
- Alguns dos cantores e músicos que fizeram parte do alinhamento de quatro dias (como os Who) ficaram furiosos com o facto de lhes ser servido LSD nas bebidas dos bastidores sem o seu conhecimento;
- Também os Rolling Stones foram convidados a actuar em Woodstock, mas recusariam porque Anita Pallenberg, então namorada de Keith Richards, acabara de dar à luz o primeiro filho do casal, Marlon, e Mick Jagger estava na Austrália a rodar a adaptação cinematográfica da vida do bandido Ned Kelly.
Cerca de 80 processos por perdas e danos foram movidos por agricultores da região contra os promotores do festival; se não fossem os proventos do documentário, Roberts e Rosenman não poderiam ter negociado os acordos para os anular; um dos processos individuais foi movido por um dos faxineiros contratados para limpar as sanitas portáteis instaladas na quinta, que alegaria “angústia, embaraço e ridículo público” depois de a sua entrevista ser incluída no filme.
Estreado oito meses depois de “Woodstock”, a 6 de Dezembro de 1970 (em Portugal também estrearia apenas depois do 25 de Abril de 1974), “Gimme Shelter” começa por reproduzir fragmentos de performances dos Stones durante a sua curta digressão de 1969 nos EUA, acompanhando também a gravação do álbum “Sticky Fingers” em Muscle Shoals, no Alabama. Mas o enfoque maior vai para a transformação da tournée numa história de terror a 6 de Dezembro de 1969, com a câmara a não recuar face à escalada de acontecimentos.
Sendo um evento gratuito, anunciado como o ‘Woodstock do Oeste’, o concerto do Altamont Speedway, junto a São Francisco, incluiu a actuação de nomes como os Jefferson Airplane, Santana, The Flying Burritos Brothers ou Ike e Tina Turner. Mas os cabeça de cartaz, e organizadores, eram os Rolling Stones. Tanto assim que foram os próprios a contratar um grupo de Hell’s Angels – um bando nacionalmente organizado de motoqueiros com um historial de drogas, álcool e violência – para segurança do evento, sobretudo por iniciativa de Mick Jagger, que ficara muito impressionado com uma célula londrina dos Angels que garantira a segurança de um concerto gratuito dos Stones meses antes, em Julho, no Hyde Park (acontece que Jagger não sabia que os Angels britânicos eram apenas fãs pacíficos dos originais), mas também graças à sugestão dos Grateful Dead.
Quando Sam Cutler, o representante dos Stones, negoceia com Terry ‘The Tramp’, líder dos Hell’s Angels, a contratação dos serviços do inefável gangue, fica acordado que este será pago em 500 dólares de…cerveja.
O segundo problema – e o filme reproduz fielmente a pressa e o diletantismo da empreitada – era a gritante falta de condições do local escolhido, corroborada pelo escritor e crítico de música Joel Selvin, com mais de cem testemunhos recolhidos e dezenas de reportagens e artigos citados no seu “The Rolling Stones, The Hell’s Angels and the Inside Story of Rock’s Darkest Day” (Dey Street Books, reedição de 2016). 36 horas antes da data prevista, ainda não havia local para o concerto: a primeira escolha, o Golden Gate Park em São Francisco, estava indisponível; sem alternativas, decidiu-se instalar o palco – demasiado pequeno – num velho e desactivado campo de corridas de automóveis, o Altamont Speedway, em Tracy.
Quando os Stones aterram de helicóptero para o momento maior do espectáculo, Jagger leva logo com um murro na cara de um passante. Há muito que a legião de Hell’s Angels, armada de tacos de snooker e tão alcoolizada como a audiência, distribuí pancadaria de forma indiscriminada. Antes, uma fã grávida levara com uma lata de cerveja na cabeça, que lhe causará um traumatismo craniano.
O controlo da multidão era inexistente, não havia sanitários, não se viam pontos de venda de água e comida e prescindiu-se de apoio médico.
O terceiro problema era o estado em que o público se encontrava – perto de 300 mil pessoas quando se esperavam cerca de 50 mil – no momento em que os Stones actuam: inebriados por mau ácido, vinho tinto barato e metanfetaminas. O ambiente era tão tóxico que Os Grateful Dead, ora coniventes, ora impulsionadores do desleixo com que tinham decorrido os preparativos, recusaram-se a actuar assim que chegaram ao local. Com uma multidão superior a todas as expectativas, a polícia manteve-se ao largo.
Quando os Stones aterram de helicóptero para o momento maior do espectáculo, Jagger leva logo com um murro na cara de um passante. Há muito que a legião de Hell’s Angels, armada de tacos de snooker e tão alcoolizada como a audiência, distribuí pancadaria de forma indiscriminada. Antes, uma fã grávida levara com uma lata de cerveja na cabeça, que lhe causará um traumatismo craniano.
Durante o set dos Crosby, Stills, Nash & Young, Stephen Stills é esfaqueado na perna por um dos…seguranças. Marty Balin, o vocalista dos Jefferson Airplane, decide, em plena actuação, apelar aos Hell’s Angels para que parem de espancar um espectador – como resposta, o palco é invadido pelos motoqueiros, que agridem Balin. Como barreira física entre o palco e a audiência, há uma fita.
Um hippie, toldado por um cocktail de substâncias ilícitas, cai num reservatório e afoga-se. Duas pessoas são mortas por atropelamento nos acesso ao Altamont Speedway – o condutor foge do local do crime. No concerto, uma rapariga sobe ao palco e é atingida ao pontapé por outro Hell Angel, Sonny Barger.
Durante o set dos Crosby, Stills, Nash & Young, Stephen Stills é esfaqueado na perna por um dos…seguranças. Marty Balin, o vocalista dos Jefferson Airplane, decide, em plena actuação, apelar aos Hell’s Angels para que parem de espancar um espectador – como resposta, o palco é invadido pelos motoqueiros, que agridem Balin. Como barreira física entre o palco e a audiência, há uma fita.
Quando os Stones chegam ao palco, estamos no ponto-limite, e o filme captura essa tensão. Ao contrário de rumores recorrentes, a derradeira tragédia ocorre, não durante a performance de “Sympathy for the Devil”, mas enquanto tocam “Under My Thumb”: Na confusão, distingue-se Meredith Hunter Jr., um homem negro, já muito embriagado, de casaco verde lima, que se envolve com Alan Passaro, um Hell Angel; Meredith saca de uma pistola – distinguimo-la recortada nas sombras – e, antes que a use, é esfaqueado até à morte por Passaro (seria absolvido por, segundo o tribunal, ter agido em autodefesa).
Por regra, “Gimme Shelter” observa os acontecimentos sem os julgar. Há um gesto manipulatório de montagem: houve na realidade duas versões de “Under My Thumb”, uma delas interrompida por distúrbios entre o público; a versão do tema que aparece no filme foi tocada depois do esfaqueamento mortal, não antes; assim, a agressão mortal foi editada junto ao fim da segunda interpretação em palco de “Under My Thumb”.
Se “Woodstock” representa o clímax do espírito contracultural dos anos 60, “Gimme Shelter” marca o seu epílogo.