“Tiger King: Murder, Mayhem and Madness” é uma minissérie documental de sete episódios, produzida pela Netflix e estreada globalmente nesta plataforma de streaming a 20 de Março de 2020.
O foco da série é Joe Exotic (nome verdadeiro Joseph Allen Maldonado Passage), o proprietário e chefe zelador do Greater Wynnewood Exotic Animal Park – também conhecido por Garold Wayne Exotic Animal Memorial Park, ou GW Zoo -, um jardim zoológico de estrada com dezenas de grandes felinos em confinamento no Oklahoma, EUA, e a longa guerra verbal, judicial e, por fim, homicida deste excêntrico coleccionador de tigres e leões com Carole Baskin, activista pelos direitos dos animais e dona do Big Cat Rescue, um santuário de protecção de grandes felinos em Tampa, Flórida, EUA.
Em poucos dias, “Tiger King” tornou-se uma série de grande popularidade a nível nacional e internacional, vista numa semana e meia por 34,3 milhões de espectadores, de acordo com dados da Nielsen, principal instrumento de medição de audiências nos Estados Unidos, assim resultando num dos melhores lançamentos de sempre do gigante de TV ‘over the top’ (os serviços de média oferecidos directamente via Internet).
Enquanto produto de documentário de ‘crime real’, “Tiger King’ baseia a sua narrativa na escalada de animosidade entre Exotic, um ‘hillbilly’ de chamirro oxigenado (o corte de cabelo curto à frente e dos lados mas comprido atrás, típico em certas culturas dos anos 80), dado à poligamia homossexual – chegou a ter três maridos oficiosos em simultâneo -, putativo candidato a presidente dos Estados Unidos em 2016, e Baskin, alvo de insinuações públicas de que teria assassinado o segundo marido, Don Lewis, desaparecido desde 1997 após uma viagem à Costa Rica.
O segundo apelo ao entretenimento televisivo com base em factos é o exotismo duvidoso e a inefável excentricidade das figuras principais e secundárias retratadas: para além de Exotic, seguimos o percurso e o quotidiano – a série foi rodada ao longo de cinco anos – de personagens verídicas como Bhagavan Antle (também conhecido por Kevin Antle ou ‘Doc’ Antle), treinador de animais e proprietário de outro parque de vida selvagem especializado em grandes felinos, “The Institute for Greatly Endangered and Rare Species” (T.I.G.E.R.S.) em Myrtle Beach, Carolina do Sul, também nos EUA, acusado de liderar um culto de personalidade que serviria de pretexto ao abuso de funcionárias do parque, sobretudo mulheres jovens; Jeff Lowe, um playboy de Las Vegas com cadastro de violência doméstica que acabará por se tornar o proprietário do jardim zoológico de Exotic; ou Mario Trabaue, um antigo barão da droga que começou a dedicar-se ao tráfico de animais.
Dirigida por Rebecca Chaiklin (de carreira iniciada na produção de documentários, sendo “Tiger King” o quarto trabalho como realizadora desde 2001) e por Eric Goode (um empresário do ramo hoteleiro, director de videoclips para os Nine Inch Nails e de documentários sobre tartarugas, fundador da Turtle Conservancy, um organismo de conservação da natureza sem fins lucrativos), será “Tiger King” uma série documental que respeita os factos?
Se “Tiger King” narra com alguma minúcia a forma como o desdém de Joe Exotic por Carole Baskin se transformará em ódio de estimação, culminando em duas tentativas de recrutamento de assassinos a soldo para eliminarem a activista dos direitos animais (sendo que a segunda proposta de homicídio de Baskin é feita a James Garretson, um informador do FBI, agência que já seguia as actividades de Exotic há algum tempo), é atribuída quase tanta relevância narrativa, para efeitos de progressão dramática e recrudescimento do antagonismo dos protagonistas, aos rumores sobre a hipótese de Carole Baskin ter morto o segundo marido, para ficar com a propriedade exclusiva dos cerca de cinco milhões de dólares em património imobiliário que com aquele partilhava.
Enquanto produto de documentário de ‘crime real’, “Tiger King’ baseia a sua narrativa na escalada de animosidade entre Exotic, um ‘hillbilly’ de chamirro oxigenado (o corte de cabelo curto à frente e dos lados mas comprido atrás, típico em certas culturas dos anos 80), dado à poligamia homossexual
Ora, não só os produtores e realizadores não concedem, na série, qualquer oportunidade a Baskin de se defender das graves acusações – nunca existiu uma acusação judicial à activista sobre o assassinato de Don Lewis – como dedicam um episódio inteiro (o terceiro) a insinuar a forte probabilidade de isso ter acontecido, baseando-se em provas circunstanciais e nos testemunhos das filhas e da anterior mulher de Lewis, todas com um longo histórico de litígio legal e financeiro contra Baskin. Nunca se chega a perceber qual é a relevância da tese numa série sobre os desmandos de Joe Exotic e a controvérsia de grandes felinos mantidos em cativeiro, sendo Baskin a única protagonista da série cujo objectivo é salvar animais, não procriá-los em cativeiro para fins comerciais.
A série promove mesmo a hipótese de Baskin ter enfiado o corpo do segundo marido num triturador de carne, alimentando os tigres do seu santuário com esse picado (no seu site, Baskin mostra fotografias do único moedor de carne que diz possuir, pequeno e de cozinha).
No entanto, graças ao êxito de “Tiger King”, a polícia de Hillsborough, o condado da residência de Baskin, resolveu voltar a investigar o desaparecimento de Don Lewis.
Se o mais que duvidoso – e frequentemente repelente – comportamento ético de Exotic é convertido num arsenal de manias bizarras e tiques cómicos, sublimando-o como anti-herói camp, Baskin é exposta enquanto vilã pouco escrupulosa, num mimetismo da mecânica ficcional em registo de documentário que vai adulterando ou negligenciando parte crucial dos acontecimentos para efeitos dramáticos.
Se o mais que duvidoso – e frequentemente repelente – comportamento ético de Exotic é convertido num arsenal de manias bizarras e tiques cómicos, sublimando-o como anti-herói camp, Baskin é exposta enquanto vilã pouco escrupulosa, num mimetismo da mecânica ficcional em registo de documentário que vai adulterando ou negligenciando parte crucial dos acontecimentos para efeitos dramáticos:
– A larga maioria dos principais entrevistados no decurso da série documental não sabia qual era o verdadeiro – mas espectacular em termos de show televisivo – objectivo de “Tiger King”, reclamando nas últimas semanas junto dos media norte-americanos (em particular no talk-show “Lights Out With David Spade” e junto da TMX News) que os seus testemunhos serviram apenas a componente escandalosa e tabloide da história verídica narrada.
– Em entrevista ao “Light Outs With David Spade”, Rick Kirkham, ex-produtor do reality-show online de Exotic, e que viveu anos no C.W. Zoo, argumenta que a série é uma versão delicodoce do comportamento real de Joe Exotic – segundo ele, o proprietário do jardim zoológico não tem o menor apreço pelos animais; reclama tê-lo visto a matar com um revólver um tigre de que não gostava, bem como um cavalo de que, minutos antes, prometera à anterior proprietária cuidar. Porém, Kirkham garante que havia registos filmados desses eventos mas que se perderam num incêndio, impedindo a confirmação das alegações.
Em entrevista ao “Light Outs With David Spade”, Rick Kirkham, ex-produtor do reality-show online de Exotic, e que viveu anos no C.W. Zoo, argumenta que a série é uma versão delicodoce do comportamento real de Joe Exotic – segundo ele, o proprietário do jardim zoológico não tem o menor apreço pelos animais.
Mas Britanny Peet, uma alta funcionária da delegação norte-americana da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), que surge no primeiro e último episódios de “Tiger King”, relataria, já em Abril, à edição britânica da “Harper’s Bazaar” que há uma década, na primeira vez que conheceu Joe Exotic – e cujo tratamento dos animais combate desde então -, “ele disse-me saber que muitos dos parques para onde vende as crias dos seus tigres os matam ao fim de poucos meses, (por já não servirem para convívio com humanos); e que ‘Doc’ Antle incinera algumas das crias num crematório”.
– A série documental sugere também que Jeff Lowe terá roubado o C.W. Zoo a um Joe Exotic então em dificuldades; na realidade, Exotic não tinha mais condições para manter o zoológico aberto, atulhado que estava em acções judiciais e falido graças aos processos movidos a Carole Baskin; sem alternativas e aconselhado pelos advogados, Exotic acabou por encerrar o zoo, que Lowe reabriria com a mulher, Lauren. Exotic acabaria por tentar processar Lowe e o governo federal dos EUA em 94 milhões de dólares, acusando mesmo o U.S. Fish and Wildlife Service de ter contribuído para a morte da sua mãe.
Outros detalhes verídicos são exagerados ou ignorados para melhor potenciarem o efeito-choque da narrativa:
– John Finlay um dos amantes de Exotic, é sempre filmado sem dentes – apesar de o próprio ter confirmado que a dupla de realizadores registara muitas imagens dele após a colocação de uma prótese dentária, o que lhe retiraria alguma da aura provinciana -, tendo sido incentivado pelo director Eric Goode a passear-se de tronco nu (assim exibindo um visualmente apetecível catálogo de tatuagens) apesar de o fazer com frequência de t-shirt colocada durante as suas tarefas no G.W. Zoo;
Britanny Peet, uma alta funcionária da delegação norte-americana da PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), que surge no primeiro e último episódios de “Tiger King”, relataria, já em Abril, à edição britânica da “Harper’s Bazaar” que há uma década, na primeira vez que conheceu Joe Exotic – e cujo tratamento dos animais combate desde então -, “ele disse-me saber que muitos dos parques para onde vende as crias dos seus tigres os matam ao fim de poucos meses”.
– Há testemunhos recolhidos ‘on camera’, e vertidos para a montagem final da série, de homens e mulheres alcoolizados ou sob o efeito de drogas; a mãe de Travis, um dos companheiros de Joe Exotic que se mataria acidentalmente com uma caçadeira, é entrevistada em estado de embriaguez sobre a morte do filho, e um dos empregados do G.W. Zoo, sob o efeito de substâncias várias, desmaia a meio do seu depoimento;
– Kelci ‘Saff’ Saffery, um jovem transsexual, já veterano do Afeganistão, cuidador e ajudante no G.W. Zoo, que perde a mão e parte do antebraço, arrancados por um dos tigres de Exotic, ao distrair-se por momentos numa jaula, vê o seu género ser trocado para feminino pelos responsáveis da série;
– Em “Tiger King” vemos (hilariantes) excertos de videoclips de Joe Exotic interpretando temas supostamente da sua autoria; não só não é Exotic a cantá-los – trata-se de um playback de outro intérprete – como os temas não foram escritos nem compostos por ele; de acordo com o escritor e podcaster Robert Moore, as canções pertencem a um grupo intitulado The Clinton Johnson Band;
– “Tiger King” lança a ideia de que o ex-basquetebolista Shaquile O’Neal manteve um relacionamento de amizade com Joe Exotic; após a estreia da série, O’Neal apressou-se a desmentir, apesar de confirmar ter visitado várias vezes o CW Zoo (de acordo com a Fox Sports, o jogador teve dois tigres na sua quinta na Flórida);
Tanto Eric Goode como Rebecca Chaiklin confessaram entretanto ao “Los Angeles Times” que a série que construíram inicialmente, sobre os problemas da conservação, tráfico e maus-tratos de grandes felinos criados em cativeiro nos EUA – cujas características, note-se, os impedem de regressar a habitats naturais, onde depressa morreriam, facto que a série não explica com clareza -, foi transformando-se na feira de vaidades, assassinos contratados, suicídio, poligamia, abuso de drogas e violência que “Tiger King” também é. Ao mesmo jornal, ambos argumentam que o projecto lhes “escapou do controlo”.
Já há uma série ficcional em preparação sobre “Tiger King”, com a actriz de comédia Kate McKinnon, e o produtor/realizador Ryan Murphy (“Glee”, “American Horror Story”) planeia uma série biográfica sobre Joe Exotic com Rob Lowe como protagonista.