Em janeiro e fevereiro de 1971, David Bowie (nascido David Robert Jones a 8 de janeiro de 1947 e falecido a 10 de janeiro de 2016 de cancro do fígado, dois dias depois de completar 69 anos) fez uma digressão publicitária pelos Estados Unidos com o objetivo de promover o seu terceiro álbum de originais, “The Man Who Sold the World”, editado a 4 de novembro de 1970.
A digressão, apesar de entrevistas a publicações como a “Rolling Stone”, não teve grande impacto público, as vendas de “The Man Who Sold the World”, na Europa como nos EUA, foram escassas, e a estrela de Bowie só mudaria com o lançamento, a 16 de junho de 1972, do quinto LP do autor, “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars”, considerado como a génese do glam e um dos trabalhos mais importantes da história da pop rock.
Após interpretar um dos singles do álbum, “Starman”, no popular programa televisivo britânico “Top of the Pops”, a 5 de julho de 1972, Bowie tornou-se um grande êxito internacional e, progressivamente, um dos artistas incontornáveis da segunda metade do século XX.
Fazendo hoje parte dos registos musicais conservados para a posteridade pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, “The Rise and Fall of Ziggy Stardust” surge em todas as listas contemporâneas relevantes de Melhores Álbuns de Sempre (“Pitchfork”, “Q”, “Rolling Stone”, “NME”, “Time”).
De acordo com biografias publicadas sobre o cantor, testemunhos de época e os relatos do próprio Bowie, a semi fracassada digressão publicitária de janeiro/fevereiro de 1971 foi instrumental na génese da figura do mais célebre alter-ego do artista, a estrela de rock andrógina e alienígena Ziggy, aterrado na Terra para salvar o planeta do iminente apocalipse.
O filme
“Stardust – o Nascer de Uma Estrela” é uma versão ficcional, baseada em factos, da digressão de David Bowie (interpretado pelo ator e músico britânico Johnny Flynn) nos Estados Unidos em janeiro e fevereiro de 1971, com frequentes flashbacks ao início da idade adulta do cantor, ao relacionamento com a primeira mulher, Mary Angela ‘Angie’ Barnett, uma atriz e modelo norte-americana de origem cipriota (Jena Malone aos 34 anos) e aos primeiros capítulos da carreira – de 1962 a fins de 1971 -, culminando no concerto de apresentação em Londres de “The Rise and Fall of Ziggy Stardust”, a 10 de fevereiro de 1972.
Dirigida pelo inglês Gabriel Range, um antigo jornalista cujo ponto mais relevante no currículo de cineasta é o docudrama de 2006 “A Morte de Um Presidente”, baseado na hipótese do assassinato de George W. Bush, a longa-metragem foi escrita pelo diretor em parceria com Christopher Bell, na estreia deste no guionismo de ficção.
Rodado em Toronto e no estado canadiano de Ontário (que servem como cenários urbano e natural de vários destinos dos EUA), “Stardust – o Nascer de Uma Estrela” é uma produção conjunta da Salon Pictures e da Wildling Pictures, distribuída nos EUA pela IFC e no Reino Unido pela Vertigo Releasing.
Lançado nos Estados Unidos a 25 de novembro de 2020 após uma antestreia no Festival Internacional de San Diego – tanto a estreia como o lançamento em sala foram adiados por cerca de meio ano devido à pandemia de Covid-19 -, “Stardust – O Nascer de Uma Estrela” estreou nos cinemas portugueses a 1 de julho, com um registo oficioso de 47.300 euros nas bilheteiras internacionais para um orçamento estimado em 4,62 milhões de euros.
Os produtores do filme não conseguiram obter o direito de utilização das gravações de David Bowie junto dos herdeiros deste, nomeadamente de Duncan Jones, 50 anos, realizador de renome (“Moon”, “Código Base”) e único filho do cantor com Angie Barrett.
Os factos
Sendo “Stardust – O Nascer de Uma Estrela” um esforço louvável de lançar luz cinematográfica sobre o período menos conhecido e popularizado da vida e carreira de uma figura icónica com o impacto cultural de Bowie, a premissa da longa-metragem assenta numa base verídica: o embrião de um período historicamente relevante do carácter artístico de David Robert Jones rumo à persona camaleónica do criador e à origem dos primeiros traços da personagem Ziggy Stardust.
Porém, o filme sofre de fortes constrangimentos orçamentais (4,5 milhões de euros é um ultra baixo orçamento no panorama industrial anglo-saxónico, sobretudo para um projeto de época), da impossibilidade de recorrer aos sons e música de Bowie – imagine-se “Bohemian Rhapsody”, o biopic de 2018 de Freddy Mercury, sem a música dos Queen, ou “Rocket Man”, a biografia de 2019 de Elton John, sem recorrer às canções-âncora de Elton –, de liberdades criativas no limite da verosimilhança e, sobretudo, de um erro crítico na composição do protagonista (tudo apesar da honestidade do disclaimer que abre o genérico: “o que vai ver é (sobretudo) ficção.”
– Johnny Flynn, interpretando aos 36 anos o Bowie de 21-24 anos que atravessa o álbum de estreia, “Space Oddity”, “The Man Who Sold the World” e “Hunky Dory”, até ao início da explosão de “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders From Mars”, é apresentado como um comunicador hesitante, um músico diletante e um companheiro de viagem gaguejante, fragilizado pela ausência da fama, tão perseguida desde a adolescência, e à mercê das pressões quase edipianas da companheira – e mulher entre 1970 e 1980 – Angie Barrett, encenada como uma Agripina de sede insaciável.
No momento em que surge a oportunidade da digressão, Bowie era já um autor culto de forte personalidade e bagagem musical, que sabia boa parte do que queria desde o primeiro concerto profissional aos 15 anos, não o titubeado artista sem um rasgo de génio em pautas, palavras ou atos que a longa-metragem nos descreve – o tempo de ação acontece, por exemplo, 18 meses depois do lançamento da primeira obra-prima, “Space Oddity”. “Stardust – O Nascimento de Uma Estrela” consegue assim a proeza épica de transformar uma personalidade (mesmo em período final de maturação) que foi, é e será a quintessência do cool num rapaz frustrado e enfadonho.
– O biopic é convertido num buddy movie na estrada, ao longo de várias paragens promocionais pela geografia física e emocional da América, em parte profunda, em parte cosmopolita, sublimando o relacionamento entre Bowie e o agente da Mercury Records Ron Oberman (o comediante Marc Maron, interpretando aos 56 anos uma personagem de 27), que o teria acompanhado num costa a costa de entrevistas, micro-concertos e confrontos anti- climáticos com a fama made in USA (Lou Reed, Andy Warhol).
Na verdade, Oberman serviu de cicerone a Bowie em parte dessa digressão nos inícios de 1971, mas a travessia do país na carrinha da família do agente (incluindo refeições caseiras com o clã Oberman e muitos silêncios juvenis nas traseiras da station wagon) é quase integralmente ficcionada. No percurso de janeiro/fevereiro daquele ano, Bowie viajou com conforto de avião entre as várias escalas programadas, todas elas grandes cidades dos EUA, encontrando-se com Oberman algumas vezes.
Mais: nunca existiram as desastrosas performances em palco que o filme engendra para justificar o arco dramático, algo simplista, do “aspirante-com-talento-em-busca-de-identidade para a mega-estrela-rock’n-roll-que-conquistará-o-mundo”.
– Por outro lado, há um peso seminal – através da pontuação por flashbacks e recorrendo-se mesmo a aparições fantasmagóricas – do trauma familiar, eivado de mensagens psicanalíticas, como fonte criativa da génese de Ziggy Stardust. Ora, se Terry Burns, o meio-irmão materno de Bowie, dez anos mais velho, foi uma figura patriarcal e uma enorme influência na curiosidade, gosto e introspecção do artista (Terry apresentou a Bowie livros sobre o oculto, a essência do budismo e os sons do free jazz, compelindo-o a seguir os seus sonhos), o facto de sofrer de esquizofrenia e ter sido internado boa parte da vida em Cane Hill, um hospital psiquiátrico, ganha aqui, segundo as fontes disponíveis, um valor exagerado como raiz da loucura, estranheza e paranoia enquanto temas recorrentes na obra de Bowie e no nascimento de Ziggy. (na família alargada do cantor, houve vários casos de desordens psiquiátricas sérias, e mesmo uma tia submetida à célebre – e infame – cirurgia nobelizada de Egas Moniz, a lobotomia).
O amor intenso entre os meios-irmãos é real e inspirador, e a doença de Terry um peso no crescimento de Bowie/Jones – Cane Hill surge no design da capa da edição norte-americana de “The Man Who Sold the World”, e um dos temas do álbum, “All the Madmen”, é uma homenagem a Terry. Mas tanto o próprio Bowie como as principais biografias do artista destacam antes o papel crítico da música e personalidade de Iggy Pop, das idiossincrasias de Lou Reed, do nome artístico de Norman Carl Odham, o “Legendary Stardust Cowboy”, um dos criadores norte-americanos do psychobilly, e da vida e carreira de um rocker britânico com sucesso sobretudo na França dos anos 60, Vince Taylor, cujos problemas mentais o levaram a assumir-se como um deus oriundo de outro planeta (tudo acrescido dos devaneios operáticos de Marc Bolan e dos seus T. Rex) na concepção do rocker bissexual extraterrestre, salvífico e semidivino, Ziggy Stardust.
Ao longo dos anos, Bowie destacaria também as influências dos filmes “Laranja Mecânica” e “2001, Uma Odisseia no Espaço” de Stanley Kubrick (a cena de abertura de “Stardust” glosa a “sequência psicadélica” de “2001”), bem como da obra de William S. Burroughs ou do teatro kabuki, no desenvolvimento de Ziggy.
– Ao contrário do que a longa-metragem sugere, a digressão publicitária de 1971 serviu tanto para começar a criar “The Rise and Fall of Ziggy Stardust” como para imaginar o álbum imediatamente anterior, “Hunky Dory”, com as suas referências a Nova Iorque e ao ocultismo.
– Quanto à sexualidade livre e múltipla de Bowie (embora o próprio se tenha assumido repetidas vezes como “essencialmente hétero”), ela é apenas sugerida no filme, entre os insultos de um funcionário da alfândega à chegada ao aeroporto e os convites de Angie para um ménage à trois; ao mesmo tempo, figuras importantes na formatação criativa, como Lou Reed ou Andy Warhol, surgem referidas mas não ilustradas – o primeiro acabara no filme de ser substituído por outro vocalista nos Velvet Underground; já da visita de Bowie à Factory só assistimos ao epílogo (de novo carregado de frustração), sem Warhol à vista.
– Substituindo os temas portentosos do Bowie pré thin white duke, a longa-metragem recorre a covers de Scott Walker, dos Yardbirds ou de Jacques Brel (que o Bowie verídico interpretou nesse primeiro ciclo artístico) e mesmo a um original do próprio Johnny Flynn, afastando-nos ainda mais do talento e brilho do inventor da plastic soul e dos motivos que originaram um culto que perdurará.