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CINE-CHECK: “Os Sete de Chicago”

Este artigo tem mais de um ano
Dirigido pelo argumentista Aaron Sorkin, o filme recria o julgamento de um grupo de ativistas que se opunha ao envolvimento norte-americano na Guerra do Vietname, expondo um ponto de vista quase sempre a favor dos manifestantes.

O FACTO:

Durante a convenção de 1968 do Partido Democrata dos EUA, realizada em Chicago entre 26 e 29 Agosto, cujo objectivo principal era a escolha do candidato do partido às eleições presidenciais de Novembro seguinte, vários comícios e marchas tiveram lugar em locais próximos do International Amphitheatre da cidade, onde o congresso decorreu, como forma de protesto à permanência de tropas norte-americanas no Vietname (e ao presidente Lyndon B. Johnson pela sua decisão de as reforçar) bem como à forte probabilidade de os democratas escolherem Hubert Humphrey para opositor do republicano Richard Nixon no acto eleitoral. Os grupos e associações que organizaram os ajuntamentos populares criticavam Humphrey por este não se opor de forma determinada à Guerra do Vietname.

Os manifestantes anti-guerra procuraram obter licenças para acampar nos jardins de Lincoln Park e para marchar desde um raio de oito quilómetros em redor do anfiteatro até às portas deste, mas a câmara de Chicago negou essa autorização, exceptuando uma licença para um único comício diurno na ponta sul de Grant Park. Entre os líderes e participantes nesse comício estavam Abbie Hoffman (reconhecido activista, fundador do Youth International Party), Tom Hayden, Jerry Rubin, David Dellinger, Lee Weiner, Rennie Davis e John Froines, que seriam eternizados como os Sete de Chicago.

os sete de Chicago

A 28 de Agosto de 1968, cerca de 15 mil manifestantes participaram no comício. No final, alguns milhares decidiram marchar até ao International Amphitheatre, sendo barrados pela polícia junto ao hotel Conrad Hilton, onde os candidatos presidenciais e suas campanhas se hospedavam. Após tentar que os activistas dessem meia-volta, a polícia acabou por se envolver em confrontos com a multidão, recorrendo a gás lacrimogénio e ao uso de bastões, e prendendo dezenas de manifestantes.

No decurso dos cinco dias seguintes, o confronto nas ruas manteve-se, resultando em centenas de feridos entre manifestantes, agentes das forças de segurança e jornalistas.

A 9 de Setembro de 1968 seria constituído um Grande Júri para apurar eventuais responsabilidades criminais nos acontecimentos de fins de Agosto. Ao fim de meio ano e de trinta reuniões – com Ramsey Clark, o Procurador Geral cessante de Lyndon Johnson, a opor-se a uma acusação, defendendo que o choque nas ruas fora sobretudo provocado pela incapacidade de a polícia de Chicago lidar com os protestos, e o novo Procurador Geral, John Mitchell, nomeado por Richard Nixon, presidente recém-empossado, a apoiar um processo criminal -, a 20 de Março de 1969 foram acusados oito manifestantes de vários crimes federais e oito agentes da polícia por violações de direitos civis.

Os Sete de Chicago foram originalmente, os Oito de Chicago: os sete acima citados mais Bobby Seale, líder dos Panteras Negras, polémico movimento de combate pelos direitos da minoria afro-americana nos EUA, que estivera em Chicago nas vésperas do confronto com a polícia para fazer um discurso a um grupo de activistas contra o Vietname – Seale acabaria por ser removido do processo, e as acusações contra si abandonadas.

os sete de chicago

A principal acusação que pendeu sobre o grupo foi a de passagem de fronteiras estaduais com o objectivo de incitamento a motim (uma lei fabricada anos antes para impedir grande circulação de cidadãos negros entre estados), além de actos cometidos contra agentes de autoridade e de ordens a terceiros para fabrico de engenhos incendiários (como cocktails Molotov).   

A 18 de Fevereiro de 1970, os sete foram absolvidos de conspiração, mas cinco deles (exceptuando Froines e Weiner) seriam condenados por incitamento a motim. Cumpririam parte das suas penas de prisão, acabando por ser ilibados a 21 de Novembro de 1972 após recurso ao tribunal federal de apelo do Illinois, por se provar o preconceito cultural e racial do juiz Julius Hoffman, que presidira ao julgamento, e devido a acções irregulares de vigilância pelo FBI dos escritórios dos advogados de defesa dos arguidos.

O FILME:

Dirigido pelo argumentista Aaron Sorkin (“Steve Jobs, “A Rede Social”), na que é apenas a sua segunda longa-metragem como realizador após “Molly’s Game” em 2017, “The Trial of the Chicago 7” (“Os Sete de Chicago”, em português) concentra acção e intriga no julgamento dos Sete de Chicago – mais Bobby Seale de início, como na realidade aconteceu -, expondo um ponto de vista quase sempre a favor dos manifestantes, através de uma estrutura de flashbacks que ilustram e/ou comentam os eventos em tribunal.

Produzido pela Dreamworks e a Amblin Partners (ambas de ligação umbilical a Steven Spielberg) para distribuição global da plataforma Netflix (que financia o filme), onde estreou a 25 de Setembro último, “The Trial of the Chicago 7” teve um orçamento de 29,7 milhões de euros e reflecte a visão liberal e progressista habitualmente associada ao seu criador, cristalina nas suas melhores obras, da Casa Branca de Josiah Bartlet (Martin Sheen) em “The West Wing” (1999-2006) e da redacção do canal televisivo de notícias com estratosférica deontologia em “The Newsroom” (2012-2014) aos comentários implícitos, sobre os perigos dos interesses corporativos e da manipulação tecnológica, no seu argumento para “A Rede Social” (2010) de David Fincher.

os sete de Chicago

Nessa indisfarçável simpatia pela luta e pelos valores dos protestos, sobretudo partindo de jovens, contra o envolvimento norte-americano na Guerra do Vietname (a média de idades dos civis recrutados era de 19 anos) ao longo da maior parte da década de 60, Sorkin é muito fiel à veracidade das audições em tribunal – guião e filme recorrem com frequência às transcrições verídicas do processo, depois sublimadas pelo ritmo e pela emoção retórica típica dos diálogos do autor – mas afasta-se dos factos em vários detalhes essenciais.

Além das liberdades, naturais e necessárias, da compressão dramática de cinco meses de julgamento em 130 minutos (às quais acrescem numerosas cenas dos acontecimentos nas ruas e parques de Chicago que a ele levaram), Sorkin isenta-se de mencionar que os activistas e manifestantes quebraram a lei repetidas vezes – apesar de repetidos apelos da polícia local e de Richard Daley, então presidente da câmara da cidade, para que não o fizessem – tentando marchar por várias ocasiões até ao International Amphitheatre.

Ao contrário do que o filme encena, não havia um forte cordão policial no topo da colina do Grant Park à espera da chegada dos manifestantes, lançando-se sobre estes em carga furibunda. Os activistas decidiram invadir a colina no topo sul do Grant Park, ocupando a estátua de John Logan (um general unionista que lutou na Guerra EUA-México de 1948-48); a polícia chegou depois para dispersar – com violência – os manifestantes.

O confronto de 28 de Agosto de 1968 foi desigual – segundo a comissão que investigou o sucedido e os relatos de vários jornalistas de época e de documentários posteriores -,  logo inaceitável, como quase todos os embates entre forças policiais e manifestantes civis. Muitos agentes da polícia de Chicago, pouco experientes em confrontos desta escala, entraram em pânico, e houve numerosas agressões indiscriminadas, incluindo a repórteres. Porém, as culpas exactas pelo que aconteceu, ao contrário do que “The Trial of the Chicago 7” sugere mas as mesmas fontes confirmam, deveria ser repartida: apesar de o filme não mostrar um único polícia ferido, registaram-se 192 agentes com ferimentos de variada gravidade; alguns dos documentários mostram as imagens de activistas a atirar tijolos, garrafas, pedras, sacos de urina e fezes, a insultar e a lutar fisicamente com os agentes e a lançar-lhes bolas de golfe com pregos, além de uma chuva de cinzeiros partidos; também houve destruição de lojas.

Os sete de Chicago

No incidente com a bandeira americana, que um activista quer substituir por uma t-shirt vermelha, o manifestante foi de facto agredido por um polícia com um bastão mas, enquanto os agentes tentavam repor a bandeira no seu mastro, Jerry Rubin gritou à multidão “Matem os porcos! Matem os polícias!” (também não está no filme).

Ao contrário do que o filme tenta destacar desde as primeiras cenas, o advogado de acusação do Ministério Público contra os Sete de Chicago, Richard Schultz (interpretado por Joseph Gordon-Levitt) não era  um simpatizante da causa de Abbie Hoffman, Tom Hayden e companhia. Pelo contrário: jovem e com pouca experiência como litigante, estava desejoso de cumprir as ordens do seu chefe, Thomas Foran.

Joseph Gordon-Levitt

Também para efeitos de progressão dramática e peso acrescido na caracterização do conflito – no que Sorkin é igualmente mestre – coloca-se Tom Hayden (que se tornaria um senador carismático e activista de renome pelos direitos humanos ao lado da futura mulher, a actriz Jane Fonda) a ler em tribunal os nomes de todos os soldados caídos em batalha no Vietname quando, na realidade, foi Dave Dellinger que o fez, sendo depressa interrompido pelo juiz Hoffman; no mesmo sentido, a tese do filme quanto à construção do caso contra os sete de Chicago como manobra de retaliação da entourage judicial de Nixon face ao ministério público da anterior administração nunca foi confirmada pelos factos; assim, o testemunho arrasador do anterior Procurador Geral, Ramsey Clark, no clímax do filme, jamais aconteceu, apesar de o seu depoimento em tribunal ter beneficiado os Sete de Chicago.

Bobby Seale, o líder dos Panteras Negras, foi de facto algemado e amordaçado durante três dias em pleno tribunal por ordem do inefável juiz Hoffman – no que é um dos momentos mais arrepiantes na história da figuração cinematográfica da luta pelos direitos civis em salas de audiência -, mas não esteve apenas cinco horas na cidade, como insistentemente reclama o próprio no filme; Seale passou dois dias em Chicago e fez um discurso no Lincoln Park onde incitou à violência contra a polícia, proclamando “se um porco se aproximar de vocês com um bastão para ver se estão armados…se puxarem da pistola e o balearem, vou dar-vos uma pancadinha nos ombros e dizer: continua a disparar'”. Também ao contrário do que o filme indica, não existem provas de que Seale fosse incluído no processo dos Chicago 7 para conferir um peso racial ao julgamento.

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