De acordo com o Antigo Testamento, no século XIII A.C. o profeta Moisés liberta o povo hebreu da escravidão no Antigo Egipto, guiando-o pelo deserto rumo à Terra Prometida, Canaã, e recebendo as tábuas do Deus de Abraão – onde estariam inscritos os Dez Mandamentos – no alto do Monte Sinai, actual Israel .
No filme “Os Dez Mandamentos”, dirigido em 1956 por Cecil B. De Mille (“As Cruzadas”, “O Maior Espectáculo do Mundo”), é o mais célebre dos filmes históricos, a par de “E Tudo O Vento Levou”, produzidos durante o período clássico de Hollywood. Com as icónicas – e cabotinas – interpretações de Charlton Heston como Moisés, o libertador do povo hebreu em 1250 A.C., e Yul Brynner como Ramsés, o faraó que subjuga esse povo, foi o maior sucesso mundial de bilheteira nos anos 50 (à época, 196,3 milhões de dólares para um orçamento de 13,2 milhões), mantendo-se, após os ajustes à inflação, como o 7º filme mais lucrativo da História do cinema. Presença inevitável nas listas dos melhores épicos de sempre bem como nas grelhas televisivas do Natal ou da Páscoa, qual é a sua fidelidade à Bíblia hebraica e às fontes históricas?
A maioria dos elementos biográficos da vida pessoal de Moisés estão errados ou incorrectos no filme. De Mille e os guionistas são especialmente “criativos” quanto à vida amorosa do profeta:
- “Os Dez Mandamentos” introduz puras ficções, como uma história de amor entre Moisés (Charlton Heston) e Nefretiri (a futura mulher de Ramsés II, interpretados respectivamente por Anne Baxter e Yul Brynner) e a rivalidade entre o futuro profeta e o jovem Ramsés, além da invenção da personagem de Lilia (Debra Paget), interesse amoroso de Josué, futuro líder de Israel (John Derek).
- No filme, Moisés cresce sem conhecer a identidade da sua família ou o facto de ser judeu. No relato dos cinco livros de Moisés (a Torá), o profeta, apesar de ser retirado do Nilo por Bithiah e de crescer no palácio do faraó, manteve sempre relações com a família judia de nascimento.
- Também há nomes incorrectos: no épico cinematográfico, o nome da mãe biológica de Moisés é Yoshebe; mas, de acordo com Êxodo 6:20, o seu verdadeiro nome era Joquebede.
- Mais tarde, nunca foi dada a Moisés a opção de escolher como esposa uma das sete filhas de Midiã. Segundo Êxodo 2:21, Midiã “…ofereceu a sua filha Séfora a Moisés“.

Há pelo menos três imprecisões geográficas e cronológicas em “Os Dez Mandamentos”:
- Quando Ramsés ordena o exílio de Moisés para o deserto, está em frente às pirâmides de Sacará, com o Nilo ao fundo. Isso significaria enviar Moisés para oeste – o deserto do Saara – e não para este, ao longo do Sinai, como é descrito na Bíblia.
- Após Ramsés anunciar a Moisés que os escravos judeus são livres de partir, estes alinham-se ao longo do que o narrador descreve como “a avenida das esfinges”. Essa avenida ainda existe em Luxor, perto do local original onde foi erigida, Tebas, mas a perto de 500 quilómetros do Cairo, onde é apresentada no filme.
- Vários egiptólogos e especialistas em história da Bíblia sugerem que o faraó responsável pela fuga dos judeus do Egipto foi, não Ramsés II, mas Tutmés III, cerca de 200 anos antes.
Os episódios cruciais da progressão de Moisés como líder do povo judaico, dos primeiros sinais de revolta aos anos do Êxodo (a fuga do Egipto e a viagem dos judeus pelo deserto até Canaã) são reproduzidos, embora com detalhes imprecisos:
- O filme mostra, com recurso a efeitos especiais notáveis à época, as pragas do Egipto, baseadas nos relatos bíblicos (embora só encene quatro das sete, por incapacidade técnica, falta de tempo de rodagem ou falhas na reprodução, caso da praga dos sapos, que foi filmada por De Mille mas retirada da montagem final por os resultados se considerarem “ridículos e possível alvo de chacota”).
- Assistimos a uma reprodução, bastante fiel às fontes, da separação das águas do Mar Vermelho para a passagem dos judeus (se bem que com uma contração do tempo por motivos dramáticos: de acordo com Êxodo 14:21, um vento forte de oeste demorou toda a noite a separar as águas do Nilo, e não de forma instantânea como no filme).
- Ramsés diz ao pai, o faraó Seti I, que Moisés concedeu aos escravos judeus um dia em sete para descansarem, a que chama “o Dia de Moisés”. Segundo o Midrash Rabá, Moisés persuadiu de facto o faraó a dar aos judeus um dia de repouso semanal, após fazer notar ao monarca que os cavalos deste também tinham tempo para descansar.

Ao contrário do que o filme mostra, Moisés era o oposto de um grande orador:
- No épico hollywoodiano, Moisés surge como uma figura de grande eloquência verbal, autor de discursos inspiradores, capazes de arrastar multidões. Como é descrito em Êxodo 4:10, Moisés era tudo menos eloquente, com a Torá a mencionar que o profeta tinha um defeito de fala, ao ponto de transmitir sempre as suas mensagens ao povo através do irmão, Aarão.
Algumas curiosidades:
- A rainha do Egipto chama-se Nefertiri no filme, quando o verdadeiro nome deveria ser Nefertari, a mulher real do faraó Ramsés II. Cecil B. De Mille queria chamar Nefertiti à rainha egípcia do filme, desprezando a verdade histórica (Nefertiti foi esposa, não de Ramsés II, mas de Amenófis IV, também conhecido como Aquenáton), mas só não o fez por motivos mais prosaicos: temeu que o nome fosse objecto de gozo – “titi” fazia lembrar “tities”, calão para “maminhas”.
- Para não ferir as susceptibilidades do público de 1956 (De Mille era um conhecido conservador), a longa-metragem omite o facto de, segundo a tradição faraónica, Nefertiri e Ramsés serem casados mas irmãos de sangue.
- Embora o vestido que veste tenha sido desenhado para os ocultar, conseguimos ver os sapatos altos de Debra Paget numa das primeiras cenas.
- Na cena em que Nefertiri interpreta uma canção para Ramsés e o filho, o laço superior do seu soutien é visível, pormenor desagradável para a verosimilhança de uma intriga no século XIII A.C. .
Por causa do acumular de todas estas imprecisões, o filme, na sua componente de rigor histórico, merece a avaliação de…