O filme: Jeanne (a francesa Maria Schneider aos 19 anos), jovem atriz parisiense, conhece de maneira fortuita Paul (o norte-americano Marlon Brando aos 48), um expatriado cuja mulher cometeu suicídio, enquanto ambos visitam o mesmo apartamento para possível aluguer. Flirtam e fazem amor, logo iniciando uma relação sexual que será marcada pelo anonimato: ele não sabe o nome dela e pede-lhe para que não lho revele, recusando-se a dizer o seu; ambos decidem manter as suas vidas anteriores fora do relacionamento, ocupando juntos o decrépito andar. Mas Paul continuará a combater os fantasmas interiores da morte da mulher enquanto Jeanne está prestes a casar com Tom (Jean-Pierre Léaud), um realizador que filma um docudrama baseado na noiva.
Dirigido em 1972 pelo italiano Bernardo Bertolucci (1941-2018), então com apenas 31 anos mas já consagrado internacionalmente graças a obras como “Antes da Revolução”, “A Estratégia da Aranha” e, sobretudo, “O Conformista”, “O Último Tango em Paris” é um drama erótico historicamente fundamental e ainda hoje polémico, numa coprodução franco-italiana de Alberto Grimaldi (“O Bom, o Mau e o Vilão”, “1900”, “Casanova de Fellini”, “Gangues de Nova Iorque”).
Com uma primeira sessão de antestreia no Festival de Cinema de Nova Iorque (há relatos de filas de centenas de pessoas à procura de bilhete, tal a expectativa que o filme criara), o percurso comercial em sala da longa-metragem iniciou-se a 15 de dezembro de 1972, em França.
Como o filme fora proibido pela censura portuguesa, a estreia nacional deu-se apenas a 30 de abril de 1974, uns meros cinco dias após a Revolução dos Cravos, tal era a sede de novidades cinematográficas, sobretudo as aureoladas pelo escândalo. Nos dois anos anteriores, muitos curiosos tinham aproveitado viagens a Paris para assistir à obra, com numerosos cinéfilos fazendo a deslocação deliberadamente para ver “O Último Tango em Paris”.
Em Itália, os problemas agravaram-se: pouco depois da estreia do filme, um processo-crime foi movido pelo Ministério Público contra a sua exibição, por “pansexualismo” (sic) “gratuito e agravado”. Na sentença judicial final sobre o processo, a 29 de janeiro de 1976, ordenou-se a captura pela comissão de censura transalpina das cópias disponíveis no país bem como a destruição dessas cópias – o guionista Franco Arcalli, Bertolucci e o produtor Alberto Grimaldi receberiam dois meses de penas de prisão suspensas.
De resto, a história da exibição do filme de Bertolucci corre em paralelo com as ditaduras nacionalistas e os tumultos revolucionários de cada país: em Espanha, devido à censura franquista, apenas estrearia a 23 de dezembro de 1977, em Madrid; no Brasil, a ditadura levou ao adiamento das exibições locais da obra até 26 de Novembro de 1979. Períodos políticos de tonalidade conservadora e puritana eram à época particularmente significativos na América do Sul e na Ásia, forçando o adiamento da circulação comercial da longa-metragem em muitos territórios durante largos anos, casos do Uruguai (estreará apenas em 1984), Chile e Turquia (1992) ou Coreia do Sul (dezembro de 1996, 24 anos depois da antestreia nova-iorquina).
Em Itália, os problemas agravaram-se: pouco depois da estreia do filme, um processo-crime foi movido pelo Ministério Público contra a sua exibição, por “pansexualismo” (sic) “gratuito e agravado”. Na sentença judicial final sobre o processo, a 29 de janeiro de 1976, ordenou-se a captura pela comissão de censura transalpina das cópias disponíveis no país bem como a destruição dessas cópias – o guionista Franco Arcalli, Bertolucci e o produtor Alberto Grimaldi receberiam dois meses de penas de prisão suspensas.
Com um orçamento estimado em 1,14 milhões de euros, o filme atingiu os 32,95 milhões de dólares de receitas na sua temporada inicial de exibição nos Estados Unidos (seria o 7º filme com maiores proventos no país em 1973), alcançando os 87,8 milhões de euros de bilheteira quando terminou o seu percurso internacional.
O facto: Escrito por Bertolucci e pelo argumentista Franco Arcalli (“1900” e “La Luna”, ambos também dirigidos por Bertolucci, ou “Era Uma Vez na América” de Sergio Leone) a partir de uma ideia desenvolvida com os actores Jean-Louis Trintigant – protagonista de “O Conformista”, o maior êxito de Bertolucci até então – e Dominique Sanda (primeira escolha para interpretar Jeanne, papel a que renunciaria quando engravidou, abrindo caminho para a desconhecida Maria Schneider), “O Último Tango em Paris” navega entre os anseios fantasiosos e a nudez autobiográfica dos seus criadores (sobretudo Bertolucci, mas também Marlon Brando). Em entrevistas à data de estreia e posteriores, o realizador assumiria que a longa-metragem teve origem nas suas fantasias sexuais, em particular uma rêverie onde conhecia na rua uma bela mulher sem nome e fazia amor com ela sem chegar a saber quem era.
Com direção de fotografia do italiano Vittorio Storaro, um dos maiores da história do cinema (“O Conformista”, “Apocalipse Now”, “Reds”, “O Último Imperador”), cuja estética se baseia em parte na carnalidade decadentista, à beira da doença, e nos tons ora quentes, ora soturnos das telas do pintor britânico Francis Bacon (quadros do artista pontuam os genéricos de abertura e final), o filme viu-se envolto em controvérsia logo após a ante-estreia em Nova Iorque.
O sulfuroso relacionamento de Paul com Jeanne baseia-se quase exclusivamente no sexo: falado, brincado, infantil, agressivo e explícito (embora simulado – não há sexo real, ou pornografia no sentido técnico do termo, em “O Último Tango em Paris”). Os incidentes e detalhes da relação erótica entre os protagonistas inclui nudez frontal de Jeanne/Maria Schneider – mas não de Brando, por assumido pudor de Bertolucci em desvelar por inteiro o corpo daquele que é, para todos os efeitos, o seu alter-ego -, a masturbação de Jeanne em frente a Paul ou a inserção de dois dedos de Jeanne no ânus de Paul (é este que lho pede, para ela “chegar ao rabo da morte e encontrar o útero do medo”).
Mas a sequência crucial, no envolvimento da ficção, na dinâmica entre atores e nas repercussões públicas, é a cena em que Paul viola analmente Jeanne, recorrendo a manteiga para lubrificar a penetração enquanto ela grita “Não!” por três vezes – ele limita-se a ordenar-lhe que repita frases contra a decadência da burguesia.
Embora, de acordo com Bertolucci, a cena estivesse no guião, o decisivo pormenor do uso da manteiga e a violência física e psicológica do momento foram decididos e combinados no próprio dia de rodagem por Bertolucci e Brando sem o conhecimento prévio de Maria Schneider.
Numa entrevista em 2006 ao diário australiano “Sidney Morning Herald”, Schneider negou que a violação estivesse no guião, muito menos com recurso a produtos pasteurizados: “O Marlon teve a ideia. Quando me disseram, rebentei de fúria”. Um ano depois, em nova entrevista, desta vez ao britânico “Daily Mail”, Schneider reiterou a sua revolta e impotência: “Era muito jovem. Fiz a cena e chorei lágrimas reais. Senti-me humilhada e, para ser honesta, um pouco violada, pelo Bertolucci e pelo Brando”. Embora o relacionamento com Brando voltasse mais tarde a ser amigável, Maria Schneider, após terminar o filme, recusar-se-ia sempre a falar de novo com Bertolucci.
Embora, de acordo com Bertolucci, a cena estivesse no guião, o decisivo pormenor do uso da manteiga e a violência física e psicológica do momento foram decididos e combinados no próprio dia de rodagem por Bertolucci e Brando sem o conhecimento prévio de Maria Schneider.
Já Brando desabafou ter-se também sentido violado durante a rodagem de “O Último Tango em Paris”, pela forma como Bertolucci o persuadiu a entregar-se a uma sobre-exposição íntima, com enorme desgaste emocional – uma grande dose dos monólogos de Paul, recordando a esposa morta, inspiram-se diretamente nas memórias de Brando da sua própria mãe.
Porém, enquanto Maria Schneider era, à época, uma miúda de 19 anos com escassa experiência de plateau, saída aos 15 de casa da mãe, uma modelo romena, e abandonada pelo pai, o actor francês Daniel Gelin, vivendo entre quartos de amigos e a rua, Marlon Brando, aos 48 anos, tornara-se há muito o mais importante ator da sua geração, sendo uma super-estrela em 1973 graças a um celebradíssimo regresso com “O Padrinho”, após anos de ziguezagues artísticos e comerciais.
Apesar dos primeiros desabafos, Brando escreveria mais tarde na sua autobiografia, “Canções Que a Minha Mãe Me Ensinou”, que Bertolucci fora um dos três melhores realizadores com quem trabalhara ao longo da carreira. Quanto às cenas de sexo, Bertolucci nunca lhe pediu o grau de nudez física que exigiria a Schneider, perguntando-lhe apenas se estaria disposto a um plano de nudez frontal, o que Brando recusou – de novo segundo a autobiografia do ator – “porque o meu pénis no plateau encolheu para o tamanho de um amendoim”.
Já Bertolucci, numa das ações promocionais do filme logo em 1973, revelara uma memória diferente do episódio, confessando ter mesmo filmado os genitais de Brando: “Mas identificara-me tanto com a personagem do Brando que cortei a cena por ter vergonha de mim próprio; mostrá-lo nu era como mostrar-me nu”.
Em Fevereiro de 2013, numa entrevista ao programa de televisão holandês “College Tour”, Bertolucci confirmaria que a célebre cena da violação anal “não foi consensual“, insistindo no entanto que a agressão já constava do guião, embora sem o ‘detalhe’ crítico da manteiga: “Sinto-me culpado, mas não lamento o que fiz”.
Em Setembro do mesmo ano, numa retrospectiva da sua obra na Cinemateca francesa, Bertolucci iria mais longe: ele e Brando tinham “decidido nada dizer à Maria” sobre a famosa manteiga “para obter dela uma resposta mais realista; procurei a reação dela como mulher, não como atriz”. Num período de grandes transformações nos comportamentos sexuais – e na percepção pública e privada desses comportamentos -, Bertolucci tomou grandes riscos artísticos na abordagem figurativa da sexualidade, mas o seu arrojo parece ter feito uma vítima: Schneider.
O filme estrearia em vários países extirpado de partes da icónica “cena da manteiga”, num corte que variaria, consoante os territórios, entre 10 segundos e dois minutos. A partir de 1978, com a popularidade do aluguer e venda de videogramas, foram editadas cassetes VHS tanto com a versão censurada como com a versão integral, esta porém classificada com um “X Rated”, vulgarmente aplicado aos filmes pornográficos.
Existe, de acordo com várias fontes, uma versão de quatro horas de “O Último Tango em Paris”. Nunca estreada comercialmente, foi quatro vezes visionada pelo compositor da longa-metragem, Gato Barbieri, em Agosto de 1971, para este decidir que sequências mereceriam música na banda-sonora.
Desde as confissões públicas de Maria Schneider sobre o caso em 2006 e, sobretudo, à luz da transformação sociocultural propulsionada a partir de 2017 pelo movimento #MeToo, a percepção ética e artística da longa-metragem alterou-se. Como escreveu o respeitado crítico norte-americano Richard Brody na “The New Yorker” de 30 de novembro de 2018, “durante algum tempo, o filme trouxe aclamação a Bertolucci; à luz da História, trouxe-lhe, com justiça, infâmia“.
Quando a obra estreou em 1972, uma das suas mais acérrimas defensoras, a hoje lendária crítica Pauline Kael, comparou a importância – inovadora para muitos, revolucionária para alguns – do filme de Bertolucci à “Sagração da Primavera” de Stravinski, cuja encenação inaugural parisiense, em 1913, culminara em motins.
Maria Schneider morreu na relativa obscuridade a 3 de fevereiro de 2011, em Paris. Tinha 58 anos.