Os factos:
Em 1949, na localidade de Silver Spring, arredores de Georgetown, no Maryland, EUA, um rapaz de 14 anos que ficaria conhecido pelo pseudónimo de “Roland Doe” começou a sofrer de perturbações físicas e psicológicas inexplicáveis: os tremores de que padecia eram de tal forma poderosos que faziam a sua cama abanar, e marcas estranhas começaram a aparecer-lhe na pele.
Depois de vários dias de análises, os médicos do hospital da universidade de Georgetown que observaram Roland declararam-no saudável. As crises continuaram e os pais de Roland, de educação luterana, foram aconselhados a consultar o padre da paróquia. Este sugeriu-lhes recorrerem à Igreja Católica, que acabaria por aprovar um exorcismo a “Roland Doe” após averiguar as características de uma possível possessão demoníaca.
Já em Saint Louis, no Missouri, onde os pais de Roland tinham parentes, o ritual de exorcismo foi levado a cabo pelo reverendo William S. Bowdern, coordenando uma equipa de nove padres jesuítas. Ao fim de várias semanas, a intervenção foi declarada um sucesso.
A família da vítima da alegada possessão converteu-se à fé católica, e “Roland Doe” acabaria por tornar-se funcionário público, casar, ter filhos e levar uma vida sem sobressaltos de maior.
O filme:
Enquanto aluno da mesma universidade de Georgetown no final dos anos 40 (após estudar num colégio de jesuítas), o aspirante a escritor William Peter Blatty leu uma reportagem do “Washington Post” sobre o caso de “Roland Doe”. A presumível possessão do rapaz levaria Blatty a escrever em Washington D.C., anos mais tarde, “O Exorcista”, uma novela sobre uma miúda de 12 anos, Regan, também residente de Georgetown, que é possuída por um demónio poderoso, Pazuzu.
O livro, publicado em 1971, transformou-se num enorme “best-seller”, mantendo-se no topo da lista de livros mais vendidos do “New York Times” durante 17 semanas, só dela saindo ao fim de 57 semanas após vender 13 milhões de exemplares (seria traduzido nesse ano para 12 línguas).
A 26 de Dezembro de 1973, aproveitando as férias natalícias, estrearia nos EUA a adaptação cinematográfica de “O Exorcista”. Realizado por William Friedkin (director de “os Incorruptíveis Contra a Droga”, vencedor dos Óscares de 1971, pelo qual conquistaria também o troféu de Melhor Realizador), seria protagonizado por Ellen Burstyn (de 39 anos à data da rodagem e galardoada com o Óscar de Melhor Actriz Principal um ano mais tarde por “Alice Já Não Mora Aqui” de Martin Scorsese), Max von Sydow (o actor sueco, então com 42 anos, intérprete e alter-ego cinematográfico de Ingmar Bergman) e a estreante Linda Blair, de 12 anos.
Considerado por alguns especialistas – pelo menos até ao triunfo crítico e de box-office de “O Silêncio dos Inocentes” em 1991 – como o melhor filme de terror de todos os tempos, “O Exorcista” é um exercício de medo sensacionalista mas com agudo sentido de timing, dono de uma enorme força atmosférica e capaz de assustar ainda hoje os mais incautos. Assim, não poderia estar mais longe das suas raízes factuais – o seu objectivo é chocar, não testemunhar ou encenar episódios verídicos com preocupações de fidelidade.
Produzido pela Warner Brothers, o filme segue os passos dramáticos essenciais do livro: a actriz Chris McNeill (Burstyn) vive com a filha pré-adolescente Regan (Blair) em Georgetown, onde roda um filme sobre sublevações estudantis, quando a miúda mostra sinais crescentes de distúrbios psiquiátricos; os médicos são incapazes de encontrar em Regan qualquer problema físico e neurológico e, quando esta faz abanar violentamente a sua cama, agredindo a mãe, expressando-se em várias línguas com voz diabólica e masturbando-se com um crucifixo, Chris recorre a um padre católico, o jesuíta Damien Karras (o actor e dramaturgo nova-iorquino Jason Miller, igualmente um ex-aluno de jesuítas).
Revelando-se impotente para combater o espírito demoníaco que tomou conta de Regan (e que reclama agora ser o próprio Diabo), Karras sugere um outro padre, Lankester Merrin (von Sydow, sob pesada maquilhagem a interpretar um homem 30 anos mais velho), um dos raros com exorcismos no currículo.
Reproduzindo os terrores da novela de forma gráfica e altamente eficaz, o filme – coproduzido e com argumento de William Peter Blatty – tornou-se um colossal êxito de bilheteira.
Merrin acede ao pedido, e tentará executar o exorcismo com o auxílio de Karras, que atravessa entretanto um período de questionamento da fé após a morte da mãe. Merrin identifica o demónio que Regan encarnou como sendo Pazuzu, figura ancestral cujos vestígios o veterano jesuíta descobrira nos anos 50 – é o prólogo de “O Exorcista” – durante uma escavação na cidade milenar de Hatra, 290 quilómetros a noroeste de Bagdade, no Iraque.
(Pazuzu faz parte da mitologia verídica dos assírios e dos babilónios, como rei dos demónios do vento, criado no século VIII A.C.)
(spoiler alert) Depois de vários confrontos entre o duo de padres e uma Regan possuída por Pazuzu, no quarto da rapariga na casa de dois pisos de Georgetown, Karras e Lankester perecem na batalha final. Mas Regan sai incólume e curada do exorcismo.
Reproduzindo os terrores da novela de forma gráfica e altamente eficaz, o filme – coproduzido e com argumento de William Peter Blatty – tornou-se um colossal êxito de bilheteira. Inicialmente estreado em 24 salas dos Estados Unidos e Canadá, “O Exorcista” atraiu tantos espectadores que filas enormes de pessoas, dobrando quarteirões, à chuva e ao frio, aguardaram para obter um bilhete (“O Exorcista” é um dos filmes responsáveis pelo nascimento do termo “blockbuster” – quebra-quarteirão), uma parte delas acabando por assistir múltiplas vezes à longa-metragem.
O ultrarrealismo, condensado em vários efeitos mais típicos do Grand Guignol, casos do famoso vómito verde de Regan projectado no rosto de Karras (era de facto uma simples sopa enlatada de ervilhas, da marca Andersen, misturada com flocos de aveia para acrescentar densidade) ou do sexo ensanguentado da miúda após repetidas automutilações com uma cruz, aliado à reprodução verídica, para além do que seria hoje eticamente tolerável, de uma angiografia à carótida da própria Linda Blair – assim se reproduzindo uma das tentativas médicas de apurar o que se passa com Regan – provocaram, segundo a imprensa da época, vários desmaios entre o público (uma espectadora desfaleceu e partiu a mandíbula; a Warner acabaria por indemnizá-la por uma quantia não divulgada) e pelo menos um aborto espontâneo.
As casas de banho de alguns complexos de salas ficavam em tão mau estado no final das sessões que os seus proprietários começaram a distribuir sacos de vómito à entrada de cada projeção.
Uma revista de psiquiatria publica então um artigo, a propósito do filme, sobre “neurose cinematográfica”, e a violência psicológica e figurativa de “O Exorcista” levará à sua proibição em vídeo no Reino-Unido (após uma primeira fase sem incidentes) até 1998.
O ultrarrealismo, condensado em vários efeitos mais típicos do Grand Guignol, casos do famoso vómito verde de Regan projectado no rosto de Karras ou do sexo ensanguentado da miúda após repetidas automutilações com uma cruz, aliado à reprodução verídica, para além do que seria hoje eticamente tolerável, de uma angiografia à carótida da própria Linda Blair provocaram, segundo a imprensa da época, vários desmaios entre o público e pelo menos um aborto espontâneo.
Em contrapartida, o êxito comercial quebrará recordes, culminando numa receita acumulada hoje estimada em 372,8 milhões de euros, para um orçamento de 10,1 milhões.
Considerado por alguns especialistas – pelo menos até ao triunfo crítico e de box-office de “O Silêncio dos Inocentes” em 1991 – como o melhor filme de terror de todos os tempos, “O Exorcista” é um exercício de medo sensacionalista mas com agudo sentido de timing, dono de uma enorme força atmosférica e capaz de assustar ainda hoje os mais incautos. Assim, não poderia estar mais longe das suas raízes factuais – o seu objectivo é chocar, não testemunhar ou encenar episódios verídicos com preocupações de fidelidade.
Porém, mesmo o célebre episódio real a que se reporta, o de “Roland Doe” em 1949, está cheio de dúvidas e de conclusões erróneas:
– filho único, tido como intérprete empenhado de bullying por alguns colegas que, à época, sofreram com a sua agressividade, Roland foi em grande medida educado por uma tia supersticiosa, Harriet, que o habituou a jogar com um tabuleiro Ouija ( tábua através da qual é suposto convocarem-se espíritos). Roland cresceu, portanto, muito susceptível aos fenómenos do sobrenatural.
– os ‘episódios’ de possessão de Roland começaram depois de a tia Harriet morrer. Quando tudo ao chegou ao ponto do exorcismo oficial, já com autorização do arcebispo de Washington (indispensável para um procedimento tão raro na Igreja Católica), um dos padres jesuítas envolvido nos rituais, Raymond Bishop, tomou notas das sessões diárias. Segundo as notas, as convulsões e tremores de Roland exigiam que três dos intervenientes o segurassem, e o tronco do rapaz foi ficando com arranhões e marcas, culminando com a palavra “Hello” escrita no peito.
– Em “O Exorcista”, Regan faz também surgir palavras na sua pele, mas elas são bem mais arrepiantes, como um sugestivo “Help Me”; e Regan não se limita à estenografia espontânea: além de insultar toda a gente com um vernáculo que faria corar a equipa de seguranças de um prostíbulo, masturba-se com crucifixos, lança apelos como o antológico “Jesus Fuck Me” e roda a cabeça 360 graus. Nenhuma destas proezas, mesmo nos relatos mais transidos e fervorosos do padre Bishop, tem um remoto equivalente no caso documentado de “Roland Doe”.
Nos anos 80 e 90, os médicos e psiquiatras que tiveram curiosidade em analisar os testemunhos e notas disponíveis do caso “Roland Doe” concluíram que o rapaz era, provavelmente, esquizofrénico, ou sofreria de síndrome de Tourette, pouco conhecida e compreendida nos anos 40.
Mark Opsasnick, um jornalista que se dedicou a investigar o caso,. concluiu que os padres e oficiais da igreja que contactaram com Ronald viram uma criança possuída “porque era isso que queriam ver”.Segundo as conclusões de Opsasnick, “Roland Doe” era “simplesmente um abusador mimado que simulava ataques para chamar a atenção ou escapar às aulas”. Constatou também que muitas das informações cruciais sobre o episódio eram boatos, não se baseando em fontes documentadas; além disso, descobriu que os padres envolvidos na experiência nunca verificaram as unhas de Ronald, para esclarecer se as marcas e as palavras no corpo poderiam ter sido feitas ou traçadas pelo próprio.
O escritor e historiador Thomas B. Allen (criticado por Opsasnick devido a algumas incorreções), que também investigou o caso e o relatou em “Possessed”, publicado em 1993, citou o cepticismo de um dos padres que assistiu ao exorcismo – e derradeiro sobrevivente do episódio à data da publicação -, Walter H. Halloran, quanto à genuinidade da experiência; Allen declararia em 2013 que “não é possível obter qualquer prova definitiva de que ‘Roland Doe’ tenha sido possuído por espíritos malignos. Talvez sofresse de uma doença mental, ou de abuso sexual, inventando todo o episódio” .
Por outro lado, em benefício do filme e de alguns pontos que atestam certo cuidado na verosimilhança, quanto à reprodução de um acontecimento tão excepcional (e discutível) como um exorcismo:
– nos relatos documentados de exorcismos dos últimos dois séculos, por membros do clero que os conduziram ou a eles assistiram, a agitação furiosa da cama – até ao ponto, segundo alguns testemunhos, da levitação do leito – é comum.
– de acordo com o assessor religioso de “O Exorcista”, o padre John Nicola, que auxiliou à rodagem, a frase “O poder de Cristo guia-te!”, que Karras e Merrin repetem com insistência para expulsar o demónio do corpo de Regan, é proveniente de exorcismos reais.
– no epílogo do filme, Regan não se recorda de nada do que lhe aconteceu, muito menos dos vários dias em que foi exorcizada; isso é o que costuma acontecer nos casos verídicos de exorcismo.
Há alguns factos, durante e após a rodagem de “O Exorcista”, que construíram e reforçaram a sua aura de “filme maldito”, condizente com os temas e storyline da ficção:
– na primeira fase de filmagens, os cenários interiores dos estúdios de Nova Iorque -também os havia em Washington D.C. – arderam num incêndio; para sossegar alguns membros da equipa e os técnicos que reconstruíram os cenários, Friedkin e William Blatty pediram a um padre para abençoar os décors (concluiu-se depois que fora um pássaro a entrar na caixa eléctrica, provocando um curto-circuito)
– há várias mortes comummente associadas a “O Exorcista”: o avô de Linda Blair e o irmão de Max von Sydow morreram durante a rodagem; o actor Jack MacGowran e a actriz Vasiliki Maliaros faleceram pouco depois de a produção encerrar (ele de gripe, ela de causas naturais); no total, nove pessoas relacionadas com a equipa do filme morreram durante ou imediatamente após o fim das filmagens; o filho de Mercedes McCambridge (grande actriz secundária do período clássico de Hollywood e aqui responsável imortal pela voz demoníaca de Regan) assassinaria a mulher e as filhas em Novembro de 1987, suicidando-se a seguir, após ser acusado de fraude
Além disso, o poder sugestivo do filme perdurou além da estreia:
– durante seis meses após a première nova-iorquina, a Warner viu-se obrigada a pagar a seguranças para protegerem Linda Blair e a família próxima, uma vez que a actriz recebeu numerosas ameaças de morte por espectadores convencidos de que ela era, na realidade, a personificação do diabo. Nesses primeiros meses, os pais de Linda decidiram escondê-la em casa de amigos em New Jersey e no Connecticut, e as ameaças prolongaram-se por anos (“O Exorcista” teve três sequelas, a primeira ainda com a actriz, “O Exorcista II: o Herege”, de 1977).
– existe outra coincidência um tanto tenebrosa: um homem suspeito na vida real de ser um serial-killer aparece numa cena do filme.
Paul Bateson, um técnico genuíno de raios-X, surge em “O Exorcista” como assistente de radiologia na infame cena da angiografia da carótida a Regan. Seis anos depois da rodagem, em 1979, Bateson seria detido pelo homicídio do crítico de cinema Addison Verrill, após fazer sexo com este e de lhe esmagar o crânio com uma frigideira; condenado a 20 anos de prisão, confessaria também o assassinato de outros homens, cujos corpos teria lançado ao rio Hudson; jamais foi acusado e julgado por estes presumíveis crimes, porque a polícia nunca conseguiu encontrar provas que confirmassem o depoimento. Bateson foi libertado em 2004.