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Cine-Check: “O Espião Inglês”

Este artigo tem mais de um ano
Com rodagem iniciada a 15 de outubro de 2018 e exteriores em Praga (62 anos depois de alguns dos eventos cruciais encenados), "O Espião Inglês" é uma produção anglo-americana entre a "42", que recebeu originalmente o guião de Tom O’Connor, a "FilmNation Entertainment" e a "SunnyMarch," a empresa audiovisual do próprio Benedict Cumberbatch. A estreia em Portugal está prevista para 10 de junho.

O filme

Em novembro de 1960, Greville Wynne, um engenheiro eletrotécnico inglês convertido em empresário de peças industriais nos emergentes mercados de leste (interpretado pelo londrino Benedict Cumberbatch aos 42 anos, poucos meses mais velho do que Wynne à época), é contactado por Arthur ‘Dickie’ Franks (Angus Wright), um alto funcionário dos serviços secretos britânicos MI6, e pela agente da CIA Emily Donovan (a norte-americana de 30 anos Rachel Brosnahan, celebrizada pela série de comédia da Amazon “The Marvelous Mrs. Maisel”) para servir de intermediário entre as duas agências de inteligência ocidentais e Oleg Penkovsky, um coronel dos serviços secretos militares soviéticos (o actor georgiano Merab Ninidze aos 53 anos), oito meses depois de este ter iniciado o contacto com a CIA graças a uma carta e vários documentos entregues à pressa a dois estudantes norte-americanos em passeio por Moscovo.

Penkovsky, cada vez mais apreensivo com o belicismo e a natureza errática da liderança de Nikita Khrushchev, secretário-geral do Partido Comunista soviético entre 1953 e 1964, já tentara comunicar com o MI6 recorrendo a dois empresários britânicos em viagens de negócios na URSS.

As informações, documentos e imagens que o coronel soviético entregará a Greville Wynne ao longo dos 18 meses seguintes tornar-se-ão decisivas para avisar as autoridades inglesas e o governo dos EUA dos preparativos da instalação de mísseis nucleares da URSS em território cubano, com raio de alcance das principais cidades norte-americanas, ajudando a resolver a crise dos Mísseis de Cuba em outubro de 1962, durante a qual os blocos Ocidental e de leste estiveram à beira do confronto nuclear.

As atividades de espionagem de Wynne e de Penkovsky seriam entretanto descobertas pelo KGB, levando à detenção de ambos pelas autoridades soviéticas nesse outubro de 1962. A 11 de maio de 1963, Wynne foi condenado a oito anos e meio de prisão, continuando detido em Moscovo, em condições precárias e sujeito a  tortura e espancamentos regulares, até o governo britânico conseguir assegurar a sua libertação em abril de 1964, por troca com Kono Molody, um espião soviético detido em Inglaterra.

Wynne, após anos de depressão e problemas com o alcoolismo, morreria num hospital de Londres aos 70 anos, de cancro na garganta, a 28 de fevereiro de 1990. Oleg Penkovsky foi julgado e fuzilado sete meses após a sua detenção, a 16 de maio de 1963. Tinha 44 anos.

Com rodagem iniciada a 15 de outubro de 2018 e exteriores em Praga (62 anos depois de alguns dos eventos cruciais encenados), “O Espião Inglês” é uma produção anglo-americana entre a “42”, que recebeu originalmente o guião de Tom O’Connor, a “FilmNation Entertainment” e a “SunnyMarch”, a empresa audiovisual do próprio Benedict Cumberbatch.

A longa-metragem foi realizada por outro londrino, Dominic Cooke, encenador teatral de grande prestígio cuja estreia na direcção para cinema se deu em 2017 com “Na Praia de Chesil”, adaptando o romance homónimo de Ian McEwan.

Cooke já dirigira Cumberbatch em várias peças do “Royal Court Theatre” bem como em “The Hollow Crown: The Wars of the Roses”, uma série de adaptações de William Shakespeare, incluindo “Richard III”, onde Cumberbatch teve a oportunidade de interpretar o soberano inglês de finais do século XV que é seu antepassado remoto – o ator descende de um primo em 16º grau de Ricardo III.

Com antestreia a 24 de janeiro de 2020 no festival de Sundance (EUA), “O Espião Inglês”, distribuído pela RoadSide Attractions e a Lionsgate, viu a estreia adiada devido à Covid-19, sendo finalmente lançado nos cinemas norte-americanos a 19 de março de 2021 (5,3 milhões de euros de receita acumulada) e na Europa a partir de 17 de maio, para uma receita global de 11,8 milhões de euros até à data. A estreia em Portugal está prevista para 10 de junho.

Os factos

“O Espião Inglês” baseia-se em várias biografias (entre elas, “The Spy Who Saved the World”) e trabalhos históricos dedicados ao período da Guerra Fria, compilados e selecionados pelo argumentista Tom O’Connor (autor dos guiões do medíocre thriller “Fogo Contra Fogo”, com Rosario Dawson e um Bruce Willis já em fase geriátrica, e da sofrível comédia de ação “O Guarda-Costa e o Assassino”, com Samuel L. Jackson e Ryan Reynolds, cuja sequela estreará em Portugal em setembro).

Nessa recolha inclui-se documentação tornada pública nas últimas décadas pelos serviços secretos britânicos e norte-americanos, além das autobiografias de Greville Wynne que este editou em vida: “The Man From Moscow”, de 1967, e “The Man From Odessa”, de 1981.

Apesar de um grande rigor na fidelidade aos factos conhecidos quanto a:

  • cronologia dos eventos que culminam na crise da Baía dos Porcos (os Mísseis de Cuba);
  • linhas gerais da intriga;
  • sucessão dos acontecimentos mais importantes no relacionamento negocial e político de Greville Wynne com Oleg Penkovsky

“O Espião Inglês” toma várias liberdades dramatúrgicas no aprofundamento da relação privada entre o britânico e o soviético – o conhecimento dessa relação depende em grande medida do testemunho, entretanto muito contestado, de Wynne – bem como na reprodução de vários detalhes da espionagem, prejudicados na sua veracidade por versões reais por vezes contraditórias e por provas ainda hoje – como confirmaria o argumentista – sob segredo de Estado:

– sendo Arthur ‘Dickie’ Franks uma personagem real, funcionário de alta patente do MI6, há relatos díspares relativamente à sua responsabilidade no recrutamento de Wynne; se o “The Times”, o “The Guardian” e o “The Telegraph” asseguram ter sido ele o protagonista desse recrutamento, o “The Independent”, no seu obituário de Franks em 2008, garante que não;

"Minari" é uma produção da Plan B, de Brad Pitt e Dede Gardner, fundada em 2001 e responsável por três vencedores de Óscares de Melhor Filme (“Os Infiltrados” de Martin Scorsese, “12 Anos Escravo” de Steve McQueen e “Moonlight” de Barry Jenkins). Distribuída pela A24, após uma antestreia no festival de Sundance a 26 de janeiro de 2020 – onde obteve o Grande Prémio do Júri para Filme Dramático e o Prémio do Público -, estreou-se nas salas norte-americanas e em plataformas VOD ("video on demand") a 12 de fevereiro deste ano, após um adiamento de 14 meses provocado pela pandemia. Tem estreia prevista nos cinemas portugueses a 13 de maio.

– já a personagem da agente da CIA Emily Donovan é totalmente fictícia, inspirando-se num compósito de várias figuras norte-americanas, tanto femininas como masculinas, com responsabilidades no alinhamento e acompanhamento da missão soviética de Greville Wynne;

– a desilusão do coronel Penkovsky com o regime soviético não tinha apenas a ver com a desconfiança face ao consulado de Khrushchev; durante a guerra civil russa de 1917-23, o pai de Penkovsky militou no exército branco, tendo morrido às mãos dos bolcheviques, que triunfaram e lançariam as bases do futuro regime; de acordo com os relatos disponíveis – embora isso não seja mencionado no filme -, esse facto ajudaria a moldar o carácter insatisfeito do futuro coronel da inteligência militar soviética;

– no desenlace de “O Agente Inglês” (atenção: spoiler), as conversas e o tom amistoso do relacionamento de Greville Wynne com a mulher Sheila (interpretada pela irlandesa Jessie Buckley, de “Wild Rose – Rosa Selvagem” e “Tudo Acaba Agora”) sugerem que as tensões no casamento se amenizariam após a libertação de Wynne e do regresso deste a Londres em 1964 (houve uma infidelidade penosamente perdoada); na realidade, Sheila divorciou-se de Greville pouco depois do retorno do marido a Inglaterra. Ele casar-se-ia em 1970 com a sua secretária e intérprete, Herma van Buren (acabariam por separar-se);

– a relação de grande empatia e cumplicidade pessoal e familiar de Wynne e Penkovsky é largamente ficcionada, havendo apenas o testemunho de uma das partes (Wynne) e breves menções sobre o assunto em historiografia credível; porém, o risco que é assumido por tanto tempo, e até ao limite, por Wynne na protecção de Penkovsky reforça a forte solidariedade e interdependência ética entre os dois homens que o filme reproduz.

– o KGB tinha provas do envolvimento de Penkovsky com agentes ocidentais mais de um ano antes da sua detenção; os serviços soviéticos decidiram não atuar mais cedo para proteger a identidade do agente duplo Jack Dunlap, um funcionário da NSA norte-americana (Agência de Segurança Nacional) e o primeiro a descobrir as atividades paralelas de Penkovsky;

– para retratar um fragilizado Wynne no período do encarceramento moscovita, Benedict Cumberbatch (um vegan militante na vida real) perdeu 9,5 quilos.

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