O filme
Depois de em 2011 perder o emprego na fábrica de construção de materiais U.S. Gypsum, na cidade de Empire, Nevada, EUA, Fern (interpretada por Frances McDormand aos 61 anos), cujo marido morreu após anos de trabalho como operário na mesma empresa, fica sem casa. Decide guardar quase todos os bens que lhe restam num armazém, comprar uma carrinha em segunda mão e passar a viver na estrada sem destino, apenas aquele que lhe garanta ocupações sazonais – com o encerramento da fábrica, é a própria cidade de Empire que desaparece (até o respectivo código postal é extinto).
Pelo Sudoeste da América, dormindo em acampamentos ou trailer parks, Fern encontra e estabelece amizade com Linda May, Swankie ou Bob Wells (todos interpretando-se a si mesmos no filme), membros reais de uma comunidade dispersa de nómadas modernos, que vagueiam de Estado em Estado consoante as estações do ano e as ofertas de emprego.
Fern empacota encomendas num armazém da Amazon, cozinha num restaurante de estrada, serve de assistente em parques nacionais, conhecendo pelo caminho outro desalojado, Dave (o veterano actor de 72 anos David Strathairn). Dave cede ao pedido do filho para viver com este e o neto recém-nascido, convida Fern para juntar-se a ele, mas ela declina, depressa regressando ao nomadismo, não sem antes voltar uma última vez à casa de Empire onde vivera décadas com o marido.
Dirigida por Chloé Zhao, uma cineasta chinesa de 38 anos nascida em Pequim mas educada em Londres e Los Angeles, aqui na sua terceira longa-metragem (sendo as anteriores “Songs My Brothers Taught Me”, de 2015 e o celebrado pela crítica “The Rider”, de 2017), “Nomadland” é uma produção da Highway Films, Hear/Say Productions e Cor Cordium Productions para a Searchlight Pictures, uma divisão da 20th Century Fox, a clássica major (grande produtora de Hollywood) entretanto adquirida pelo conglomerado audiovisual da Walt Disney.
Rodado ao longo de 2018 em sete Estados do Oeste dos EUA – do Dakota do Sul à Califórnia, com passagem pelo Arizona -, o filme teve um orçamento estimado entre os 3,3 e os 5 milhões de euros, tendo rendido 553 mil euros num breve período de exibição em sala nos EUA, estando disponível na plataforma (exclusivamente norte-americana) de streaming Hulu desde 19 de Fevereiro, com estreia cinematográfica prevista para vários países no primeiro semestre de 2021, incluindo Portugal – a data por agora apontada é 17 de Março, com distribuição da NOS Audiovisuais.
Vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza 2020 e do Prémio do Público do Festival Internacional de Cinema de Toronto em Setembro último, “Nomadland” está nomeado para quatro Globos de Ouro (incluindo Melhor Filme – Drama), sendo considerado pela generalidade da crítica internacional como o favorito máximo aos Óscares de 2021, a realizar a 25 de abril.
Os factos
“Nomadland” não só acompanha ficcionalmente os factos essenciais e as figuras verídicas mais relevantes que lhe servem de base como as reproduz com grande fidelidade, resultado de uma abordagem artística, típica da sua realizadora, que não apenas situa a acção nos locais verdadeiros onde muitos dos factos sucederam como incorpora personagens reais e as suas angústias na trama que é desenvolvida.
Nos seus dois filmes anteriores, “Songs My Brothers Taught Me” (sobre o relacionamento entre dois irmãos de etnia Sioux Lakota na reserva índia de Pine Ridge, no estado do Dakota do Sul) e “The Rider” (sobre a encruzilhada de vida de um cowboy de rodeos que quase perdera a vida num acidente a cavalo), Zhao não se limita a seguir de forma próxima os acontecimentos verdadeiros: além de integrar actores não-profissionais cujo quotidiano é semelhante ao das personagens, os protagonistas são figuras reais a interpretarem versões ficcionadas da respectiva persona. Excluindo Fern – que é um compósito de várias personagens verídicas – e o flaneur Dave, interpretado por David Strathairn, (de “Boa Noite, Boa Sorte”, “Ultimato” ou “Lincoln”), as restantes personagens são declinações fictícias de si próprias.
As nómadas de estrada Linda May, uma avó que vive num jipe em segunda mão, Swankie, sexagenária continuamente na estrada há mais de uma década, ou Bob Wells, criador do site Cheap RV Living, vedeta de um canal de Youtube com 400 mil subscritores e mentor do Rubber Tramp Rendezvous, um acampamento em Quartz, no Arizona (também integrado na ficção) para estes viajantes sem poiso que vivem nas suas carrinhas ou autocaravanas, são alguns dos protagonistas do livro de não ficção em que a longa-metragem se baseia, “Nomadland: Surviving America in the Twenty-First Century” (W.W. Norton), da jornalista norte-americana Jessica Bruder, repórter do New York Times desde 2003 e especializada em subculturas.
O livro ganhou forma após Bruder trabalhar em 2014 num história sobre norte-americanos que, aproximando-se da terceira idade depois da recessão de 2008, não tinham meios de subsistência para se reformar, acabando em trabalhos manuais temporários para empresas como a Amazon. A investigação daria origem a “The End of Retirement”, um artigo na revista Harper.
Publicada em Setembro de 2017, a obra de não-ficção “Nomandland” relata os cerca de três anos que Bruder passou na estrada, numa carrinha que baptizou de Halen (em inglês, carrinha é ‘van’; trata-se pois de um trocadilho com a banda de hard-rock Van Halen), percorrendo várias vezes os EUA de costa a costa e do México à fronteira do Canadá, num total de 24 mil quilómetros, conhecendo dessa forma centenas de nómadas contemporâneos, maioritariamente brancos e de idade madura. Esses viajantes tornados actores e as suas histórias verídicas guiaram assim o argumento e a rodagem de “Nomadland” – o filme.
Com um elenco e equipa técnica de menos de 30 pessoas, os membros da produção misturaram-se com a comunidade nómada retratada, vivendo também eles em carrinhas, autocaravanas ou roulotes e viajando para onde eles viajavam – mesmo a consagrada e oscarizada Frances McDormand (produtora do filme e responsável por convencer Chloé Zhao a adaptar o livro de Bruder) fê-lo durante quatro meses, numa carrinha onde colocou objectos e haveres pessoais e que baptizou de “Vanguard”.
A integração foi tão eficaz que uma das lojas Target que recrutou algumas das personagens reais ofereceu uma candidatura a um posto de trabalho a McDormand. A actriz trabalharia ao lado de Swankie e de Linda May (cujas histórias pessoais na ficção são em parte literais, em parte moldadas às exigências do argumento final) num armazém da Amazon e em tarefas como a colheita de beterraba.
Também Chloé Zhao, ao longo dos quatro meses de rodagem no Outono de 2018, viveu largos períodos numa carrinha, desta vez baptizada de “Akira” – a directora, prestes a lançar-se em 2021 no multiverso da Marvel à frente de uma megaprodução, adaptando os comics “The Eternals”, é grande fã de anime, o cinema de animação nipónico, sobretudo da longa-metragem de 1988 de Katsuhiro Otomo.
A adaptação verista do percurso destes nómadas modernos, além de contar com o envolvimento de Jessica Bruder, que conhecia os protagonistas reais desde 2017 e com eles viveu, foi reforçada graças à empatia com que Frances McDormand se integrou na comunidade e pelo recurso, segundo uma reportagem da revista “Time”, a entrevistas em vídeo iPhone com dezenas de outras potenciais personagens secundárias e figurantes. O guião foi sendo organicamente moldado a esta integração da equipa de rodagem no grupo de viajantes e aos testemunhos e experiências de vida entretanto recolhidos.
Jessica Bruder mantém o contacto, por telefone e Facebook, com muitos dos nómadas de livro e filme (incluindo Swankie, que morre apenas na ficção e foi à ante-estreia californiana em Telluride, num apropriado regime drive-in, por causa das regras sanitárias da Covid-19). A carrinha que utilizou como transporte e casa durante três anos, a Halen, está agora guardada no quintal de um amigo em Reno, no Nevada.