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CINE-CHECK: “Mulheres ao Poder”

Este artigo tem mais de um ano
Protagonizado por Keira Knightley, o filme reproduz de forma bastante fiel as peripécias verídicas dos acontecimentos que precederam a cerimónia do concurso Miss Mundo 1970, bem como as polémicas vicissitudes do próprio evento.
O FACTO:

A edição de 1970 do concurso Miss Mundo realizou-se a 20 de Novembro desse ano no Royal Albert Hall em Londres, Inglaterra. 58 competidoras de quatro continentes disputaram o ceptro, culminando na vitória surpreendente de Jennifer Hosten, Miss Grenada (então ainda um estado-arquipélago associado da Grã-Bretanha, com a independência a ser garantida apenas três anos e meio mais tarde, a 4 de Fevereiro de 1974). Hosten, uma hospedeira de bordo com 23 anos, tornava-se assim a primeira mulher negra a conquistar o troféu.

O evento foi marcado pela controvérsia, antes, durante e após a cerimónia. Logo na escolha das concorrentes, o insólito aconteceu: A África do Sul, então no apogeu da sua política de apartheid, indicou duas competidoras, uma branca, Jillian Elizabeth Jessup (Miss South Africa), outra negra, Pearl Gladys Jansen (Miss Africa South, que chegaria a primeira dama de honor no concurso). Horas antes de a cerimónia arrancar – em transmissão directa para todo o mundo pela BBC, com audiências estimadas em mais de 100 milhões de espectadores -, uma carrinha da estação pública britânica, estacionada perto do Royal Albert Hall, foi alvo de uma explosão, reivindicada pela Angry Brigade, um grupo bombista de extrema-direita.

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Tanto à entrada da assistência como no interior do auditório, um grupo de manifestantes de ramos locais do Women’s Liberation Movement (WLM) protestou contra o sexismo e a misoginia do evento, levando mesmo à sua interrupção:  infiltradas em vários pontos da audiência, as manifestantes interromperam o monólogo do célebre actor e comediante norte-americano Bob Hope, convidado especial e coapresentador da cerimónia, durante uma das suas tiradas humorísticas (tida como machista), levando algumas militantes do WLM a gritar “Libertação para as Mulheres!” e a lançar farinha e bombas de mau-cheiro para o palco.

A cerimónia, bem como a transmissão televisiva, tiveram de ser interrompidas, sendo retomadas após a expulsão das manifestantes e a detenção de algumas delas. Mas a polémica continuou: com o triunfo de uma mulher negra – e o segundo posto de outra – em detrimento da que a imprensa considerava, de forma esmagadora, como a favorita à vitória (a loiríssima Miss Suécia, Marjorie Christel Johansson), os protestos junto da BBC e dos jornais londrinos acumularam-se, com os tabloides a insinuarem irregularidades no processo de decisão.

Quatro dos nove juízes – que incluíam a actriz Joan Collins e os cantores Nina e Glen Campbell – tinham atribuído o primeiro lugar à Miss Suécia (terminaria em quarta), contra apenas dois votos máximos para Jennifer Hosten, e a presença do primeiro-ministro de Grenada, Eric Gairy, entre os jurados agudizou as acusações de logro.

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As acusações de jogo viciado e de racismo contra a representante escandinava subiram de tom – no exterior, dezenas de populares gritavam em protesto “Miss Suécia! Miss Suécia”-, levando à demissão da organizadora do concurso, Julia Morley. Foi necessária a intervenção do marido desta, Eric Morley, director do evento e proprietário da marca Miss Mundo, para desfazer as dúvidas: os cartões originais de votação, divulgados por Eric na imprensa, confirmavam que, pelo sistema de maioria há muito aprovado na competição, Olten vencera de facto, com mais votos (além dos dois como 1ª classificada) em 2º, 3º e 4º lugares do que aos outras competidoras, incluindo Marjorie Christel Johansson.

Apesar disto, mantiveram-se as insinuações (sem qualquer indício ou testemunho) de que o primeiro-ministro de Grenada teria influenciado os restantes jurados a favor de Jennifer Hosten. Anos depois, a ex-Miss Suécia continuaria a dizer que sentia ter sido afastada do título de forma irregular.

Hosten, após um período como relações-públicas da Air Canada – a mãe vivera no Canadá e Hosten passou no país parte da sua adolescência -, mudar-se-ia para Ontário, licenciando-se em Ciência Política e Relações Internacionais e desempenhando vários cargos diplomáticos tanto ao serviço de Grenada como do Canadá. Após um mestrado em Psicologia, concluído em 2011, Hosten trabalha, aos 72 anos, como psicoterapeuta em Oakville, Ontário.

O impacto público da ‘operação Miss Mundo’ do “Women’s Liberation Movement” contribuiria para a popularidade e capital de influência dos movimentos feministas, britânicos como internacionais, no decorrer dos anos 70.

O FILME:

Sally Alexander (Keira Knightley, consagrada intérprete britânica aos 35 anos) é uma mãe divorciada, agora a viver com o segundo marido mas insatisfeita com uma vida de acomodação doméstica. Conseguindo ingressar tardiamente na universidade, conhece um grupo de feministas, tacitamente lideradas pela rebelde Jo Robinson (Jessie Buckley, jovem estrela irlandesa em ascensão aos 30), cujos objectivos são chamar a atenção da Grã-Bretanha para o que consideram as injustiças de uma sociedade patriarcal.

Vendo uma oportunidade única de atrair holofotes globais para a sua luta na cerimónia Miss Mundo de 1970, cujo desfile competitivo de mulheres compara a uma ‘feira de gado’, esta célula londrina do “Women’s Liberation Movement” persuade Sally, talentosa no desenho gráfico e nas palavras de ordem, a alinhar no combate.

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Em paralelo, acompanhamos as alegrias, hesitações e perplexidades das candidatas, com destaques para a futura vencedora, Jennifer Hosten (Gugu Mbatha-Raw, inglesa de origem sul-africana), a Miss Africa South (Loreece Harrison) e Marjorie Johansson, a Miss Suécia (Clara Rosager) além do enfoque regular no relacionamento entre o veterano Bob Hope (interpretado com uma prótese nasal de gosto duvidoso pelo norte-americano Greg Kinnear) e a esposa, Dolores (a competentíssima Lesley Manville, que brilhou no “Linha Fantasma” de Paul Thomas Anderson em 2017), desgostosa pelos avanços recorrentes do marido junto das jovens aspirantes.

Coprodução entre a Left Bank Pictures, a BBC Pictures, o British Film Institute, a Ingenous e a francesa Pathé, com distribuição internacional assegurada pela Fox, “Mulheres ao Poder” estreou no Reino Unido a 13 de Março, com o lançamento nas salas portuguesas previsto para dia 8 de Outubro, meio-século depois do evento que lhe dá origem. Dirigido pela experiente Phillipa Lowthorpe (realizadora de episódios de “Call the Midwife”, “Three Girls” ou “The Crown”) na estreia em longas-metragens para cinema, o filme reproduz de forma bastante fiel as peripécias verídicas dos acontecimentos que precederam a cerimónia do concurso Miss Mundo 1970, bem como as polémicas vicissitudes do próprio evento.

Há, no entanto, algumas diferenças relevantes que devem ser destacadas:

  • Sendo as feministas Sally Alexander e Jo Robinson as protagonistas maiores de “Mulheres ao Poder” (no final, vemos as verdadeiras Sally e Jo na actualidade, acompanhadas de breves notas biográficas), Jennifer Hosten é também alvo de destaque, embora a sua doçura e reverberante fascínio com os detalhes e a entourage do concurso não correspondam às declarações posteriores da nova Miss Mundo à imprensa internacional  – Hosten era bem mais culta e cerebral do que o seu retrato na longa-metragem deixa a entender; porém, essa imagem é em parte redimida na cena do terceiro acto do filme em que se encena um encontro – ficcional – entre a activista Sally e a recém-empossada Miss Mundo, onde esta demonstra estar bem ciente do impacto do seu triunfo para o futuro reivindicativo da condição feminina.
  • O conflito verídico entre as facções, na imprensa como no público em geral, que defendem a justiça da vitória de Hosten e as que sustentam a tese conspirativa dos resultados viciados contra a Miss Suécia, é largamente ignorado pelo filme; a própria Marjorie Johansson, que confidenciaria anos depois a sua amargura pelo afastamento do ceptro, surge no filme como a mais desprendida e nonchalante das candidatas, troçando com a importância que alguma das suas adversárias atribuem ao concurso e não colocando qualquer obstáculo ao triunfo de Hosten, com quem cultiva alguma amizade (por outro lado, Johansson era de facto simpatizante dos movimentos feministas, tendo-o então manifestado).
  • Existem também detalhes imprecisos na recriação dos acontecimentos verídicos: ao contrário do que “Mulheres ao Poder” encena, não foi Eric Morley que sugeriu duas concorrentes – uma branca, outra negra – pela África do Sul, de forma a apaziguar a pressão da imprensa, mas antes o próprio governo sul-africano que já o decidira dessa forma; a carrinha da BBC alvo de uma bomba, explode, não na noite anterior à cerimónia – como se vê no filme – mas horas antes do seu início
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Curiosidades:

  • Ana Maria Lucas, manequim, actriz e apresentadora de televisão portuguesa, hoje com 71 anos, foi a representante nacional no Miss Mundo 1970 (e no troféu Miss Universo do mesmo ano) após vencer o concurso de Miss Portugal no ano anterior. Num breve apontamento, “Mulheres ao Poder” não ignora a sua vistosa presença no certame, quando um assistente a vê descer do autocarro das candidatas, assinalando, em sotaque cockney, “Miss Portugal…”. Lucas é interpretada pela desconhecida Chiara King, num papel de figuração especial, sem linhas de diálogo.
  • Num dos artigos verdadeiros publicados na semana que antecedeu a cerimónia de 20 de Novembro de 1970, pelo “The Sun”, a repórter Joyce Hopcork destaca a dado momento (não sem misoginia) que, apesar de “conhecer um par de modelos londrinas de topo que sairiam daqui com a coroa…seria improvável que qualquer homem recusasse um encontro com as misses África do Sul, Grenada ou Portugal”.
  • Em 2019, pela primeira vez na história, os troféus de Miss Universo, Miss Mundo, Miss América, Miss Estados Unidos e Miss Teen USA foram todos conquistados por mulheres negras.

 

 

 

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