O filme:
O compositor sexagenário Gustav von Aschenbach (Dirk Bogarde, ator britânico de origem holandesa com 49 anos à data da rodagem, protagonista de “O Criado” de Joseph Losey ou de “O Porteiro da Noite”), traumatizado por tragédias familiares e pelo recepção catastrófica à sua mais recente sinfonia, refugia-se na estância balneária do Lido veneziano de forma a encontrar alguma tranquilidade.
Fascinado por um rapaz belo de 14 anos, Tadzio (o sueco de 15 anos Bjorn Andresen, então com apenas uma longa-metragem no currículo), filho de uma família nobre polaca que aí passa férias, von Aschenbach desenvolve uma paixão cada vez mais obsessiva pelo miúdo, o que o levará a permanecer demasiado tempo numa Veneza afectada por um grave surto de cólera. Doente cardíaco, o compositor acaba por morrer numa praia do Lido após contemplar pela última vez o seu amor, ideal de beleza num mundo que Aschenbach encontra já irremediavelmente decadente.
Adaptando a novela homónima do escritor alemão Thomas Mann, publicada em 1912 (edição portuguesa de 2004 pela Relógio D’Água), “Morte em Veneza” é uma longa-metragem de 130 minutos dirigida pelo italiano Luchino Visconti (“O Leopardo”, “Os Malditos”) em 1971 – celebram-se agora os 50 anos desde a estreia -, numa produção italo-francesa de co-financiamento norte-americano e distribuição internacional da Warner Brothers, rodada em Technicolor e formato Panavision no Veneto e nos estúdios da Cinecittá, em Roma.
De resultados de bilheteira desastrosos (os números disponíveis apontam para 4.720 euros de receita num orçamento de 1,7 milhões de euros à época), o filme teve uma première de gala a 1 de março de 1972 em Londres, na presença da família real inglesa, e estreou nas salas portuguesas a 14 de setembro do mesmo ano, acabando por tornar-se um sucesso de culto, sobretudo entre os admiradores da obra de Luchino Visconti, o grande cineasta de “Sentimento” e “Rocco e Seus Irmãos”.
Os factos:
Luchino Visconti di Modrone (1906-1976), um dos maiores realizadores de sempre do cinema europeu, era um cineasta de raízes nobres (conde de Lonate Pozzolo, descendia dos Visconti de Milão, que governariam a cidade-estado entre 1277 e 1477), assistente de Jean Renoir em França nos anos 30 graças a uma amizade comum com Coco Chanel (algumas biografias sugerem que Visconti terá pago de início para integrar a equipa de Renoir), autor de uma longa-metragem precursora do film noir, “Ossessione” (1943, a partir do romance de James M. Cain, “O Porteiro Toca Sempre Duas Vezes”, alvo de várias versões posteriores) e, logo após a Segunda Guerra Mundial, co-fundador de um movimento capital na história do cinema, o neorrealismo, ao lado do principal protagonista dessa revolução ética e estética, Roberto Rossellini.
Convertido ao comunismo, após triunfos como “La Terra Trema”, sobre a vida miserável dos pescadores sicilianos (onde usaria trabalhadores locais como actores amadores mas dirigidos com instruções rigorosas) e um esforço tardio e melodramático ainda sob a influência neorrealista, “Rocco e Seus Irmãos”, Visconti encontraria a sua verdadeira natureza durante os anos 50 como encenador de ópera, no Scala de Milão (onde dirigiria Maria Callas em produções logo consideradas brilhantes e irrepetíveis) e em outras grandes salas europeias. A partir dessa década, a sua obra reflectirá preocupações biográficas e obsessões pessoais, no desdobramento de uma personalidade ora misantropa, ora excessiva, sempre diletante.
Os filmes finais da carreira de Visconti (“Os Malditos”, de 1969, este “Morte em Veneza” de 1971, “Ludwig” de 1973, “Inocência e Paixão” de 1974 e “o Inocente”, de 1976) são, em simultâneo, o zénite e o declínio do seu ideário particular. Sem o deslumbramento plástico, operático, de “Sentimento” e a perfeição de equilíbrio entre tema e forma de “O Leopardo”, essas longas-metragens traduzem a psique e as preocupações reais de Visconti: a nostalgia irremediável por um mundo de tradições nobres, classistas (em conflito com a utopia comunista cedo abandonada) agora em vias de desaparecimento; o decadentismo como marca de civilização (o mundo tenebroso, crepuscular, dos nazis de “Os Malditos”, o delírio auto-fágico da Baviera de “Ludwig”, o confronto de gerações na casa quase decrépita de “Inocência e Paixão”); ideais de beleza clássica também em vias de extinção, incluindo referência helenistas onde a beleza masculina é predominante; a homossexualidade do autor, que a dado momento se confundirá com os desígnios da própria obra (o mais célebre amante de Visconti, o austríaco Helmut Berger, torna-se musa e alter-ego deste período final, como protagonista de “Os Malditos”, “Ludwig” e “Inocência e Paixão”).
É neste contexto que devem ser referidos os factos que enquadram “Morte em Veneza”.
Ao procurar reproduzir o universo da novela de Thomas Mann (a narrativa de livro e filme são muito semelhantes, à parte detalhes como a profissão de Gustav von Aschenbach – escritor na novela, compositor na longa-metragem), Visconti foi à procura dos seus ideais de beleza, platónica como carnal (o jovem Tadzio, aspiração pedófila caso seja levada à letra) e de reprodução de um mundo à beira do fim (a centenária Veneza, de edifícios corroídos pelo avanço aquático da Natureza, sob os efeitos de uma epidemia/peste de cólera).
Visconti passou vários meses à procura do Tadzio perfeito, acabando por encontrá-lo num casting que fez em Estocolmo, no Inverno de 1970. O documentário de 93 minutos “The Most Beautiful Boy in the World”, dirigido pelos suecos Kristina Lindstrom e Kristian Petri, distribuído pela Juno Films e estreado a 29 de janeiro deste ano, fixa o preciso momento em que Visconti, então com 64 anos e um prestígio global, encontra o rapaz que procurava. É o sexto adolescente que vê, o diretor fica deslumbrado, e a decisão é rápida: o sueco Bjorn Andrésen, filho de pai desconhecido e mãe errática, educado pelos avós – é a avó que o estimula a ser ator e famoso, ele que queria ser apenas um bom músico -, torna-se Tadzio aos 15 anos, interpretando uma personagem de 14, que tem 13 na descrição original da novela de Thomas Mann.
Apresentado como “o mais bonito rapaz do mundo” pelo próprio Visconti na conferência de imprensa que antecede a antestreia londrina de março de 1971, Andrésen torna-se uma das grandes estrelas do Festival de Cannes desse ano. Antes abrigado dos olhares mais longos – e lânguidos – de uma equipa de rodagem maioritariamente homossexual (Visconti dera instruções específicas para que ninguém fitasse Bjorn Andrésen durante as filmagens em Veneza excepto ele próprio), Bjorn Andrésen é exibido como um troféu pelo realizador, que leva o rapaz a um clube noturno gay da Côte d’Azur na noite de estreia em Cannes. Seria a primeira de uma série de visitas do género numa tournée internacional de meses para a apresentação do filme.
Numa entrevista de 16 de outubro de 2003 ao jornal britânico “The Guardian”, um Bjorn Andrésen de 48 anos relata o desconforto da experiência em Cannes: “Só tinha 16 anos, os empregados do clube fizeram-me sentir muito desconfortável; olhavam para mim como se eu fosse um belo prato de carne”.
Tanto na entrevista ao “The Guardian” como no documentário de 2021, o tímido heterossexual Andrésen desabafa a custo sobre a forma como se sentiu manipulado ainda adolescente, e como a experiência de “Morte em Veneza” o traumatizou para a vida, com a etiqueta de “o mais belo rapaz do mundo” a persegui-lo para onde quer que fosse, mesmo décadas mais tarde. “O pior de tudo é ninguém prestar atenção às tuas ambições, a quem realmente és”. Mudaria de visual várias vezes, esconde o rosto sob barba espessa e longos cabelos, e só o envelhecimento – e o desvanecimento progressivo do rosto pueril que o imortalizou – lhe trouxe alguma paz. “Não só mudei a aparência como toda a minha identidade. Esforcei-me muito para me tornar anónimo“.
Depois de muitos percalços profissionais, e de uma tragédia que o levou ao divórcio da mulher, Suzanna Roman, em 2003, ao vício do álcool e a uma grande depressão – o segundo filho, Elvin, morreu aos nove meses, de síndrome de morte súbita infantil -, um Bjorn Andrésen precocemente envelhecido, de rugas fundas, cabelos grisalhos e longas barbas, pode ser visto como personagem secundária de um culto paganista nórdico no thriller de terror “Midssomar” (2019), do norte-americano Ari Aster, a atirar-se de um penhasco para estilhaçar a cabeça numa pedra no solo.
Tal como atesta a autobiografia “Katia Mann: Meine ungeschriebenen Memoiren” da mulher do escritor, Katia Mann (nascida Katharina Hedwig Pringsheim em 1883, perto de Munique), publicada em 1974, a personagem de Tadzio na novela de Thomas Mann foi inspirada num rapaz de 10 anos que o escritor alemão viu durante umas férias de Verão no Lido em 1911, pela primeira vez no Grand Hôtel des Bains no Lido (onde foram rodadas as cenas de hotel da longa-metragem). O miúdo era o polaco Wladislaw Moes, nascido a 17 de Novembro de 1900 em Wierbka, na Silésia, o quarto filho do barão Aleksander Juliusz Moes.
Grande proprietário rural, Wladislaw morreu em Varsóvia a 17 de Dezembro de 1986, dele existindo uma biografia, “The Real Tadzio”, pelo jornalista e escritor Gilbert Adair, publicada em 2001.
O Grand Hôtel des Bains do Lido está há anos encerrado para obras, à espera de ser convertido num complexo de apartamentos de luxo.