O filme
Em 1983, o coreano-americano Jacob Yi (interpretado por Steven Yeun, 36 anos na altura da rodagem, também ele imigrante de primeira geração chegado aos Estados Unidos na década de 1980, celebrizado pelo papel de Glenn Rhee na série televisiva The Walking Dead) desloca a sua família da Califórnia, onde trabalhava com a mulher Monica (a atriz sul-coreana Yeri Han), escolhendo pintainhos para a indústria agropecuária, para o Arkansas rural, onde acaba de adquirir um terreno para concretizar um projeto de vida: ser agricultor na sua própria quinta.
Com os filhos Anne, de nove anos, e David, de sete, já nascidos na América, Jacob e Monica vão acumular dificuldades rumo ao sonho americano do patriarca. Monica nunca desejou uma vida campestre e de isolamento, tendo trocado a comunidade do seu país na Califórnia e uma rede de amigos por uma vida incerta numa casa-atrelado no meio de nenhures. Durante algum tempo, o casal precisa de manter um emprego e não resta ninguém para tomar conta de Anne e David – a solução de fazer vir da Coreia do Sul Soonja (a veterana de 73 anos Yuh-Jung Youn, uma estrela no país natal), mãe de Monica, para cuidar dos miúdos, o que só acelerará a tensão no matrimónio – e as dificuldades em pagar as despesas e vender os vegetais sul-coreanos plantados na pequena quinta serão grandes.
Talvez a solução esteja numa planta típica do este asiático, uma espécie de aipo (“minari” é o seu nome em coreano, que dá título à longa-metragem), cuja colheita Soonja sugere ao genro Jacob.
“Minari” é uma produção da Plan B, de Brad Pitt e Dede Gardner, fundada em 2001 e responsável por três vencedores de Óscares de Melhor Filme (“Os Infiltrados” de Martin Scorsese, “12 Anos Escravo” de Steve McQueen e “Moonlight” de Barry Jenkins).
Distribuída pela A24, após uma antestreia no festival de Sundance a 26 de janeiro de 2020 – onde obteve o Grande Prémio do Júri para Filme Dramático e o Prémio do Público -, estreou-se nas salas norte-americanas e em plataformas VOD (video on demand) a 12 de fevereiro deste ano, após um adiamento de 14 meses provocado pela pandemia. Tem estreia prevista nos cinemas portugueses a 13 de maio.
Com um orçamento de dez milhões de dólares (8,32 milhões de euros), o filme alcançará, segundo dados actualizados a 2 de maio, 2,41 milhões de euros no mercado doméstico para receitas globais de 10,4 milhões de euros.
Conquistou o Globo de Ouro para Melhor Filme Estrangeiro de 2020, num processo polémico de afastamento da longa-metragem do concurso absoluto, obedecendo-se ao critério técnico de mais de 50% de diálogos em língua não-inglesa. Recorde-se que isso não impediu, por exemplo, “Sacanas Sem Lei” de concorrer em 2009 aos prémios principais dos Globos, apesar de a obra de Quentin Tarantino ser maioritariamente falada em alemão e francês.
Já nos Óscares deste ano, “Minari” obteve seis nomeações (incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator, Steven Yeun, o primeiro asiático a consegui-lo), tendo arrebatado a estatueta de Melhor Atriz Secundária para Yuh-Jung Youn, naquela que foi a primeira vitória em 93 anos de uma asiática nas categorias de interpretação.
Os factos
Dirigido pelo coreano-americano Lee Isaac-Chung, ao longo de uma rodagem de 25 dias em julho de 2019, nos arredores de Tulsa, Oklahoma – pela maior disponibilidade de meios logísticos, preferiu-se este estado em desfavor do original Arkansas – , “Minari” tem forte inspiração autobiográfica.
Nascido a 19 de outubro de 1978 em Denver, no Colorado, filho de imigrantes sul-coreanos de primeira geração, Lee Isaac-Chung estava a aproximar-se dos 40 anos quando decidiu aceitar um posto como professor de estudos cinematográficos na delegação da universidade do Utah em Incheon, na Coreia do Sul. Em 2018, com três longas de ficção e um documentário no currículo, Lee estava há três anos sem filmar e o seu maior êxito de crítica fora o trabalho de estreia, “Munyurangabo”, um pequeno sucesso em no Festival de Cannes em 2007. Os projectos artísticos e independentes escasseavam, a perspetiva de um percurso de êxito comercial era nula e o realizador decidiu lançar-se numa derradeira tentativa de escrever um guião que convencesse a indústria dos seus méritos.
A quatro meses de iniciar as aulas em Incheon, sentou-se num café de Los Angeles e lembrou-se dos relatos da escritora norte-americana Willa Cather sobre a vida difícil mas, por vezes, gratificante nas comunidades rurais da América no início do século XX. Lee apreciava muito “My Ántonia”, uma das novelas mais célebres de Cather, mas a adaptação era impossível (Cather deixara instruções que impediam uma versão para cinema). Reteve também uma máxima da autora, que passara parte da carreira a tentar descrever as experiências urbanas de Nova Iorque e Pittsburgh: “Para de admirar e começa a recordar”.
Lee decidiu passar para o papel as primeiras memórias que lhe viessem à cabeça do período em que os pais decidiram ir viver para o Arkansas rural dos anos 1980 numa casa-atrelado, procurando ganhar a vida como agricultores do terreno que o pai adquirira. Numa tarde, segundo uma entrevista ao Los Angeles Times, apontou uma lista de 80 recordações, detalhes desse quotidiano de infância e adolescência. Criou a seguir um arco dramático ficcional para os protagonistas, mas esse conjunto de memórias familiares e pessoais tornou-se a base de “Minari”.
Num relato realista com algumas pinceladas impressionistas, tintadas pela memória olfativa, táctil e visual de um período crítico na vida da família Yi, o director Lee Isaac-Chung pega nas experiências de uma década numa casa-atrelado nas imediações das Ozarks – uma vasta zona de montanhas e planícies que se estende pelos estados do Arkansas (onde decorreram as cenas verídicas), Missouri, Kansas e Oklahoma (onde foram dramatizadas) – para construir um retrato fictício mas de ressonâncias essencialmente verídicas, sobretudo corporizadas em David, o miúdo de sete anos, espécie de alter-ego do Lee dos anos 1980:
– tal como Soonja, a avó de David Yi, também a avó de Lee Isaac-Chung foi convocada pelos pais deste para ajudar a cuidar dos miúdos enquanto eles se ocupavam do cultivo do terreno; tal como a avó de Lee (uma viúva da Guerra da Coreia que educou sozinha a mãe de Lee e vendeu os haveres que restavam para se juntar a eles nos EUA), também Soonja, a avó ficcional, é truculenta, animada e imprevisível, ensina jogos de azar aos netos e sofre uma trombose na América;
– ainda de acordo com os factos, é da avó que parte a ideia de plantar a erva “minari” junto ao riacho, onde prospera. Na vida real, é também ela (atenção: spoiler) que incendiou uma parte do celeiro da propriedade do genro, como vemos no clímax;
– a pequena cidade encenada no filme é semelhante a Lincoln, a vila onde Lee Isaac- Chung passou parte da adolescência: “para nos divertirmos, fazíamos 48 quilómetros até ao parque de estacionamento da Walmart em Fayetteville”
– mesmo o jardineiro Paul (Will Patton), um fervoroso católico autóctone, é baseado na figura real de um agricultor que, como no filme, tinha por hábito transportar uma cruz pelo campo aos domingos;
– a larga maioria dos 30 membros da equipa técnica era também coreano-americana; por outro lado, o guião foi inteiramente escrito em inglês por Isaac-Chung, sendo os diálogos da família depois traduzidos para sul-coreano;
– o maior receio do realizador não foi a verosimilhança de intriga, época e personagens, ou as dificuldades típicas a qualquer produção de baixo orçamento, foi a reação dos seus pais ao filme neles inspirado: Isaac-Chung decidiu mostrar-lhes uma primeira montagem no dia de Ação de Graças de 2019, na sua casa em Los Angeles (a irmã de Lee também compareceu). A mãe e a irmã responderam de imediato com lágrimas e risos, demonstrando o seu contentamento, o pai permaneceu em silêncio durante toda a projeção e, no fim, pediu para sair da sala. Quando regressou, abraçou-se ao filho durante cinco minutos. Antes de ser um sucesso popular, “Minari” foi um êxito familiar.