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Cine-Check: “Laranja Mecânica”

Este artigo tem mais de um ano
Com estreia mundial a 19 de dezembro de 1971 em Nova Iorque - celebra este ano meio século de vida cinematográfica -, o filme "Laranja Mecânica" de Stanley Kubrick arrecadou 26,9 milhões de dólares na sua primeira passagem pelos grandes ecrãs de todo o mundo. Em Portugal, devido à censura, estreou apenas depois da revolução de abril, a 29 de novembro de 1974.

O filme

Um gangue de delinquentes juvenis, liderado por Alex, rufia de 17 anos (o inglês Malcolm McDowell, então com 28 anos), dedica-se ao roubo, ao espancamento e à violação numa sociedade distópica e concentracionária, situada na Grã-Bretanha do futuro. Comentando a intriga de que é protagonista em voz off e comunicando com os parceiros de crime num dialecto fictício, o Nadsat (uma mistura de russo, inglês e calão cockney, do East End londrino), Alex é um adepto da violência extrema e um fã de música clássica, actuando em roda livre até ser capturado pela polícia. 

O Ministério do Interior de um governo de inspiração totalitária decide ensaiar a sua reabilitação, incluindo-o num programa experimental de terapia regressiva, onde será utilizada a “técnica Ludovico”, um bombardeamento de imagens de agressão, violência sexual, assassinato e genocídio sobre a cobaia que, indefesa, jaz à mercê do fluxo visual ininterrupto graças a grampos colocados nas pálpebras que o impedem de fechar os olhos. 

No final da terapia, Alex, agora com 19 anos, revela uma grande aversão a estímulos de sexo e violência, que lhe causam mesmo repulsa física – o método parece ter resultado. O ministro oferece-lhe um emprego e, em sinal de reconhecimento, disponibiliza-lhe uma aparelhagem de som, onde coloca a peça musical favorita de Alex: a 9ª Sinfonia de Beethoven. Ao ouvi-la, Alex é invadido por imagens das suas proezas sexuais com público satisfeito a assistir, mostrando estar pronto para regressar a um quotidiano de crime.  

Com estreia mundial a 19 de dezembro de 1971 em Nova Iorque – celebra este ano meio século de vida cinematográfica -, “Laranja Mecânica” arrecadou 26,9 milhões de dólares (o equivalente a 22,3 milhões de euros) na sua primeira passagem pelos grandes ecrãs de todo o mundo, para um orçamento estimado de 2,2 milhões de dólares (1,82 milhões de euros). Produzido pela Warner Brothers com um orçamento médio para os padrões da época, tornou-se o maior êxito comercial da carreira de Kubrick até então, superando “Doutor Estranhoamor” ou “2001, uma Odisseia no Espaço”. 

Em Portugal, devido à censura, estreou apenas depois da revolução de abril, a 29 de novembro de 1974.

Baseada na novela homónima de 1962 de Anthony Burgess (1917-1993), um escritor melómano, compositor de música sinfónica e especialista em linguística, a longa-metragem foi alvo de intensa polémica desde a estreia. Anunciado como “as aventuras de um jovem cujos interesses principais são a violação, a ultraviolência e Beethoven”, o filme foi lançado em Inglaterra num momento em que os protagonistas políticos e grupos de cidadãos locais, à imagem da generalidade do mundo anglo-saxónico, discutiam a escalada da violência no cinema e na TV. Os temas do abuso de poder estatal e da delinquência juvenil – Burgess escreveu a novela após uma visita à União Soviética, declarando ter assistido a ataques de adolescentes organizados em gangs perante a indiferença das autoridades – marcaram a agenda social do início dos anos 70. 

Apesar de oferecer um olhar tanto sobre os perigos do excesso de poder governamental como sobre os exageros impunes dos instintos básicos individuais, “Laranja Mecânica” foi duramente criticado pela visão estetizada e humorística da violência. 

O trabalho surgia na linha do recorrente universo temático de Kubrick, onde as facetas mais sombrias da natureza humana revelam uma ameaça apenas superada pela prepotência das estruturas de autoridade, sejam elas militares (“Horizontes de Glória”, “Dr. Estranhoamor”, “Nascido Para Matar), tecnológicas (“2001, Uma Odisseia no Espaço”) ou políticas (“Laranja Mecânica”). 

Como escreveu Alexander Walker, crítico de cinema do “London Evening Standard” e amigo do realizador, “a visão de Kubrick da espécie humana é a de um símio erguido, ao contrário do retrato sentimental de Rousseau do Homem como anjo caído”.   

Estreado no Reino Unido a 13 de Janeiro de 1972, apesar de coleccionar críticas negativas (embora também tenha tido desde o início os seus admiradores), “Laranja Mecânica” recebeu quatro nomeações aos Óscares desse ano (incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador), transformando-se em obra de culto.

Nas décadas seguintes, não só o poster original da longa-metragem, assinado pelo designer inglês Philip Castle, se tornou icónico, surgindo nos quartos, t-shirts e, depois, desktops de novas gerações, como o filme conquistaria um lugar ao centro da cultura pop, dos adereços e vestuário em tournées de David Bowie ou Rihanna a citações em vários episódios de “Os Simpsons” ou homenagens em obras de Quentin Tarantino – o momento em que Vic Vega/Mr. Blonde (Michael Madsen) tortura a sua vítima ao som de “Stuck in the Middle with You” é uma referência directa à cena de “Laranja Mecânica” onde Alex viola a mulher de Frank Alexander enquanto canta e dança “Singin’ in the Rain” (Malcolm McDowell improvisou o momento na rodagem; incentivado por Kubrick para ‘cantar alguma coisa’ durante a cena, McDowell sugeriu o tema do clássico de Gene Kelly/Stanley Donen – era o único de cuja letra se lembrava)  

A selecção nacional de futebol da Holanda, tradicionalmente conhecida como Oranje (a partir das cores do país, originárias da casa real de Orange-Nassau), ganhou o célebre cognome de “Laranja Mecânica” graças ao filme, traduzido no ‘futebol total’ praticado pela equipa de Cruyff, Neeskens e Resenbrink durante o Mundial de 1974.

 

Os factos

O filme difere do livro em que se baseia sobretudo graças à (decisiva) omissão do capítulo final, onde Alex acaba mesmo por regenerar-se – e isto em resultado de um processo de maturidade e autoconsciência, não em virtude da ‘cura’ governamental.

 A diferença entre as duas obras deve-se, inicialmente, ao facto de a cópia do livro, sugerida a Kubrick pela mulher, Christiane Harlan, e utilizada como fonte pelo director para o desenvolvimento do projecto, pertencer à edição americana da novela de Burgess, onde o capítulo final é deliberadamente eliminado, julgando o seu editor que esse capítulo era dissonante do tom da novela e da história narrada.

Porém, Kubrick confessaria mais tarde que, mesmo após descobrir o derradeiro capítulo, partilhou da perspectiva do editor americano do livro, negando a hipótese de alguma vez ter ponderado incorporá-lo no filme. 

O título da novela foi também alvo de controvérsia. Não tendo os historiadores e linguistas encontrado qualquer referência no calão ou dialectos das várias zonas de Londres – que Burgess citou de início como fonte – à expressão “laranja mecânica”, a imprensa da época divulgou que a expressão teria sido inventada pelo autor da novela.

No entanto, em Abril de 2019, foi noticiada a descoberta no arquivo de Anthony Burgess, entre os documentos encontrados na casa deste em Brascianno, província de Roma, e transferidos para Manchester após a morte do autor, uma “continuação” de “Laranja Mecânica”. 

O manuscrito de cerca de 200 páginas tem como título “A Clockwork Condition”, é sobretudo não-ficcional e autobiográfico, contém reflexões de Burgess sobre a condição humana e os perigos que esta enfrenta face à tecnologia e aos media, e nele o escritor confirma a explicação do título esboçada décadas antes: “em 1945, quando regressei do exército, ouvi um cockney octogenário num pub de Londres a comentar que alguém era ‘queer as a clockwork orange’. O ‘queer’ não significava ‘homossexual’, mas ‘louco’…durante quase vinte anos, quis usá-lo como o título de algo”. 

Condenado desde a estreia pelo excesso de violência, considerada gratuita e exploratória por vários jornais e associações cívicas (estas a pedirem a censura da obra ou a sua retirada das salas), o filme tornou-se alvo de ataques ainda mais duros após a imprensa noticiar alguns crimes que presumivelmente imitariam os comportamentos criminosos de Alex e do bando de “Laranja Mecânica”. 

Logo em Março de 1972, um procurador sugeriu em tribunal que um rapaz de 14 anos, acusado do homicídio de um colega de turma, teria sido influenciado pela narrativa e imagética da longa-metragem. O filme foi de novo citado noutro julgamento, quando um rapaz de dezasseis anos de Bletchley, sul de Inglaterra, se declarou culpado do assassinato de um idoso sem-abrigo após dizer à polícia que os amigos lhe tinham falado do espancamento de “um homem como aquele” em “Laranja Mecânica”.

A polémica chegou a um ponto limite depois de, já em 1973, um grupo de rapazes ter violado uma adolescente holandesa enquanto cantaria “Singin’ in the Rain”, emulando Alex e os seus rufias no filme – um juiz inglês declarou então que a longa-metragem era um “mal em si mesmo”. 

Na sequência de alguns protestos junto à sua casa de Barnet Lane, Borehamwood, a norte de Londres, e de ameaças de morte confirmadas pela mulher, Stanley Kubrick, que detinha os direitos para Inglaterra de “Laranja Mecânica”, pediu à Warner que o filme fosse retirado das salas britânicas, ao que a produtora acedeu.

“Laranja Mecânica” só regressaria aos cinemas ingleses em 2000, depois da morte de Kubrick.

Nos EUA, a MPAA (Motion Picture Association of America), responsável pela classificação etária de filmes, atribuiu inicialmente um “X” a “Laranja Mecânica”, a categoria típica dos filmes pornográficos (“O Cowboy da Meia-Noite”, de John Schlesinger, em 1970, e o filme de Kubrick, em 1972, tornaram-se as duas únicas longa-metragens candidatas a Melhor Filme nos Óscares com a classificação de ‘X’). Mas o realizador cortou 30 segundos, removendo alguns grandes planos, planos de pormenor e detalhes gráficos das cenas da famosa orgia em fast-forward e da violação, e os censores acabaram por atribuir um ‘R’ (‘Recomendado o acompanhamento de pais ou tutor adulto a menores de 17 anos’) a “Laranja Mecânica”.

Outros países não foram tão permissivos: na Irlanda, a longa-metragem foi retirada das salas a 10 de Abril de 1973 e banida durante 17 anos, voltando a estrear apenas a 17 de Março de 2000 – mas o poster original nunca foi autorizado; O Brasil da junta militar proibiu o filme, que só estrearia em 1978 (mas com círculos negros a taparem os genitais nas cenas mais delicadas), e a África do Sul do apartheid fez o mesmo até 1984 (quando voltaria a colocar o filme nos cinemas mas permitindo a entrada apenas a maiores de 21 anos); Em Singapura, a proibição durou três décadas, até 28 de Outubro de 2011.

Em 2011, a propósito da celebração em Cannes dos 40 anos de “Laranja Mecânica”, e em Abril de 2019, agora ao jornal “Guardian”, Malcolm McDowell revelou algumas das peripécias de rodagem:

– McDowell foi escolhido como protagonista por Kubrick depois de este ver o actor em “Se..” (1968), de Lindsay Anderson, em que a personagem de McDowell, o aluno adolescente Mick Travis, se revolta contra… a autoridade de um tradicional colégio privado britânico;

– como treino para Alex, McDowell passou com Kubrick boa parte dos nove meses anteriores à filmagem a ver filmes violentos, incluindo imagens verídicas de campos de concentração nazis;

Foi necessário anestesiar os olhos de McDowell para este suportar os abre-pálpebras para as cenas da “terapia Ludovico”; mas, de tantos takes exigidos – Kubrick era lendário na sua insistência e perfeccionismo -, os abre-pálpebras foram resvalando até ferirem as córneas do actor, que andou um dia a ver mal;

– A indumentária de Alex e dos seus droogs (‘companheiros’) foi inspirada pelas roupas de críquete do próprio McDowell, que era grande entusiasta do desporto; Kubrick aconselhou o actor a usar o protector de virilha por fora da roupa – o resto é História.

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