John Fitzgerald Kennedy (JFK), o 35º presidente dos Estados Unidos, foi assassinado a 22 de novembro de 1963 na Dealey Plaza, em Dallas, Texas, durante um desfile de carro pelo centro da cidade ao lado da mulher, Jacqueline Kennedy Bouvier, do governador do estado, John Connally, e da mulher deste. Kennedy foi atingido mortalmente por uma bala disparada por Lee Harvey Oswald, um antigo soldado da marinha norte-americana, a partir do Texas School Book Depository, um edifício de sete andares situado no início da Dealey Plaza. 30 minutos depois, JFK seria dado como morto por médicos do Parkland Memorial Hospital. Connally, também atingido pelos disparos de Oswald, sobreviveu.

Detido pouco mais de uma hora após os disparos, Oswald foi também ele assassinado, na manhã seguinte à detenção, por Jack Ruby, proprietário de um clube noturno de Dallas com ligações à Máfia, na cave da sede da polícia da cidade.

O novo presidente dos Estados Unidos, Lyndon B. Johnson, que servira como vice-presidente de Kennedy durante os três anos do mandato deste até ao homicídio, nomeou uma comissão para investigar o assassinato. Em 1964, dez meses depois de ser constituída, a Comissão Warren (assim titulada oficiosamente pelo facto de ser presidida pelo juiz do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, Earl Warren) concluiu que Lee Harvey Oswald foi o autor solitário dos disparos que vitimaram JFK.

Em 1976, uma nova comissão, a United States House of Representatives Select Committee on Assassinations (HSCA) foi instituída com o propósito de aprofundar as investigações sobre os homicídios de Martin Luther King (baleado mortalmente a 4 de Abril de 1968 em Memphis, no Tennessee) e de John Fitzgerald Kennedy. No seu relatório final, divulgado em 1978, a HSCA concluiria que JFK fora provavelmente assassinado "como resultado de uma conspiração", não tendo, porém, encontrado quaisquer provas de que Lee Harvey Oswald tivesse agido em conluio com mais alguém. No entanto, o mesmo relatório frisou a "alta probabilidade de dois atiradores terem disparado sobre o presidente".

Ao mesmo tempo, após investigações próprias, o departamento de Justiça dos Estados Unidos assinalou "não terem sido identificadas provas convincentes que suportem a teoria de uma conspiração" para eliminar o presidente.

Apesar da ausência de provas, sondagens regulares levadas a cabo entre 1966 e 2004 pela reputada empresa da especialidade Gallup, bem como posteriores inquéritos nacionais, demonstraram que a larga maioria dos norte-americanos (com percentagens por vezes próximas dos 80%) considera que existiu uma conspiração para assassinar o presidente, e que essa conspiração terá sido encoberta.

O FILME

Depois do assassinato de John Fitzgerald Kennedy em Dallas a 22 de novembro de 1963, o procurador-geral de Nova Orleães, Jim Garrison (com 42-48 anos no tempo de ação mas interpretado por Kevin Costner aos 35, de óculos e brancas no cabelo) decide investigar uma alegada conspiração para eliminar JFK com recurso a fogo cruzado, usando assim pelo menos dois atiradores.

A tese de Garrison vai mais longe: tratou-se de um golpe de Estado, presumivelmente envolvendo a CIA, o vice-presidente de então Lyndon Johnson, a Máfia, militantes e refugiados cubanos anti- Fidel Castro e boa parte do complexo industrial-militar dos EUA.

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Num inquérito que culminará na acusação e julgamento de Clay Shaw/Clay Bertrand (Tommy Lee Jones) em 1969 pelo alegado envolvimento no planeamento do assassinato, bem como no conluio para o encobrir, Jim Garrison recorre sobretudo ao 'filme Zapruder', um trecho de 13 segundos em 8mm captado numa câmara de filmar doméstica pelo comerciante têxtil de origem ucraniana Abraham Zapruder durante o fatal desfile de carro – usado pelo procurador-geral para negar a veracidade da tese da "bala única" da Comissão Warren –, bem como ao testemunho de uma fonte anónima, um oficial com ligações estreitas a Washington (identificado no filme como X e com interpretação de Donald Sutherland num papel recusado por Marlon Brando), que descreve com detalhe os motivos e as ligações ao mais alto nível político-militar que teriam determinado a execução de JFK.

Tal como na realidade, Clay Shaw sai ilibado das acusações, mas Jim Garrison não fica convencido, apelando a que todos os americanos tentem averiguar 'toda a verdade' por trás do encobrimento.

Depois de "Platoon", "JFK", um thriller político banhado em paranóia, foi o maior sucesso da carreira do controverso Oliver Stone, que viria a centrar mais duas longas-metragens em presidentes norte-americanos: "Nixon" (1995), sobre Richard Nixon, e "W" (2008), dedicado a George W. Bush, ambos polémicos e republicanos.

Adaptado pelo próprio Stone e pelo guionista Zachary Sklar a partir dos livros de não-ficção "On the Trail of the Assassins", publicado por Jim Garrison em 1988, e "Crossfire: The Plot that Killed Kennedy" (1989), de Jim Marrs, um jornalista especializado em teorias conspirativas – incluindo complots governamentais destinados a encobrir a descoberta de aliens ou a participação do Estado norte-americano nos atentados do 11 de setembro de 2001 -, "JFK”" arrecadaria 173 milhões de euros em receitas globais para um orçamento estimado em 33,8 milhões de euros. Com financiamento e produção da Regency, da Alcor Films e dos franceses da Studio Canal+, a longa-metragem foi nomeada para oito Óscares – incluindo Melhor Filme, Melhor Realizador e Melhor Ator Secundário para Tommy Lee Jones -, arrecadando dois: Melhor Fotografia (Robert Richardson) e Melhor Montagem (Joe Hutshing e Pietro Scalia).

Fazendo uso de uma considerável galeria de atores (Jones, Sutherland, Gary Oldman, Sissy Spacek, Jack Lemmon, Kevin Bacon, Laurie Metcalf, Walter Matthau, John Candy, Joe Pesci, a lista é longa) e recorrendo a técnicas, registos e formatos variados de filmagem, Oliver Stone cruza, mistura e funde imagens de arquivo, reconstituições detalhadas (só o fatídico percurso rodoviário em Dallas custou 3,4 milhões de euros a recriar), fragmentos documentais, vídeos caseiros simulados, emissões televisivas verídicas, e excertos ora, reais, ora ficcionados, em Super 8, Vídeo 8, 16mm e 35mm, a cores e a preto e branco, granulados ou em imagem de radiosa nitidez, tornando indistinguíveis os factos das suposições, as figuras verdadeiras das inventadas, a História do(s) mito(s).

Com 189 minutos na versão original para cinema e 216 minutos na director’s cut depois lançada nos vários formatos home-video(esta condimentada sobretudo por cenas mais longas e pequenos excertos que não acrescentam muito ao tom e mensagem gerais), "JFK" estreou nas salas norte-americanas a 20 de dezembro de 1991, tendo surgido nos cinemas nacionais a 14 de fevereiro do ano seguinte, completando-se em 2021 o 30º aniversário do filme.

Aproveitando a efeméride, e após a abertura pública, decretada pelo presidente Donald Trump em 2017, da maioria dos ficheiros e dossiers sobre a morte de John Kennedy ainda mantidos em segredo de Estado, Oliver Stone realizou e estreou no último festival de Cannes um novo documentário sobre o assassinato, "JFK Revisited: Through the Looking Glass".

De acordo com a esmagadora maioria dos críticos (com a honrosa excepção de Todd McCarthy) que tiveram oportunidade de assistir ao filme em Julho de 2021 - as maiores plataformas digitais recusaram-se a adquirir a obra, não havendo ainda distribuidor para a estreia nos EUA -, apelidar “JFK Revisited” de documentário é um doloroso eufemismo. Em resposta, Oliver Stone assegurou que as "teorias da conspiração" de "JFK" passaram, com "JFK Revisited", a "factos da conspiração".

OS FACTOS

Tão reconhecidamente talentoso como consensualmente tendencioso, Oliver Stone move-se com frequência entre o falso e o verídico, ou a ficção e o real, sendo célebres os seus documentários em registo de docudrama e as suas 'entrevistas', em tom apologético, a Fidel Castro ou Vladimir Putin. Em tese, estrutura e estilo, "JFK" é uma magnífica máquina audiovisual de propaganda, onde as fronteiras entre verdade, opiniões, factualidade e desvios conspirativos se esbatem até à irrisão.

Sendo certo que as sucessivas investigações ao controverso assassinato de JFK após o veredito da Comissão Warren – incluindo uma revisão oficial da matéria dada, A Assassinations Disclosure Act, com divulgação pública de mais documentos antes selados, espoletada por uma exibição da longa-metragem de Stone aos membros do Congresso dos EUA – reforçaram a possibilidade de ter existido alguma forma de conspiração ou encobrimento, entre entidades privadas ou particulares e agências públicas do país (com destaque para as cúpulas da CIA de então), nunca foram encontradas ou apresentadas provas de que tenha existido de facto qualquer conspiração ou encobrimento.

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 Mesmo o momento/tese mais convincente da longa-metragem, com a longa dissecação do 'filme Zapruder' na sequência de tribunal (a do julgamento de Clay Shaw) que compõe o último quarto do filme, tendo em vista refutar a teoria oficial da Comissão Warren e da administração Lyndon Johnson quanto  à 'bala única' que teria vitimado JFK – também chamada de "bala mágica" devido à rota ziguezagueante que percorreu -, esbarra nas conclusões contraditórias de variados peritos em balística, especialistas forenses e técnicos de laboratórios de física e engenharia que se dedicaram ao caso durante três décadas: alguns asseguram que seria impossível uma só bala ter entrado e saído, da forma como o fez, nos corpos de Kennedy  e do governador Connally (alicerçando assim a tese de um "segundo atirador"); outros garantem que o percurso da “bala mágica” é possível e foi testado de forma concludente. Mas mesmo aí, sob o frémito panfletário de um Jim Garrison/Kevin Costner de olhos lacrimejantes – não estava no guião; Costner confessou depois ter-se emocionado no clímax do infindável monólogo – entre citações a torto e a direito de escritores e governantes, de Milton a Goebbels, surge o exagero e o erro:

- O filme alega que um dos passes de magia da já lendária bala – descoberta quase incólume numa maca do Parkland Memorial Hospital, é certo – teria mudado de curso e fletido para cima após atravessar o pescoço de Kennedy. Na verdade, isso não aconteceu, havendo registos fotográficos de que a trajetória da dita bala não foi tão 'mágica' (logo resultado supostamente inevitável de um segundo, e conspirativo, atirador) como Stone nos quer fazer crer, sendo consistente com a trajetória balística de um atirador solitário a partir do Texas School Book Depository.

- O piloto David Ferrie, uma figura chave no caso/filme "JFK", negou sempre qualquer envolvimento com algo que tivesse a ver com o assassinato de Kennedy, muito menos o ter integrado um complot nesse sentido; o mesmo aconteceu com Clay Shaw, o único entre as dezenas de potenciais responsáveis e cúmplices elencados em "JFK" a ter sido, de facto, submetido a julgamento, no qual seria ilibado pelo júri em menos de uma hora.

- No filme, a principal testemunha de acusação durante o julgamento de Clay Shaw é um prostituto, Willie O’ Keefe (Kevin Bacon), suposto amante de Shaw, que teria ouvido Ferrie, Shaw e outras figuras menores a discutirem e planearem o assassinato público em fogo cruzado de JFK. Willie O’Keefe é inteiramente ficcional. Na verdade, a principal testemunha de acusação no julgamento foi Perry Russo, um vendedor de seguros que sempre negou conhecer Shaw até os auxiliares de Jim Garrison o interrogarem sob o efeito do famoso "soro da verdade" (o composto químico sintético tiopentato de sódio) e o sujeitarem a hipnotismo, momento a partir do qual Russo mudou radicalmente de opinião.

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Mas a maior discrepância entre o que pertence aos factos apurados e conhecidos e a teoria de Stone em "JFK" reside no aparecimento – também ele 'milagroso' – do oficial X que, num monólogo de 16 minutos a meio da intriga, explica a Garrison/Costner e ao atónito espetador como todos os pontos se unem e esclarecem em gigantesca urdidura que não poupa ninguém. Nela, como resultado da moleza de JFK com o regime comunista cubano – um ponto de vista bastante alucinado para quem revisite historicamente o desastre da Baía dos Porcos, a crise dos Misseis de Outubro ou as várias tentativas de assassinato de Fidel Castro com a anuência da administração Kennedy -, da sua vontade furiosa de retirar rapidamente do Vietname (basta reler os depoimentos de Robert McNamara, então seu secretário da Defesa, para perceber que não foi bem assim) e das perigosas ‘tendências socialistas’ do clã de Camelot, um grupo alargadíssimo de notáveis e facínoras juntou-se para congeminar o assassinato de JFK:  Lyndon Johnson e os seus acólitos, o – despedido por Kennedy – ex-diretor da CIA Allen Dulles (que "JFK Revisited" quase sugere como cabecilha da operação), uma fatia generosa dos principais generais do Pentágono, os barões yankee da indústria de armamento (entre eles o dono de uma subsidiária da Halliburton), as milícias anticastristas (em torno das quais gravitavam Clay Shaw, Oswald e David Ferrie, interpretado no filme por Joe Pesci) mais um par de famílias da Máfia (as de Santo Trafficante Jr. e Carlos Marcello), todos em uníssono manipulando o ex-residente na URSS Lee Harvey Oswald como peão e cordeiro para a matança.

Na realidade, o ficcional X é baseado no coronel da Força Aérea L. Fletcher Prouty, que convenceu Stone da verosimilhança da sua tese cabalística quanto aos motivos e estratégia do assassinato após algumas conversas, apesar de a dita tese ser retirada – há citações diretas – de um livro inteiramente falso, "The Report From Iron Mountain", publicado em 1967 e best-seller do "The New York Times". Cinco anos mais tarde, os autores do livro, o escritor satírico Leonard C. Lewin e o editor da revista "The Nation", Victor Navasky, revelaram que o tinham escrito como uma brincadeira ficcional, uma farsa – no volume, popular entre os fanáticos das teorias da conspiração, um grupo de quinze homens poderosos reúne-se num abrigo nuclear subterrâneo, algures no vale do rio Hudson, para decidir os destinos da América. E assim se teria traçado a morte de JFK.

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