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CINE-CHECK: “1917”, de Sam Mendes

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Este artigo tem mais de um ano
A longa-metragem ficcional é muito livremente inspirada num episódio vivido por Alfred Hubert Mendes (1897 - 1991), o avô paterno do director, que foi cabo do Kings Royal Rifle Corps e, nessa qualidade, combateu pelo exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial.

O facto: A Primeira Guerra Mundial (28 Julho 1914 – 11 Novembro 1918) foi um dos maiores conflitos bélicos da História da humanidade, envolvendo mais de 70 milhões de soldados. Travada entre as potências aliadas (lideradas pela França, Rússia, Sérvia e o Império Britânico, com o contributo de nações como o Japão, os Estados Unidos ou Portugal) e a Tripla Aliança de Alemanha, Itália (que mudaria de posição no decorrer do conflito) e o Império Austro-Húngaro – acrescida de forças búlgaras e do Império Otomano -, iniciou-se na Europa mas depressa alastrou a todas as zonas do globo, levando à morte de cerca de nove milhões de combatentes e de sete milhões de civis.

Tida como a última das guerras clássicas e o primeiro dos confrontos modernos, teve como palco privilegiado a Europa Central, a França e a Bélgica, com a frente ocidental marcada por lentos avanços ao longo de linhas de trincheiras, com pesadas baixas de parte a parte. A Batalha do Somme e as duas Batalhas do Marne são três dos embates mais célebres (e sangrentos) da guerra de trincheiras, travada num curto espaço de terreno, conhecido como Terra de Ninguém, entre as posições das forças beligerantes.

A Batalha de La Lys (7 a 29 de Abril de 1918) foi o embate da I Grande Guerra que provocaria mais baixas no Corpo Expedicionário Português, sofridas em apenas quatro horas de batalha na madrugada e manhã de 9 de Abril – os números variam, de acordo com as fontes, entre 423 e 1341 mortos no exército português e 6000 a 7440 prisioneiros.

O conflito só terminaria, após a capitulação da Bulgária e do Império Otomano nos meses anteriores, com a rendição da Alemanha a 9 de Novembro de 1918 e a assinatura do Armistício dois dias mais tarde.

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O filme: A 6 de abril de 1917, data verídica da declaração de guerra dos EUA à Alemanha, dois jovens soldados britânicos, os cabos Blake ( interpretado por Dean-Charles Chapman) e Scofield (o actor inglês George MacKay), recebem a missão quase suicida de atravessar território inimigo e entregar uma mensagem às forças aliadas avançadas,  tentando assim impedir que 1600 homens caiam numa armadilha germânica.

A Batalha de La Lys (7 a 29 de Abril de 1918) foi o embate da I Grande Guerra que provocaria mais baixas no Corpo Expedicionário Português, sofridas em apenas quatro horas de batalha na madrugada e manhã de 9 de Abril – os números variam, de acordo com as fontes, entre 423 e 1341 mortos no exército português e 6000 a 7440 prisioneiros

Odisseia de um par de homens (spoiler alert: ao fim de 40 minutos, será apenas um, Scofield) pelo inferno pútrido e lamacento dos campos da Flandres, Bélgica, “1917” adopta o estilo de um único plano-sequência de 1h59m – caso excluamos o genérico final -, como se o espectador seguisse a acção em tempo real ao lado dos protagonistas.

Na realidade, há dezenas de cortes ao longo do percurso, habilmente dissimulados quando a câmara se detém em figurantes ou décors, e existe uma excepção à ilusão do ‘real time’, na cena em que Scofield cai de uma escadaria, perdendo a consciência – surge um fadepara negro – e acordando horas depois.

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Dirigida pelo inglês Sam Mendes (o oscarizado “Beleza Americana”, “Caminho Para Perdição”, “007 – Skyfall”), a longa-metragem ficcional é muito livremente inspirada num episódio vivido por Alfred Hubert Mendes (1897 – 1991), o avô paterno do director, que foi cabo do Kings Royal Rifle Corps e, nessa qualidade, combateu pelo exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial. Escritor de língua inglesa nascido em Trinidad e Tobago, Alfred era o mais velho dos seis filhos de Alfred e Isabella Mendes, uma família católica de origem crioula portuguesa.

Na realidade, há dezenas de cortes ao longo do percurso, habilmente dissimulados quando a câmara se detém em figurantes ou décors, e existe uma excepção à ilusão do ‘real time’, na cena em que Scofield cai de uma escadaria, perdendo a consciência – surge um fadepara negro – e acordando horas depois.

Produzida pela Amblin Partners e Dreamworks (de Steven Spielberg) com a Neal Street Productions de Sam Mendes e filmada com recurso a uma câmara digital Arri Alexa LF em formato IMAX por Roger Deakins (um dos melhores directores de fotografia contemporâneos, de “Fargo”, “Este País Não É Para Velhos” e “Blade Runner 2049”) entre Abril e Junho de 2019 no vale de Teesdale, condado de Durham, e em Wiltshire, Inglaterra, bem como em Govan, na Escócia (todos estes locais simulando a região de Ypres, Bélgica), além de interiores rodados nos estúdios Shepperton, no Surrey, “1917” é uma recriação hiper-realista – graças a décors construídos para o efeito, como cerca de 1,5 quilómetros de trincheiras verdadeiras – dos campos de batalha da Frente Ocidental.

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Depois de antestreias em Inglaterra e no Festival de Cinema de Toronto, o filme estreou nos EUA a 25 de Dezembro de 2019 e a 23 de Janeiro de 2020 em Portugal, obtendo até esta data 73,4 milhões de euros de receitas de bilheteira nos EUA e 133,5 milhões de euros à escala mundial, para um orçamento estimado em 90,5 milhões. A 5 de Janeiro último, “1917” conquistou o Globo de Ouro para o Melhor Filme Dramático, recebendo 10 nomeações para os Óscares deste ano.

Num depoimento à revista “Variety”, Sam Mendes confessou que “1917” foi inspirado “pelo fragmento” de um episódio real que o avô lhe contou: “é a história de um soldado” – o seu avô – “que tem uma mensagem para entregar. Apenas isso. Fixei-a quando era criança, e obviamente, aumentei-a e alterei-a de forma muito significativa”.

O avô de Mendes, de origem caribenha e portuguesa, emigrou para Inglaterra em 1915 e alistou-se no exército britânico com 19 anos, a Janeiro de 1916, em plena I Grande Guerra. Depois de servir no First Batallion Rifle Brigade, foi destacado para a região de Dieppe, na Normandia, onde seria treinado como sinalizador. Incorporado no movimento aliado que participaria na 3ª Batalha de Ypres (também conhecida como Batalha de Passchendaele), o batalhão de Alfred Mendes sofreu fortes baixas na tentativa de conquista da aldeia de Poelcappelle – 158 dos 484 homens morreram, ficaram feridos ou foram dados como perdidos, com muitos deles dispersos, sem comunicações, por Terra de Ninguém.

Sam Mendes confessou que “1917” foi inspirado “pelo fragmento” de um episódio real que o avô lhe contou: “é a história de um soldado” – o seu avô – “que tem uma mensagem para entregar. Apenas isso. Fixei-a quando era criança, e obviamente, aumentei-a e alterei-a de forma muito significativa”.

Como relata nas suas memórias, “Autobiography of Alfred H. Mendes 1897 – 1991” (University Press of the West Indies, 2002), Alfred, justificando-se com o seu treino como sinalizador, voluntariou-se para localizar os camaradas. Depois de encontrar vários sobreviventes, permitindo o seu resgate, regressou são e salvo ao batalhão. Por essa iniciativa, receberia uma medalha militar de bravura.

Tanto no espírito da missão reproduzida no filme como nas características gerais e nos detalhes (geografia, características do terreno, uniformes, meios disponíveis, escassez de víveres, camaradagem, medo, exaustão física, problemas de comunicação entre as cadeias de comando, desânimo colectivo), “1917” é um retrato fiel, altamente verosímil, de um dia no quotidiano dos soldados nos campos de batalha da Flandres durante a I Guerra Mundial. Porém, a inspiração num episódio verídico é sobretudo simbólica, não podendo ser tomada como literal de experiências específicas ao avô de Sam Mendes.

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Nesse sentido, os dois cabos protagonistas, inteiramente ficcionais, servem como compósito de um Alfred Mendes idealizado em missão arriscada entre trincheiras. Há um pormenor comum a Alfred e ao par de soldados da longa-metragem: tanto Alfred como o cabo Scofield foram feridos durante a guerra – Scofield com uma pancada violenta na nuca na noite de 6 para 7 de Abril de 1917, após confrontar um sniper alemão num edifício em ruínas; Alfred em Maio de 1918, quando inalou gás venenoso utilizado pelo exército germânico durante um ataque a La Bassée, no nordeste da França (foi transferido para Inglaterra, onde convalesceria num hospital em Sheffield).

Também os oficiais de “1917” interpretados por Colin Firth, Beneditch Cumberbatch, Richard Madden e Mark Strong são figuras ficcionais.

O verso recitado por Scofield ao bebé francês é um excerto de “The Jumblies”, do escritor, poeta e ilustrador inglês Edward Lear (1812 – 1888), e pode ser visto como uma alegoria do percurso dos cabos Blake e Scofield por Terra de Ninguém.

 

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