“Se nada for feito até 2023, altura em que Lisboa deverá receber as Jornadas Mundiais da Juventude, milhares de jovens vão ficar concentrados em terrenos altamente contaminados, no Parque das Nações”, alerta-se numa publicação na página oficial do PSD no Facebook.

A denúncia foi feita por Bruno Coimbra, deputado do PSD na Assembleia da República (AR), no dia 20 de abril. “No Parque das Nações há um passivo ambiental que foi apenas parcialmente removido durante as obras da Expo 98, são vários os casos conhecidos e a comunicação social deu nota que, nos terrenos da antiga refinaria da Petrogal, recentes operações urbanísticas foram confrontadas com um cenário de contaminação superior ao esperado“.
“Acumulou-se as queixas de cidadãos, acumulou-se as denúncias, tendo sido já noticiados, além dos odores, várias possíveis inconformidades na remoção e transporte [de resíduos] para aterro. Só as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ), talvez pelo mediatismo que irão ter, fizeram o Governo dar sinais de vida. Este mês, o Conselho de Ministros aprovou não uma solução, não um enquadramento legal, mas um grupo de projeto que terá também de abordar este tema pois, também ali, em terrenos do aterro sanitário de Beirolas e da antiga Petrogal, há um passivo ambiental relevante“, alertou o deputado social-democrata.

Há vários anos que se multiplicam as notícias que relacionam a zona do Parque das Nações com vários casos identificados de contaminação de solos. Os terrenos, onde chegou a funcionar uma refinaria, foram, alegadamente, reabilitados para receber a Expo 98. No entanto, os anos passaram e as queixas relacionadas com intensos odores a químicos e as denúncias de deteção de níveis irregulares de substâncias tóxicas nos solos são constantes.
Em 2017, as obras de expansão do hospital da CUF Descobertas levantaram uma nuvem de cheiro a gás sobre a zona oriental de Lisboa que se manteve durante meses. Nessa altura, um conjunto de moradores do Parque das Nações decidiu avançar com uma ação judicial contra o Estado por causa dos solos contaminados que foram encontrados na obra.
Mais tarde, em 2019, uma denúncia da ZERO alertou para a existência de uma nova mancha de solos contaminados. A associação ambientalista descreveu a operação de descontaminação, que teria decorrido anos antes, como uma “fraude“.
“Se dúvidas ainda pudessem existir, após o que aconteceu com a obra do Hospital CUF Descobertas, a identificação de mais um local com solos contaminados nas imediações dos terrenos da antiga Petrogal vem evidenciar definitivamente que a operação de descontaminação dos terrenos do Parque das Nações foi feita de forma muito incompleta, com impactos que agora e no futuro irão ser visíveis e significativos”, alertou a ZERO em junho de 2019.
A denúncia do PSD
Ao Polígrafo, fonte oficial do partido liderado por Rui Rio explica que a questão da contaminação dos solos no Parque das Nações volta a estar na ordem do dia, uma vez que se prevê “fazer um grande evento mediático sem primeiro se acautelar o planeamento ambiental e salvaguardar a saúde pública”.
“O Gabinete Parlamentar do PSD, após várias questões sobre o tema dos solos contaminados em audições regimentais anteriores, dedicou nos últimos dois meses especial atenção a este tema, dada a sua relevância ambiental e social, sublinhando o problema da inação do governo e da ausência da legislação adequada, mas fazendo a ligação a casos locais”, esclarece a mesma fonte.
Segundo o PSD, dos vários casos que têm vindo a ser destacados na Área Metropolitana de Lisboa “os terrenos das futuras JMJ são um exemplo recente e paradigmático, onde se cruza a inércia ministerial de seis anos de ausência de legislação com a apatia municipal de quatro anos sem mapa dos solos contaminados da cidade“.
De facto, desde 2015, ano em que foi submetida a consulta pública, que a legislação que estabelece o regime jurídico da prevenção da contaminação e remediação dos solos (PRoSolos) continua sem ser aprovada e publicada pelo Governo.
Nestes seis anos, foram várias as ocasiões em que o Ministério do Ambiente apresentou um prazo para a publicação da lei que continua, até hoje, sem chegar a Diário da República. Este projeto de lei prevê a fixação de um “processo de avaliação da qualidade e de remediação do solo, bem como a responsabilização pela sua contaminação, assente nos princípios do poluidor-pagador e da responsabilidade”.
Ao Polígrafo, o PSD disponibilizou a informação que recolheu sobre os terrenos que vão acolher as infraestruturas da JMJ 2023. O seguinte mapa delimita a área onde irá decorrer o evento religioso.

De acordo com o PSD, parte do evento irá decorrer nos terrenos do antigo aterro de Beirolas. Em relação a esta zona, em 2019, o Jornal Público, já a propósito do planeamento das JMJ, questionou a Câmara Municipal de Lisboa (CML), que respondeu afirmando que “o aterro ainda liberta gases” e que “o sistema de recolha e encaminhamento para a central de biogás localizada na ETAR [Estação de Tratamento de Águas Residuais] será integralmente reabilitado para um nível máximo de segurança e maior eficiência“.
A autarquia acrescentou que “no âmbito das intervenções da Expo 98, o aterro foi selado e sobre a totalidade da área foi depois depositada uma camada de um metro de espessura de terrenos não contaminados”, pelo que não existiria motivo de preocupação em relação ao terreno.
Já a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), reconheceu, naquela altura, a “necessidade de avaliar o estado do solo e, eventualmente, das águas subterrâneas“, não pondo de parte, “em função dos resultados dessa avaliação”, a necessidade de “uma análise de risco e a adoção de eventuais medidas de gestão de risco”.
Na informação disponibilizada ao Polígrafo, o PSD identifica também a zona do antigo bairro da Petrogal como a zona de “maior nível de risco de contaminação, onde se localizarão áreas de campismo e de apoio ao evento das JMJ 2023“.
Segundo o partido, “a desativação destes depósitos é recente e tem menos de uma década” e os terrenos foram sujeitos a “décadas de usos industriais e petroquímicos, onde se terão registados derramamentos de combustíveis, afetando o solo sem terem sido sujeitos a descontaminação, segundo as fontes existentes”.

Mais uma vez, em 2019, o jornal Público escreveu que a APA entendeu que seria “obrigatório proceder a uma avaliação da perigosidade” dos terrenos da antiga Petrogal e que, se comprovada a situação de risco, seria indispensável a “execução de um plano de descontaminação“. A entidade referiu ainda que “a existir algum estudo, o mesmo deverá estar na posse do proprietário do terreno”, neste caso a Galp.
O PSD refere que “a prova cabal da existência de hidrocarbonetos e outros contaminantes no solo”, nesta zona, é a “consulta ao mercado para desenvolver trabalhos de descontaminação de solos que a Galp realizou em janeiro de 2020“.
“Face a estudos em áreas conexas, e face ao histórico do uso do solo neste local onde ocorrerão as JMJ (mais de 60 anos com reservatórios de combustível que só foram removidos em 2014/2015) , é evidente que os solos, em vários terrenos, terão níveis elevados de contaminação por hidrocarbonetos, e eventualmente por outros contaminantes, tal como tem sido comprovado noutros locais com condições semelhantes”, garante o partido liderado por Rui Rio.
O “silêncio ensurdecedor” do Ministério do Ambiente
Grande parte das denúncias sobre a presença de solos contaminados na zona oriental de Lisboa tem partido da associação ambientalista ZERO. Contactado pelo Polígrafo, Rui Berkemeier não apresenta dúvidas em relação ao passivo ambiental herdado por estes terrenos que acolheram várias atividades industriais. “Quando foi feito o projeto da Expo 98 houve uma remoção dos resíduos, mas a remoção foi muito incompleta e, portanto, tem se verificado constantemente que, quando há obras, escavações, naquela zona, sendo o caso mais gritante o da construção do Hospital da CUF Descobertas. De facto, quanto mais escavavam mais resíduos encontravam”, denuncia.
O ambientalista explica que estes resíduos “libertam gases que são voláteis, os hidrocarbonetos, que podem, em algumas situações, entrar pelas caves dos edifícios, ou seja, é uma situação de perigo para o futuro. Trata-se de uma poluição lenta, que não se nota mas que necessita de controlo, principalmente nas novas obras e edifícios”.
Relativamente às JMJ 2023, Rui Berkemeier afirma ser “fundamental efetuar uma avaliação prévia” deste terrenos. “Na zona de Lisboa Oriental, a principal fonte de contaminação identificada são os hidrocarbonetos, ou seja, depósitos que foram tapados com terra e que, quando são feitas obras nesses terrenos, surgem como um problema”.
“Quando os hidrocarbonetos se volatizam, transformam-se em gases e são inalados pelas pessoas, ou seja, estamos aqui perante uma situação de poluição grave. Imaginando que fazemos uma construção por cima de um destes depósitos, as pessoas podem não notar durante anos e os gases podem entrar pelas canalizações, fissuras, estando as pessoas a respirar estes gases durante anos sem perceber”, alerta o ambientalista.
Berkemeier relembra o mediático caso das obras do hospital da CUF Descobertas. “Tínhamos ali um depósito destes gases, tirámos a tampa, digamos assim, e estes começaram a ser libertados em grande quantidade e, nessa altura, as pessoas notaram porque era uma situação aguda que provocava intenso cheiro, mais grave ainda é quando se trata de uma situação crónica e sistemática”.
Para a ZERO, o principal problema reside na inexistência de um legislação que “exija um maior controlo e uma avaliação muito rigorosa do que é que está no subsolo quando neste tenham decorrido atividades que potenciam a contaminação dos solos”. “Continuamos sem perceber porque é que esta lei [PRoSolos] não foi publicada e não percebemos este silêncio ensurdecedor do Ministério do Ambiente em relação a esta questão. Não se percebe como é que o Governo, tendo relatórios da APA a dizer que é fundamental que essa lei seja feita, não avance”, afirma Berkemeier.
“Julgamos que estiveram em causa interesses que não sabemos exatamente quais são, mas presumimos que sejam interesses do setor do imobiliário, uma vez que todo o controlo da contaminação do solo tem custos associados e, portanto, alguém se movimentou quando o projeto de lei foi levado a consulta pública, em 2015″, conclui o representante da ZERO.
Berkemeier indica que a associação ambientalista já realizou várias tentativas para debater esta questão e que, na ausência de resposta, “até já foram enviadas cartas ao primeiro-ministro, que foram reencaminhadas ao gabinete de João Pedro Matos Fernandes”.
O Polígrafo contactou o Ministério do Ambiente e da Ação Climática (MAAC) mas, até ao momento, não obteve resposta.
Autarquia e organização das JMJ 2023 negam contaminação dos solos
A organização da JMJ 2023 e a Câmara Municipal de Lisboa (CML) afirmam ser falso que o evento se vá realizar em terrenos altamente contaminados no Parque das Nações. “Como é óbvio, nem a autarquia nem a organização da Jornada Mundial da Juventude aceitariam estar ligadas a um evento com esta importância e escala colocando em risco a saúde pública”, assegura a mesma fonte.
Tanto a CML como a organização do evento religioso indicam que “apenas metade da área do recinto da JMJ, do lado do concelho de Lisboa, abrange terrenos do Aterro Sanitário de Beirolas“.
No site da CML, é possível encontrar uma imagem que simula o cenário da Jornada Mundial da Juventude a decorrer em 2023.

“Conforme tem sido divulgado desde o início das obras de recuperação ambiental da Zona de Intervenção (ZI) da Expo’98, existem no Aterro Sanitário de Beirolas (ASB) células confinadas especificamente concebidas para a deposição controlada de solos contaminados“, garante a autarquia.
Deste modo, “o projeto de selagem do ASB garantiu o isolamento de todas as células que receberam solos contaminados, eliminando qualquer risco para os futuros utilizadores desta infraestrutura”. Apesar disto, a CML informa que “está em curso uma profunda análise técnica, de âmbito ambiental e geotécnico com vista à definição de uma solução técnica para renovação integral de toda a infraestrutura de recolha de biogás e lixiviados”.
“A análise em curso pressupõe também a identificação e caracterização de quaisquer medidas adicionais necessárias ao cumprimento integral das condições de segurança necessárias à realização das JMJ e à posterior construção do Parque Intermunicipal do Trancão, sendo que o principal objetivo desta intervenção é a conquista definitiva desta ampla área para a fruição pública“, conclui fonte oficial do executivo liderado por Fernando Medina.
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Este artigo foi desenvolvido no âmbito do European Media and Information Fund, uma iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian e do European University Institute.
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